Não. Não havia outra hipótese. Ele sairia,
vestiria umas calças de ganga e uma t-shirt, de preferência estampada com o
rosto de Che Guevara, já tinha comprado uma cartolina na papelaria do senhor
Hipólito, pintado as palavras de ordem, ou melhor, a palavra de ordem, um
estrondoso RUA! com maiúsculas e ponto de exclamação e pregado um pau para
ostentar o seu cartaz bem alto. Haveria de aparecer nas fotografias dos jornais
e nas imagens da televisão. Até porque aquele RUA! não era um RUA! qualquer.
Estava escrita, ou melhor, pintada com uma trincha grossa, com tinta de cor
vermelha escorrendo, como se tivesse sido pinchada a sangue.
Foi com o trabalho de casa completo que se foi
deitar. A manifestação seria só amanhã da parte da tarde e, embora o tempo
ameaçasse chuva, talvez lá pelas três da tarde, a hora em que estava prevista
começar, houvesse uma aberta. Vestiu o pijama de verão, calça e casaco de seda
que a esposa, uma francesa de sociedade, que tinha conhecido numa sessão
cultural na Alliance Française, não o queria ver de menos, o quebra-luz
preparado para cobrir os olhos, o que lhe garantiria um sono descansado. Sophie
que aproveitava o sossego da noite para escrever os seus poemas de cariz
erótico, uma vez que outros não se lhe discorriam, pois mesmo que começassem de
ingénuo modo, a luxúria, mais verso, menos verso, tomaria conta do poema, ainda
não tinha apagado a luz da escrivaninha e isso incomodava-o. Puxou o fino
lençol, ajeitou o quebra-luz aos olhos, tossiu apenas para se fazer notado ou
seja para fazer notar a Sophie que se estava a deitar, cobriu-se, colocou-se de
lado, como que costas para o lugar onde Sophie se deitaria e adormeceu, não sem
antes fazer uma antevisão mental do que os colegas, no dia seguinte lhe diriam do
seu fervor revolucionário. Sophie deitou-se logo a seguir.
A manhã acordou chuvosa. Da cozinha
inundava-se-lhe o quarto com o cheiro a torradas e a café acabado de passar. Um
aroma a doce de tomate misturava-se com o dos ovos fritos havia pouco. Sophie
apareceu-lhe à porta do quarto envolta num roupão de seda vermelho, branco e
azul. Sorriu-lhe e deixou cair o roupão sob o qual se descobria uma nudez alva
e jovem. Trauteou a Marselhesa e aconchegou-se ao marido. Passaram o dia a comemorar
a tomada da Bastilha.