Voltei a encontrar a jovem da pastelaria. Desta vez estava
mesmo numa esplanada e não fumava. Em Sesimbra o céu estava azul e ela também
estava de azul. Um polo fino e curto, de algodão azul, que lhe deixava ver um piercing no umbigo. Uma perna estava
cruzada sobre a outra e, embora ainda não estejamos no verão, já apresentavam
uma cor a rondar o que, provavelmente com alguma falta de rigor cromático, chamaremos
bronzeado. Como a saia branca que vestia era curta, podia-se admirar um bonito
par de pernas, bem acima da curva do joelho. Ao pescoço, um pequeno lenço azul
com um nó e um brinco pendente de uma só orelha. Escusado será dizer que o
brinco condizia com as vestes, a roupa com o mar e o mar com a cor dos seus
olhos. E como o texto está a ficar muito
azul tenho de referir para que nos libertemos da cor e nos centremos no
essencial, que apesar de ela não estar a comer uma sandes de fiambre com
manteiga e a lamber os dedos, nem desta vez estar a ler Luís Sepúlveda e nos
termos encontrado apenas uma vez há já alguns meses atrás, reconheci-a. Ela nem
por isso, o que me deixou um pouco com a autoestima em baixo. Ainda assim
atrevi-me a cumprimenta-la.
Não seria repetir mas, como já se deu a entender, a receção
ao escritor não foi nada efusiva, antes mesmo pelo contrário. O que consolou
quem aqui relata os factos foi que a jovem da pastelaria não achou, nem por um
momento que o tipo, ou seja, o escritor, fosse um penetra ou um engatador,
estilo zezé camarinha, sesimbrense na circunstância. Mas quando olhou para um
personagem daqueles, em tempo mais primaveril que invernoso, vestido de
gabardina, com uns óculos de massa com uma haste partida e unida com adesivo
medicinal, de botas rurais ensebadas, o cabelo comprido e meio despenteado que
se não atribui à brisa vespertina que se fazia sentir, com uma macheia de folhas
A4 impressas debaixo do braço, mais parecendo um cromo saído do maio de 68, na
margem esquerda do Senna antes de molhar o croissant na chávena de café, à
espera da hora de repetir pela terceira vez o exame de filosofia na Sorbonne,
raciocínio a que muito a teria ajudado um livro de Edgar Morin que ele
carregava junto às folhas A4, de que apenas se reparava em metade do título (“Amour, Poésie, Sagesse”, pode o narrador
adiantar) e que, com a atrapalhação de cumprimentar a jovem,
ainda deixou cair “A náusea” do Jean-Paul Sartre mesmo aos seus pés, não tendo
sido propositado para lhe ver as pernas, pois disso ela tinha a certeza já que
tinha uma cruzada por cima da outra, bem apertadas, que reconheceu naquela
figura o escritor do livro sem tema, do livro sem nome ou quiçá do que nunca
venha a a tomar a forma de um livro, pois se o escritor não o sabe, muito menos
ela, que é apenas uma jovem que, por acaso, um dia, se encontraram numa
pastelaria, quando ela comia uma sandes de fiambre com manteiga.
E num mar de azul e atrapalhação o diálogo não foi muito
profícuo embora em vez de falarem do tempo, dos signos do zodíaco ou do estado
a que este país está a chegar e, muito menos, de futebol ou da prestação da Luciana
Abreu num programa da TVI, falaram efetivamente do livro que o, aqui, narrador
e, fora daqui, escritor, anda a escrever, do tema que concretamente ela
aprovou, da evolução do crime da Rua dos Correeiros que mereceu dela uma
expressão muito em voga, mais propriamente, «ganda maluco». Depois ele
ofereceu-lhe uma bebida, ela aceitou uma água do luso natural, ele pediu para
ele um descafeinado que bebeu sem açúcar e, depois de ter engolido um pastel de
nata, mas antes de se despedirem, ela ainda lhe perguntou «mas afinal aquela
ideia de não ter sido Isabella a assassinada mas sim uma irmã gémea, deixou-a
cair?», ao que o narrador respondeu «não me obrigue a escrever hoje o fim do
livro porque já tenho muitos episódios na gaveta e seria um desperdício
jogá-los no lixo». Finalmente, apesar do escritor ter feito um gesto de
aproximação de como quem vai dar dois chochos, um em quem bochecha, a ação
acabou abortada a meio, seguindo-se um aperto de mão e cada um foi para seu
lado. Para ser mais rigoroso, ele foi para a paragem dos autocarros para a
Quinta do Conde e ela ficou sentada no mesmo lugar.
Já sentado num dos bancos do autocarro, do lado da janela,
que hoje em dia se não pode abrir a não ser em caso de emergência, assim o
obriga o ar condicionado, viu a viatura afastar-se, não sem um último sorriso
para a garota que gosta de sandes de fiambre e viu-a ainda abrir o fecho de
correr e tirar da mala um batôn azul
claro. Porque tudo isto é muito rápido, o escritor não o viu, mas o narrador
está apto a afirmar que ela deu um retoque nos lábios.
e tu ficaste azul? ou vermelho
ResponderEliminarkis .=)
Eu é mais Benfica...
EliminarQue encontro tão azulinho com o toque final de o baton da mesma cor.
ResponderEliminarAtrevo-me a sugerir que o narrador podia esmerar-se um pouco mais na apresentação perante a donzela que deve ter ficado impressionada com semelhante aparição.
Lá deve ter pensado para com os seus botões:- Por que será que as grandes mentes têm que ter todas este ar desgrenhado?
Na próxima vez descalço as botas ensebadas e levo sandálias, quiçá com meias brancas.
EliminarSandálias e meias brancas?! Eu fugia... : )
Eliminar"Ganda maluco"
ResponderEliminarQuem diz a verdade não merece castigo.
EliminarAh, então passamos do manuscrita da Francisca, para o escritor esquerdista com ar amalucado, mas que mesmo assim não perde ensejo de deixar cair o Sartre, só para mirar mais de perto as "gâmbias" da garina?!? OK, continuamos para bingo... :)))
ResponderEliminarBeijocas!
A Francisca ainda tem muito para dar nesta história.
EliminarBeijoca.
Afinal não é só na tasca do Ismael que acontecem encontros pitorescos...também os há na pastelaria*
ResponderEliminarNem que seja a comer uma sandes de fiambre (com manteiga).
EliminarBeijinho.
Gostei desta visão da esplanada!
ResponderEliminarO tempo quente e os dias compridos também nos trazem estas visões do Paraíso...
Hummm... vou beber também umas águas... e olhar para o lado através dos óculos escuros!
Um olhar fotográfico.
EliminarAbraço.
Gosto de te ler!
ResponderEliminarBeijinho
CVB
E eu também. A ti.
EliminarBeijinho.
O retrato perfeito de um intelectual de aspecto descuidado e quiçá desleixado, com forte atracção por tudo o que seja bizarro e esteja fora do seu alcance...:))
ResponderEliminarBatôn azul? Tudo a condizer!
Apertos de mão? Bah...isso já não se usa, meu!
Beijoca.
Vou aconselhar os escritor a pentear-se. E a dar beijinhos. :)
EliminarBeijoca.
Eu ia fazer o comentário do Rogério, mas já não teria piada ser maluco a dobrar :)Delicioso esse relato de mais um encontro azul e atrapalhado. Se calhar, ainda alteras o final do livro, :))Beijinho
ResponderEliminarfoi uma sorte a sandes de fiambre não ser tambem azul...tipo podre.
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