Quando eu era garoto lançávamos estrelas e papagaios. Eu era
muito pequeno para construí-los pois comecei a dar conta do lançamento das
estrelas por volta dos meus quatro anos. E ficava a admirar o quão alto elas subiam.
Os papagaios eram feitos com uma cruzeta de canas. Os brasileiros chamam-lhe
pipas e creio, em alguns lugares de Portugal, chamam-lhe bacalhau, dada a sua
semelhança a um bacalhau seco da Noruega. Fazia-se então uma cruz, não centrada,
em que a cana que ficaria na vertical era substancialmente maior do que a
horizontal e uniam-se os vértices das canas com um fio de modo a fazer um
losango irregular. Depois cobria-se com papel de seda, colocava-se uma cauda e
era lançado. A estrela era mais bonita, muito mais bonita, no meu ver de
criança pequena e voava alto como a puta que a pariu. A estrela era feita com
três meias canas iguais, cruzadas e centradas como se fossem as diagonais de um
hexágono. As canas deveriam ser verdes para poderem ser flexíveis. As canas secas
partiam não só com a força do vento, mas também quando, em remoinho, as
estrelas se estatelavam no chão. Nas pontas das canas eram abertas ranhuras em
bisel por onde passava o fio que ia formar o hexágono. Depois sobre papel de
seda, media-se o papel a cortar que se dobrava sobre o fio e se colava. Havia
quem fizesse estrelas tão grandes que tinham de levar mais do que uma folha de
papel de seda. Alguns faziam com vermelho e verde e colocavam Portugal bem lá
no alto. Alto como a puta que o pariu. De dois dos vértices saiam outros tantos
fios que se uniam a um outro que saía do centro da estrela. Com a base formava-se
uma pirâmide triangular de cujo vértice depois sairia a guita que a ajudaria a
subir. De dois vértices opostos saiam dois fios que se uniam ao início da cauda.
Depois quanto mais comprida e pesada fosse a cauda, que normalmente era feita
de trapo, mais estável era a estrela. E era vê-la subir. Bastava ir dando fio,
que se desenrolava devagar à medida que a estrela ia subindo. Os rapazes de
oito e dez anos e até de catorze, chegavam a ser mais de cinco ou seis ao mesmo
tempo, concorriam para ver quem lançava a estrela mais alto. E eu ficava ali,
pequenino, sentado numa pedra, cabeça levantada a olhar para as estrelas. E o
Zé da Laura, um bom amigo, casado com a Maria Celeste, ficava ali também, junto
aos garotos, olhando, contemplando e incentivando este e aquele para que a
estrela subisse mais e mais. Eram lindas em todas as suas cores. E os fios não
se embaraçavam uns nos outros. E o Zé da Laura, olhou para mim, ali quietinho,
sentado na pedra, encolhido porque a brisa da tarde, aquela que fazia as
estrelas irem até lá tão alto, já me mordia os bracitos, olhando boquiaberto
para uma que já quase se não via de tão alto ter subido, e exclamou «Constantino,
a estrela vai alta como a puta que a pariu!». E eu que não percebia o que ele
queria dizer com aquilo, ainda hoje, sempre que oiço alguém dizer a puta que a
pariu, lembro-me do Zé da Laura e olho para o céu para contemplar as estrelas.
O Zé da Laura podia ser um bom amigo e incentivar as criancinhas a lançar estrelas ao céu. Contudo, não sabia falar com elas... :)
ResponderEliminarBeijocas!
Teté, o Zé da Laura era de facto um bom amigo e um coração gigante. Esta história tem mais de 50 anos e lembro-me que o primeiro palavrão que disse tinha já oito anos de idade. Apesar de não ter sido dito à frente dos meus pais, alguém lhes foi contar e eu levei dois açoites da minha mãe. Apesar do Zé e de outros terem talvez menos cuidado com algumas palavras, fruto da sua condição e provável ambiente social o numero de crianças e adolescentes que utilizavam palavrões era incomensuravelmente menor do que ouvimos hoje em dia. basta estar atento a um grupinho qualquer que seja de jovens e é mais difícil encontrar uma palavra "normal" numa frase completa do que um chorrilho de asneiras no mais vernáculo vicentino que se possa imaginar.
EliminarPuta que o pariu,
ResponderEliminaro meu papagaio não subiu
Pudesse eu regressar
aos tempos de criança
levar comigo este teu texto
e a coisa me sairia de outro jeito...
O tempo não volta para trás e por algumas coisas ainda bem, por outras que pena, não é? Mas temos os netos :)
EliminarA brisa da tarde que fazia subir os papagaios em forma de coloridas estrelas, em vez de lhe morder os bracitos, devia era morder-lhe a língua!
ResponderEliminarEntão o menino Constantino, tão pequenino e já dizia - ou pensava - em palavrões?
Pois...a culpa era do Zé da Laura!
Imagino que agora, com a linguagem desbragada desta mocidade - um dia destes ouvi uma conversa entre duas miúdas que até corei - deves andar sempre com o nariz empinado a olhar para o céu.
Só tu, Constantino, para me fazeres sorrir, hoje! :)
Toma lá uma beijoca, por isso!
Eu nem percebia o que aquilo queria dizer.
EliminarO Zé da Laura era uma boa pessoa. RIP.
Já agora, sabes que foi a primeira pessoa que conheci que tinha uma mota? Todos os miúdos se queriam ver ao espelho nos cromados da mota do Zé. :)
Gostei muito de ler este relato! : )
ResponderEliminarObrigado Catarina. Um abraço.
EliminarNunca lancei um papagaio ou uma estrela. Puta que a pariu.
ResponderEliminarAinda estás a tempo.
EliminarLogo à noite recorde-se do que lhe vou dizer agora :
ResponderEliminar"puta que a pariu"
ps:o meu computador que me está a obrigar a usar o Acordo Ortográfico, não reconhece a palavra Puta...será que o acordo não inclui calão?!?!*
O AO não foi feito para "calões". ;) ;)
EliminarEu e o meu irmão também experimentamos umas vezes lançar papagaios mas os nossos não iam ter às estrelas e os fios enrodilhavam-se todos! Esta história está tão gira! Puta que a pariu! Beijo
ResponderEliminarFeliz porque quem a leu, na generalidade, gostou. Feliz porque foi a Eva a escrevê-lo. A Eva escreve tão bem...
EliminarBeijo
Depois de um mês ausente volto aqui e leio um texto delicioso que me fez reviver a minha infância em que também ficava sentadinha a olhar para os artistas que os lançavam, só faltava mesmo mandá-los para aquele lado, mas nessa altura não sabia usar esse linguarejar que me deixou a sorrir esta noite.
ResponderEliminarBeijos
Manu
E eu tenho de confessar que também não tenho ido ver as suas maravilhosas fotos. Mas estou de regresso.
EliminarBeijos
Eu lançava papagaios e balões ( no S. João) Os primeiros enrodilhavam-se todos, os balões, esses sim desapareciam no céu em direcção às estrelas.Iam longe como a pqp
ResponderEliminarQuando eu era garoto também vi lançar balões, mas era uma coisa que me dava pavor pois tinha muito medo do fogo (e tenho).
EliminarCom ou sem... é sempre magnifico olhar os papagaios que sobem lá no alto :)
ResponderEliminarDei por mim a olhar o céu para contemplar as estrelas.
abraço
cvb
Quando o céu não tem nuvens faço-o com frequência. Quando está nublado, olho para as nuvens. ;)
Eliminareu também demorei a entender palavrões. Não se falava em casa, de jeito nenhum. Lembro que eu até sabia ( criança sabe bem mais do que o que se diz nas casas) o que era puta. Mas, estranhamente, não sabia o que era "pariu". É um verbo difícil por aqui. As pessoas têm filhos ou dão a luz, raramente "parem". E hoje eu uso o puta que pariu, mas só quando tropeço ou quebro alguma coisa. Uso como desabafo, não elogio. Pra elogio muita gente aqui usa : "caralho" !!
ResponderEliminarÉ divertido o uso e a forma dos palavrões, de um país a outro!
maray, aqui esse elogio fica mal pra car... É dos mais duros (o palavrão, claro). E a língua portuguesa é muito traiçoeira, ai se é!
EliminarE como a gente se entretinha com estes prazeres simples e nos maravilhávamos com eles!
ResponderEliminarE como era caro aquele papel de seda!!
E "fanar" um pouco de goma arábica lá em casa pra colar os remates do papel?!
Tudo era feito com um sorriso nos lábios.
Tantos que fiz em garota e Mfc papel de seda? Qual quê, com jornais e a cola era feita com fuba (farinha de mandioca) e àgua. Lembro-me de um que fiz para o meu irmão que já morreu, com a capa de uma revista e ele disse-me...mana, mana o Tony de Matos está tão alto lolll
ResponderEliminarHoje compram tudo feito, mas já está programado ensinar às netas e a ver se ainda consigo:)
Constantino...fizeste-me esboçar um sorriso e obrigado:)
tambem me lembro e cheguei a fazer um papagaio mal feito como a puta que o pariu, mas mesmo assim voava alto até onde a guita deixava...foi há tanto tempo e a imagem da recordação cá está ainda.
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