segunda-feira, 16 de abril de 2012

125. Ismael (44) - A apreensão da Francisca


Quem anda um bocado aborrecida com o escritor é a Francisca. Eu entendo-a, se estivesse no lugar dela talvez estivesse com o mesmo estado de espírito. Dizia Francisca, um dia destes, que apesar do interesse de Ismael Sacadura Flores no seu conto, as atenções andavam todas viradas para as anotações no manuscrito que podiam dar pistas para esclarecer o crime que vitimou, blá, blá blá, Isabella Vicentini, blá blá blá, sete facadas, blá, blá, blá, Rua dos Correeiros e que o escritor está a ceder à pressão que lhe fazem para desvendar, logo, o mistério, isto é, o nome ou os nomes dos assassinos, pois apesar dos protagonistas já saberem o resultado, desde o capítulo vinte oito, a verdade, verdadinha, e quando a verdade é nua e crua, dói, a verdade, dizia o narrador desta novela, é que os leitores do projeto de livro, atualmente apenas posts em blog, ainda não o sabem. Francisca, apesar de tudo, não está contra a que o escritor dedique mais tempo a escrever histórias, relatando factos que eventualmente possam ter ocorrido ou ficcionando outros que eventualmente possam não ter ocorrido, ou até mesmo misturando realidade e ficção e onde, os protagonistas, tal como já foi dito em disclaimer exclusivo, possam apenas ser uma mera coincidência com personagens reais, vivos ou mortos. Ou, então, escrever um livro de suspense que mete crimes e espionagem e muitos tipos de nomes estrangeiros, como um tal Freitag que só apareceu uma vez. Na realidade o blog é dele, ele escreve o que bem quer e bem lhe apetece, se um dia algum livro dele vier a ser publicado, a singelo ou em coletânea, que tenha êxito é o que ela lhe deseja, mas o escritor podia ter sido um pouco menos parcimonioso na forma como tem divulgado o seu, dela, “Conto da ilha de lá”, como já lhe chamou, provisoriamente, o jovem Espinheira.

Estava a Francisca a desabafar com o senhor Ismael Rodrigues, dono da mercearia no seu quarteirão lá na Quinta do Conde, toda esta preocupação com o que se estava a passar com o seu “Conto da ilha de lá”, nomeadamente a apreensão que lhe estava a causar o facto de que se a divulgação do ou dos criminosos vier a ser feita um dia destes, tudo o resto de ” Ismael, a série” ou dos “Relatos dentro de uma lata de atum”, nome provisório e alternativo a “Histórias à sombra de um carapau de escabeche”, deixará de ter interesse e o seu “Conto da ilha de lá” ficará no texto como um conto inacabado, que na posteridade poderá vir a ser publicado ou não, tudo dependendo do grau de notoriedade com que ela mesma venha a ficar no mundo literário, quando de repente, como que vindo do nada, lhe entra mercearia dentro um pombo-correio com uma mensagem agarrada à anilha, o que lhe fez soltar uma grande exclamação: “Ora esta, este é o pombo-correio do senhor Ismael Gusmán, o amigo galego do escritor, que tem uma tasca na Rua dos Correeiros!”. Esta exclamação já não pode ser ouvida pelo senhor Ismael Rodrigues, o dono da mercearia pois, ao mesmo tempo, a estridente campainha do seu telefone de mesa já tocava e se ouvia lá de dentro qualquer coisa como, Quem fala?...  Ah o senhor Espinheira… como está?…Urgente? Pois sim senhor, faça o favor de dizer… ah é para a D. Francisca? Por acaso ela está ali mesmo, vou já chamá-la… enquanto no aparelho de telefonia se ouvia, com muito ruído, uma interrupção do programa de fados e guitarradas, para comunicar a D. Francisca que grrrrr… conto….grrrrrrr…capítulo seis… grrrr… E quando Francisca percebeu que não estava no Pátio das Cantigas e que não tinha nenhuma filha no Brasil e que muito menos se chamava Rosa, entra porta dentro, passe o pleonasmo, o Filipinho, de calções e suspensórios sobre uma camisa branca e de cabelo com brilhantina e risco ao lado, gaguejando e quase sem poder falar com a emoção, D. Francisca, D. Francisca, o seu conto… Ao que ela respondeu, apertando o garoto contra o seu vestido de chita da tabela, às flores pretas e brancas, dada a sua condição de viúva, já sei meu filho, já sei, o sexto capítulo do meu conto vai hoje ser publicado pelo narrador.

Capítulo 6
“Apesar da minha fraqueza física, motivada pela fome e quiçá pela situação inusitada, não quis parecer um qualquer jagodes. Levemente acariciei-lhe os seios. Primeiro um, depois outro. Tive uma surpresa. Não posso jactar-me de ter tido muitas mulheres na minha vida. Ainda sou relativamente jovem, falta um bom par de anos para atingir os quarenta. Nunca tive nenhuma mulher insensível ao toque nos mamilos. Pensei que a minha inabilidade ou a minha retração fossem as responsáveis. Toquei-lhes com a ponta da língua numa tentativa de os bolinar. Nenhuma reação da jovem, nem um tremor, nem uma expressão de prazer. Completamente insensível. Num instante, o chefe da “tribo” levantou-se e começou a jacular. Tal a velocidade com que emitia os sons, uma evidente forma primitiva de fala, que o joco se instalou entre os assistentes. Arrepiei no meu jogo amoroso e ato contínuo a jovem começou a jeremiar. Fez-se silêncio, só não absoluto porque, do goto da rapariga, se escutava um ténue choro. Alguns dias mais tarde, entendi essa insensibilidade dos seios das mulheres da aldeia”. 

Francisca saiu a correr da loja do senhor Ismael Rodrigues e foi direita a casa. E enquanto comia uma chamuça e um croquete de atum que o inspetor Flores lhe tinha trazido na véspera, diretamente da tasca de Ismael Gusmán, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Tinha sido muita emoção e ela iria anotar isso num outro manuscrito que se propôs escrever. E deu um leve sorriso como se agora fosse ela própria a mestra do suspense.



18 comentários:

  1. No início do capítulo VI pensei que vinham as entradas!
    E vieram... mas eram de outro tipo!!
    Aquelas a que me refria apareceram no fim... mas a seco!!!
    - Ó senhor Ismael... saia um copo de três, por favor!!

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    1. Anda ali alguém a abusar dos indígenas ou então vice versa. Com ou sem chamuça.
      O copo está a vestir-se...

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  2. Ainda a Francisca cria o seu próprio blogue e se liberta do escritor... :)

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  3. Quando a personagem se liberta do autor, podem acontecer coisas imprevisíveis... Isto promete!

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    1. Já estou a usar uma trela para que ela não se afaste muito :)

      Abraço.

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  4. Para já deixe-me dizer-lhe que não gosto de insectos mas a foto está magnifica...

    Agora se a criatura (Francisca) supera o criador (autor) temos um problema!Eu não sei se aguento dois a escrever assim!*

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    1. tétisq, e o que é que você acha de eu cortar o pio a essa intrusa que anda a escrever contos das ilhas de lá ou do pão de ló, ou o que é que é a geografia do lugar e me anda a dar cabo do enredo do crime do número 43?

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    2. Eu acho bem, desde que não o faça com sete facadas!*

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  5. Epá, Constantino...assim não dá!
    Tu mete-me essa Francisca na ordem. Olha que se os próximos capitulos manuscritos forem do mesmo calibre do VI, a gaja vai não só tomar conta do suspense, como da história, do blog e de tudo. A tasca do Ismael Gúsman passa a ser só frequentada por tipos que se vão querer afiambrar ao croquete e à chamuça, as damas batem à sola, inclusivé a Fernandinha e tu ainda vais parar à cozinha com o avental do galo de Barcelos bem amarrado à cintura a preparar os petiscos.
    Tu põe-lhe rédea curta, Constantino!

    Olha lá que até a tua foto já Louva-a-Deus...:)

    Beijocas.

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    1. Pelo sim pelo não já comprei dois aventais, um efetivo e outro suplente para o caso do próprio Ismael dar ao slide. Mas não te preocupes, qualquer dia o inspetor corta-lhe a bochecha e deixa-lhe a história incompleta. A ver vamos.

      Beijocas.

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    2. Eheheheheheh
      O que é isso de "cortar a bochecha?"

      Esqueceste que o Inspector e a Francisca...hummm?
      A não ser que, num arroubo de paixão, ele lhe pregue uma ferradela ( dentada, à moda do Norte)numa certa bochecha que eu cá sei, que a deixe sem fôlego uns bons capítulos...até ele desvendar o misterioso crime do nº 43.
      Vê lá,Constantino, histórias incompletas é que não vale! Tanto mais que manuscritos dão cá um trabalhão...

      ;)

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  6. (Vítor Fernandes, como estou enrolada na trama, me sinto vagando num labirinto, já nem sei mais que caminhos percorrer, tenho que reler os capítulos anteriores, ou então esperar pela publicação do livro)


    Beeeijo e desculpa a ausência, espero agora dar conta das minhas leituras.

    ;)

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  7. Que malvadez a dos teus leitores (ou da Francisca?) quererem logo que partas para os finalmente... Quando já se sabe que policial que se preze perde o impacto assim que o criminoso (ou criminosos) é desvendado! :)))

    É aguardar (e com calmex) que a veia criativa e o escritor desvendem o mistério, já se sabe que lá para o final, onde depois só restará espaço para rematar as pontas soltas... :D

    Beijocas!

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  8. Hummmm, isto hoje por aqui está quase, quase hardcore!!É o que dá quando as mulheres resolvem tornar-se independentes:-))))))
    (Mudando o rumo da conversa (se calhar é melhor), o coelhinho é mesmo verdadeiro, só que está morto e bem morto pelo predador do meu gato!)
    Abraço

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  9. Gosto da continuidade dos seus textos e da construção narrativa! Muito criativo.

    bj

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  10. A Fernandinha vai-te escapar...tu vê lá rapaz se lhe dás a volta, porque andar em aldeias como a narrada ainda ficas "afiambrado" ou "chamuçado":)

    Passa-me aí um croquetiiiiiiiiiiii:)

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  11. Isto hoje tem Francisca a mais para o meu gosto... ou melhor, para o meu desgosto. Aquele de ter sabido do arranjinho dela com o Inspector Flores... ah, e de ser um camafeu. Se calhar era mesmo melhor que ela criasse o tal blogue, que foi sugerido. Talvez desaparecesse de vez. Talvez chegasse outra personagem que me encorajasse... Talvez...

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