O Espinheira andava encantado. Não com a história de
Isabella, nem com as dicas que Francisca tinha deixado no seu manuscrito e que
tanto trabalho lhe davam a decifrar mas que, de facto, constituíram a chave
para descobrir o crime, como talvez o narrador tenha vontade de um dia o
mostrar aqui. No entanto, se isso for a sua vontade, soará mais adiante. Tomou Espinheira
a decisão de ir até à Estação dos CTT mais próxima, naquela época em Vila
Nogueira de Azeitão, a alguns quilómetros da Quinta do Conde, porque naquele
tempo não havia posto de correios na dita Quinta e aproveitou para comer uma
das famosas tortas de Azeitão num dos estabelecimentos mais caraterísticos da
Vila, mais propriamente na pastelaria Cego, casa fundada em 1901, chás e cafés,
passe a publicidade, sendo que na volta ainda trouxe uma quarta de “esses”, que
também são uma delícia, para fazer uma ligação telefónica e quanto às tortas
que o Espinheira comeu terei de ser mais preciso, não comeu uma, nem duas, mas
sim três. À parte a contagem das tortas comidas pelo Espinheira, os meus
leitores, ou perderam-se no parágrafo, ou estavam à espera que o escritor, que
sou eu, Constantino, ao vosso dispor, se perdesse, tal foi a distância em que
se disse que o Espinheira fora a Vila Nogueira de Azeitão e o objeto desta
deslocação que foi, como se viu mais à frente, o de fazer uma chamada
telefónica no posto dos CTT. Pois não me perdi e vou já continuar, embora, com
isto, arrisque uma má crítica literária, uma vez não ter a certeza de que
alguns dos críticos saibam ler parágrafos tão grandes. Mas isso agora não vem
ao caso, já que o que eu vos quero mesmo contar é porque é que o Espinheira
andava tão radiante.
À primeira vistas este telefonema parece encerrar uma
desnecessária perda de tempo já que a Espinheira, também ele morador na Quinta
do Conde, bastar-lhe-ia ter atravessado três ruas paralelas e depois virar à direita
e na primeira transversal encontrar a casa onde habitava Francisca. Isto não
lhe teria tomado mais do que catorze minutos a pé ou três de bicicleta, que era
como ele gostava de se deslocar. Para atingir este seu desiderato, como dizem
os treinadores de futebol nos seus discursos, tinha comprado uma pasteleira em
segunda mão em Almada, na loja do Zé Menino, na Rua Capitão Leitão,
estabelecimento infelizmente já desaparecido, que vendia, alugava e reparava
bicicletas e motociclos e tinha-a levado ele próprio, pedalando na Nacional 10,
que naquele tempo via passar um carro de tempo a tempo, um ou outro autocarro
de carreira, uma ou outra motorizada, quiçá alugada no Zé Menino ou em outro estabelecimento
congénere e de, isso sim, muitas carroças puxadas por machos ou por mulas,
desde Almada até à Quinta do Conde. O receio de ser mal compreendido pela
vizinhança, melhor dizendo o receio da má-língua do mundo, que especulasse que entre
ele, um jovem universitário, enfim, bem apessoado, e Francisca, uma quarentona divorciada
na sua, dela, grande pujança balzaquiana, houvesse uma relação mais intima, uma
situação que não era muito bem vista naquele tempo. Apesar de que entre eles,
pode vos garantir o narrador, nunca tenha havido nada, não é agora que o
próprio narrador vai criar um, mais que provável, mal-entendido que estrague a
reputação a ambos. Mas nunca fiar, porque este narrador gosta de arranjar
caldinhos para dar mais sabor à novela. Tudo isto terá passado pela cabeça do
Espinheira não fosse quem escreveu isto ter sabido de fonte segura que este não
terá sido mais do que um pretexto do Espinheira, um tarado por tortas de Azeitão,
para se deslocar à origem das mesmas para as desfrutar e poder, além disso, o
escritor, adiantar que tal era o fétiche do Espinheira pelas ditas tortas que estas
constituíam a oferta preferida dele quando dos seus encontros românticos,
substituindo assim por um embrulhinho com meia dúzia das macias tortas,
recheadas com doce de ovos e com o travo a canela, qualquer vaporoso ramo de
rosas, mesmo que de vermelhas se tratassem. E se não parecesse coscuvilhice contaria
aqui o narrador, ou melhor, narraria aqui o episódio de uma tarde em que ele
chorou de raiva quando, já homem maduro, em vésperas de ser avô, se esqueceu de
uma embalagem de tortas e de um guarda-chuva no assento de um autocarro. Todos
sabemos que não foi por causa da perda de um guarda-chuva que o Espinheira
chorou.
E neste momento da narrativa, desesperam com o narrador, os
que aqui ainda tiveram a paciência de chegar, e suplicam-lhe para que este
desembuche, de uma vez por todas, sobre o teor do telefonema e também, se não
principalmente, o motivo pelo qual Espinheira andava de sorriso trinta e dois
por tudo quanto era canto deste distrito de Setúbal e do Concelho de Lisboa, já
que o homem não era de viajar muito. E assim vos digo de rajada pois, como já
foi escrito em episódios anteriores, este escritor é homem que gosta de ir
direto aos assuntos, sem rodeios nem floreados, que o telefonema era a pedir
autorização a Francisca para atribuir ao seu conto o nome de “Conto das ilhas
de lá”, ao que Francisca deixou no ar um enigmático, logo se vê. Quanto ao motivo do seu encantamento e satisfação era,
nem mais nem menos, o quinto episódio do referido conto, que para quem o tem
andado a seguir aqui fica a sua transcrição. E enquanto leem, o narrador vai
ali até à tasca do seu amigo Ismael beber um branquinho de Pegões, porque já está
com a garganta seca.
Capítulo V
«Os seios da jovem apresentavam-se
hirtos. Os mamilos, de um castanho-escuro, pronunciado, destacavam-se da tez
cor de mel do próprio peito. Olhando ao redor, nenhuma das fêmeas, diga-se em
abono da verdade, bem mais idosas, tinha semelhanças com aquela. De resto, o
homozigotismo não parecia ser a característica daquela variante da raça humana.
Sem nunca deixar de se insinuar, pegou-me na mão e encaminhamo-nos para uma
enxerga de vime, estrategicamente colocada, onde todos e cada um dos presentes
poderiam observar-nos. Fiquei de joelhos em frente de um corpo estendido.
Imotos. O jovem corpo feminino e eu próprio. O rapaz imberbe e nu,
aproximou-se. Numa mão aportava uma folha de papiro que me apresentou e uma
faca que mais parecia uma catana miniaturizada. Na outra, uma jaca. Passou-me a
folha de papiro para as mãos e quase me obrigou a ler. A disposição dos
caracteres, a fazerem-me lembrar línguas estranhas, códigos antigos, como que
indecifráveis hieróglifos, tinha todo o aspeto de um hipocraz. Fez-me entalar a
jaca entre os dentes, a qual, instintivamente, mordi, no momento em que um
corte fino no meu dedo indicador era perpetrado pelo próprio jovem. A dor aguda
fez-me trincar a jaca em duas metades. O dedo, sangrando, foi-me feito colocar,
como que assinando um testamento. Depois, virou as costas e foi tomar um dos
dois lugares mais altos da plateia, ao lado do chefe da tribo. O hipocraz que
um dos, aparentemente, súbditos de menor estatuto, me fez ingerir, seria feito,
não da maneira convencional, pois em vez do costumeiro vinho na sua
constituição, teria uma espécie de aguardente pura de alto teor alcoólico. A
partir desse momento, apenas os seios da jovem concentravam a minha atenção».
Fiquei presa às tortas de Azeitão. Também as prefiro a um ramo de flores. Enfim, depende...
ResponderEliminar"este escritor é homem que gosta de ir direto aos assuntos, sem rodeios nem floreados..."?!?!
ResponderEliminarO que um homem faz, para se lambuzar com um doce...*
Francamente, depois deste Capítulo V também fiquei com a garganta seca. Vou ter com o narrador à tasca, mas em vez do branquinho de Pegões acho que vou pedir Quinta da Bacalhôa...
ResponderEliminarÓ pá, do que gosto é do Espinheira a comer tortas de Azeitão e dos peitos hirtos (e firmes)... e mais num digo!!!!
ResponderEliminarUm abraço pá!!
Não sou grande apreciador de tortas de Azeitão, mas o mesmo não digo dos peitos firmes e hirtos :-)
ResponderEliminarAproveito a oportunidade para lhe dizer que abri um blog só de crónicas. Se quiser passar por lá, aqui fica o endereço:
http://cronicasontherocks.blogspot.pt/
Há muito de pitoresco e de encantador nestes relatos.
ResponderEliminarGostei muito.
Boa semana. Bj
Cá para mim, não há torta, por mais doce, que substitua um belo ramo de rosas vermelhas...e mais não te digo, Constantino!!
ResponderEliminarBeijocas...:))
Ia eu
ResponderEliminara reparar o erro que me aconteceu
de me ter enganado na cacilheiro
e em vez de ir para Almada fui parar ao Barreiro
quando me cai em cima o capitulo V
Talvez por esta minha jornada
não percebo... nada
Mas tá bem, talvez com a continuação
se me desfaça a confusão
Só não percebi porque precisava ele dos "esses" para fazer uma ligação telefónica...
ResponderEliminarOs "esses" são tão bons! Tanto como a própria história que dá voltas e mais voltas, sem final à vista... :)))
ResponderEliminarBeijocas!
Não li o post todo porque, desculpa-me, é um pouco extenso para ler na hora do almoço mas, o título "tortas de azeitão" soou-me bem!
ResponderEliminarQualquer dia levo lá o XL para prová-las!
Ena pá...que volta e quem anda à chuva molha-se e julgavas que seria só banquete hirto lolll
ResponderEliminarOlha fica lá com as tortas de azeitão e o branquinho de Pegões que eu fico com a jaca.
Gostei:)
desta vez retive o desiderato, o hipocraz e os mamilos hirtos e castanhos... e já vou bem aviado.
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