sábado, 24 de setembro de 2011

65. A toalha da mãe da Dora



A Dora fazia anos e queria ter uma grande festa. Afinal de contas não é todos os dias que se fazem dezoito anos e, embora naquela época a maioridade se atingisse aos vinte um, aos dezoito era permitida a emancipação para determinados atos. E obter a carta de condução era um deles. Logo a Dora, que andava há tempo a namorar aquele Mini Clubman cor de café com leite. Seria uma das primeiras e das mais novas mulheres, aliás menina e moça, a ter carro e ainda por cima um Mini. Uns bons noventa contos, daquele tempo, mas os pais tinham posses.

Que me lembre de memória estiveram na festa, além da Dora e da mãe da Dora, que ia repondo o stock de comes e bebes à medida que o íamos devorando, estavam lá dizia eu, o Gouveia, o Coutinho, o Jorge, o Zeca, o Pires, o Antero, o Gregório (deste nunca mais me esqueço por razões que agora não vêm à baila, mas um dia destes contar-vos-ei uma empolgante e inusitada cena, em que o Gregório foi protagonista), a São, a Eduarda, a Maria Helena, a Guida Peres e a Guida Antunes, a Ana Cravo, outra Ana que só a conhecíamos por Bebé  a Gina, ai a Gina… e a Carolina Franco. Estes são os nomes que me lembro mas eram mais, algumas amigas e amigos da Dora e vizinhos que moravam na mesma rua e que apenas conheci naquele dia. E havia croquetes, rissóis, pasteis de nata, bolas com creme, pastelinhos de bacalhau, ducheses e uns bolos grandes, com chantilly e fios de ovos, que a mãe da Dora fez e que estavam deliciosos, pelo menos aqueles que eu provei. E coca colas que naquele tempo não eram Coca Colas mas eram Canada Dry e laranjadas e gasosas Schweppes que era a marca mais famosa daqueles tempos além da Laranjina C. E lá numa arca que a mãe da Dora tinha na marquise, amontoadas e muito fresquinhas, Sagres e Cergal, esta última a cerveja da moda. Mas não podiam era estarem à vista pois parecia mal uma vez que ainda éramos menores.

Comemos e bebemos, principalmente bebemos, mas não foi só para isso que fomos à festa. Era pela música e palas miúdas. (Elas se calhar era pelos rapazes, mas isso eu já não sei). Ali se dançava o rock da época com o som a altos berros, dançávamos os Mungo Jerry com o seu  In the Summertine, abanávamos fortemente a cabeça quando os Shocking Blues arrasavam com Venus, acalmávamos languidamente à voz de Jim Morrison, sentávamos para ouvir, só ouvir, a guitarra do Jimmy Hendrix ou a voz de Jannis Joplin e não nos desagarrávamos quando os Wallace Collection tocavam os primeiros acordes de Daydream ou Carlos Santana “sambava pa nós”. Foi no meio destes estados de estômago e de alma que demos por falta do Coutinho. Ele e a Guida Peres, que já andavam meio enrolados, de repente desapareceram. Ao fim de alguns minutos encontramo-los debaixo da mesa bem encobertos pela comprida toalha bordada de Viana do Castelo. Nem a mãe da Dora, naquele entra e sai com a bandeja dos pãezinhos de leite com fiambre, deu por isso, nem eles estavam propriamente a dançar o Whiter Shade of Pale.

A foto, que desta vez não é da minha autoria embora seja minha propriedade, representa a banda (algarvia) Six Irish Man, que aconselho vivamente a ser vista em concerto.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

64. L(u/a)gares



Ligando o Lugar e a Vila, havia uma avenida e havia uma azinhaga, fazendo entre elas um ângulo de noventa graus. A vila crescia a montante da azinhaga, onde já havia prédios e a oriente da avenida. Os prédios da vila subiam da azinhaga até ao cimo e do cimo até ao rio. Ao longo da azinhaga, casas térreas e pátios com os dias contados. No sítio onde a azinhaga se bifurcava, no centro da fisga, mais quintas e algumas barracas. Parece difícil descrever, parece que é coisa com quase cinquenta anos, mas na cabeça dele ainda estava viva a estrutura. De tal maneira ele tinha presente o lugar onde vivia que me fez um desenho. É por isso que eu estou a tentar reproduzir. A jusante da azinhaga, quintas e também, quintas para oeste da avenida. Era a quinta do ti Zé Guimarães, a quinta do Pombal, a quinta do ti António (mais tarde, disse-me ele, descobriu que era a quinta do Teotónio), a quinta do Plantier, um francês há muito radicado em Portugal e outras que ele me descreveu mas que, peço perdão, não tendo a mesma memória, já se me varreram os nomes.

O tio Raul era um homem fino. Não que fosse algum bacharel ou tabelião, isso não. Nem era engenheiro, doutor de leis, médico ou farmacêutico. O tio Raul era corticeiro, talvez o melhor das fábricas do Concelho pois sabia da arte de escolher, quadrar e rabanear como ninguém. E fez a quarta classe com distinção. No seu círculo de amigos havia até gente graúda. E por isso mesmo, raramente o tio Raul passaria mais do que uma noite na pildra por gritar mortes a Salazar e vivas à Rússia. O tio Raul era inteligente, lia como poucos e dizia poesia como mais nenhum. O pior era os copitos, coitado.

Naquele dia vinham os dois garotos, irmãos, cada um com um saco de azeitonas verdes, acabadas de colher. Tinham atravessado a azinhaga, saltado o valado da quinta do Plantier, onde havia um enorme pomar e extenso olival. O caseiro, o ti Manel Francisco, já lhes tinha dito que eles eram os únicos miúdos que ele autorizava que fossem às azeitonas, mas que não dissessem a ninguém. Encontraram o ti Raul, já com um grão na asa, que lhes perguntou o que traziam nas mãos. Olhou os sacos, mirou as azeitonas, tirou um punhado, olhou-as atentamente, voltou a colocá-las no saco, devolveu as azeitonas aos garotos, isto tudo sob o olhar daqueles dois pares de lanterninhas brilhantes, um azul como o mar, outro castanho cor de azeitona madura, de seis e sete anos de idade, chispando respeito pela excelência de tio que tinham. Deu dois tostões a cada um e disse-lhes “Rapazes, não sejam parvos, de pequenino é que se torce o pepino”- Quando o tio terminou a primeira parte “não sejam parvos…”, o que me fez o desenho jura que ambos pensaram que o tio lhes ia dizer, “não deixem roubar as azeitonas!” .  O que seria isso de torcer o pepino?

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

63. Porto



Ao Porto ninguém tratava de outra maneira a não ser por Porto. O Porto era do Porto e falava com um sotaque nortenho, talvez do Porto ou então dos arredores do Porto. Ainda no outro dia eu dizia que era de Almada e a pessoa respondeu-me, ah sim de Lisboa e eu fiquei-me. Se calhar o Porto não era mesmo do Porto, mas todos o tratavam por Porto. Mas não era apenas a sua origem que o caraterizava. O Porto era um tintoleiro. Onde houvesse uma pipa, um garrafão ou uma garrafa cheia, ou meia, do rubro líquido o Porto parava e encharcava-se. Nunca vi o Porto que não estivesse bêbado. O Porto raramente andava sozinho e raras as vezes sem a mulher. Quando ele não vinha com a mulher vinha na companhia da sua bebedeira e quando vinha com a mulher, eram quatro. Ele, a mulher e duas tremendas besanas. O Porto, morava no bairro de barracas que do meu bairro, tinha um matadouro a separá-lo. O Porto cambaleava, melhor que qualquer pessoa que eu já tivesse visto cambalear. E nem nos filmes de Sam Peckinpah, um cowboy cambalearia tão bem como o Porto, depois de uma seta envenenada do Cheyenne Touro Sentado ou do Sioux Asa de Falcão.

Se havia alguém que gostava e ainda gosta de pescar era o Baixinho. Mal as férias da Páscoa começavam e já estava o Baixinho a fazer a sua abertura de época (este parêntesis é para vos falar do desgosto que um febrão, alto lá com o charuto, o fez ficar na cama numa sexta-feira santa em que o pai, com linha de mão, anzol empatado a arame e poita feita de um pedregulho moldado, tirou do rio um safio de cinco quilos e meio, a quem lhe foi dada a honra de beber uma mini no caminho para casa. Ao pai não, ao safio!). Naquele dia, tinha almoçado havia pouco tempo, a maré estava baixa demais, daria tempo para que, com a sachola, escavar umas quantas poças no ostral, recolher uma boa mão cheia de minhocas e começar a pescar um pouco mais tarde. Quis o almoço e a sua digestão que esta colheita não corresse a preceito. Quando começou a ver tudo a andar à roda, largou o sacho, a lata das minhocas, a cana de pesca, o bornal do material, o balde da pescaria, saiu, com as poucas forças que ainda lhe restavam, à procura do trilho que o levaria  a casa. Caiu num barranco, à beira da azinhaga, desfalecido. E começou a viajar.

Quando acordou no hospital de Almada, algumas horas depois, parecia que ainda via o Porto, com ele aos ombros mais de dois quilómetros ribanceira acima, a entregá-lo aos pais. Felizmente que a flecha atirada por Asa de Falcão, em vez de o fazer cambalear, dotou-o falcoamente de duas divinas asas. Obrigado, Porto (sussurrou o Baixinho).

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

62. Amuleto



Dizem que o bulling, não sei se é assim que se escreve, é uma atitude das crianças e adolescentes de agora que, por maldade ou por inveja, decidem assediar quer moral, quer fisicamente colegas da mesma escola, por vezes da mesma sala e às vezes até vizinhos que sempre se deram bem antes da dinâmica de grupo os ter feito alinhar e transformar o colega, por vezes, num saco de pancada. O bulling tem de ser combatido pela sociedade, seja pela sociedade civil com uma maior intervenção dos pais (e, quiçá, a educação dos mesmos), seja pelas autoridades quando isso se justificar.

Mas o bulling não é uma coisa de agora. Apenas está mais mediatizada. Lembro-me perfeitamente do nome dele e também da sua figura física e rosto, pois fomos vizinhos e amigos de infância. Vou chamar-lhe Hélder, um nome inventado para uma história absolutamente verídica. O Hélder era assim como que o maior totó da minha criancice. E se as crianças hoje são vítimas de bulling ou porque são gordos, ou porque são génios, ou porque não alinham em cenas patetas e indignas, convenhamos que se fica mais à mão de semear dos agentes provocadores quando se é um perfeito totó.

A D. Constância era uma boa mãe. O Hélder ia sempre para a escola de batinha branca como se usava na época, a pasta dos livros ao tiracolo e uma lancheira bem recheada. O lanche do Hélder era dos melhores daquele tempo, onde nunca lhe faltava uma sandes de ovo, uma peça de fruta e até, por vezes, um chocolate. O Hélder até já tinha caneta de tinta permanente em vez do velhinho aparo. Quer dizer, tinha durante um dia ou dois pois se não lha roubavam, convenciam-no a dar. E com o lanche era a mesma coisa. Coitado do Hélder que nunca comia o lanche que a mãe lhe arranjava. Às vezes, com as lágrimas nos olhos e a dizer se a minha sabe mata-me de porrada, lá estavam os outros a assediarem-lhe a lancheira. Mas certo dia, o Hélder não perdeu tudo. Os gajos tinham-lhe dado uma pedrinha da sorte. Fechas bem esta pedra na mão, Hélder e, enquanto a tiveres bem fechada na mão, ninguém te faz mal nem ninguém te bate nem mesmo a tua mãe.

E lá estava o nosso Hélder, regressado a casa, de mão bem fechada protegendo a pedra, confessando à mãe que tinha ficado sem lanche, enquanto D. Constância lhe pegava num braço e lhe dava uns fortes açoites por ele ser tão totó, ele ria, esquivava o rabo curvando a espinha e gritava bem alto para quem o queria ouvir que enquanto tivesse aquela pedrinha na mão, ninguém lhe batia, ninguém lhe podia fazer mal. E repetia e repetia e repetia ao ritmo de cada nalgada.