A manhã acordou radiosa no quarto de D. Micá. O
sol penetrante na janela contígua à cama transpunha as cortinas de tule branco
translúcido, deixando que a alvura da luz inundasse o aposento. D. Micá bocejou
e espreguiçou-se. Estes gestos, que muita gente ainda apelida de má educação e
próprios de gente sem classe, num estigma ao bocejo público, muitas vezes
proveniente de doutas bocas, seja das de juízes em prolongados e aborrecidos
julgamentos, onde advogados de firmas de telecomunicações pedem a penhora de
dois penicos e uma vassoura de piaçá por conta de dívidas de trinta e dois
euros e quarenta e sete cêntimos, seja daa bocas de alguns parlamentares,
digníssimos representantes do povo que, diga-se em abono da verdade, pouco mais
fazem do que bocejar o dia inteiro, ou numa conotação, como se sabe,
inapropriada ao gesto de esticar os braços para cima reclinando simultaneamente
o corpo para trás, o que se sabe ser uma forma de alongar músculos para que
novo alento nos invada, são gestos absolutamente normais. Pois bem, como seria
de esperar, apesar de presidente de uma Fundação muito prestigiada no meio dos
apreciadores de leite magro e mais ainda no dos apreciadores de chocolate, D.
Micá também boceja e também se espreguiça. E estarão agora os leitores a pensar
“e também dará o seu traque, com certeza…”. Então, para que a verdade aqui
fique indubitavelmente expressa, D. Micá também dá o seu traque. Dá sim senhor.
Apesar destes gestos, derivado ao mau estar do serão da véspera, onde ela se
viu envolvida na própria história que estava a contar mas que, sabemos de fonte
segura, não deixará de continuar a contar, malgrado a desfaçatez e até
descaramento de D. Bonifácio em apelidá-la de matraca, D. Micá acordou com uma
ligeira dor de cabeça. Como não se tratava de enxaqueca, coisa de que raramente
se queixava, ao contrário de sua mãe, D. Ermelinda, mas que por agora nem vem
ao caso, a moinha que a apoquentava não era coisa que não passasse com um bom
duche. E se assim o pensou assim o fez, sendo que depois de colocar na cabeça
uma touca que lhe protegeria os longos e bem tratados cabelos loiros da
agressão de águas calcárias e sabões vários, deixou cair costas abaixo o sua
camisa de noite em seda arábica com folhos e rendas deixando a nu o esbelto
corpo desta trintona, órfã de pai, senhor de muitas facetas, entre as quais, a
que melhor conhecemos, a de exportador de cacau santomense. Mas da alvura da sua
pele, da maciez das axilas, da elegância do umbigo, da firmeza dos seios, da expressividade
da púbis, do talhe das suas coxas, da vespídea cintura, das saliências glúteas e
da beleza dos seus pés não se falará neste texto que não tem pretensões a
narrativa de caráter erótico. Tomou então o seu banho, vestiu-se, comeu,
telefonou e saiu.
No resto da manhã passeou-se pelo parque. Vestia
um vestido muito bonito, branco, de algodão e linho e usava uma sombrinha
também branca. Quer o vestido quer a sombrinha se apresentavam com rendas em
bordado inglês. Quem a visse poderia pensar que se tratava de uma noiva em
momento de descontração antes de dar o sim no altar da igreja de Fátima. Mas
não. Do telefonema, que alguns minutos antes fizera, resultou juntarem-se a ela
duas boas amigas, a Geninha e a Marta. Duas amigas e não duas damas de honor. De
resto nem nos parece que esteja para breve o seu casamento nem, tão pouco, lhe
conhecemos namorado. Riam com ar jovial, como se o chilique tivesse sido coisa
de um passado distante e as bebedeiras de vodka que a Geninha apanha, não lhe
fizessem mossa, que se não as conhecêssemos como as conhecemos diríamos que tínhamos
ali três mulherezinhas como as de Louisa Alcott ou quaisquer outras três saídas
de romances cor-de-rosa de meados do século passado. E quais jovens
adolescentes, abriram as bolsas, tiraram de lá os seus saquinhos de milho e
foram dar milho aos pombos.