Em tempos que já lá vão, havia no meu bairro um grupo de
rapazes que rondavam pela mesma idade mais ano menos ano. Entre os quinze e os doze anos ou depois, já
mais velhos, entre os dezanove e os dezasseis, sendo que, quando chegamos aos
vinte e cinco, os de vinte e dois já fazem pouca diferença. Um grupo que jogava
à bola ou ao pião, um grupo que ia ao baile ou ao cinema, um grupo que namorava
ou que entretanto juntava os trapinhos, quase todos fazendo igual, quase todos
ao mesmo tempo, mais ano, menos ano. Neste limitado leque de idades havia o
Madeirense e o Pintarroxo, o Terrível e o Marado, que também era madeirense, o
Zé Tangas e o irmão, o Meia-Lua, os
manos Vianas, o Quim, o Manecas, o
Grilo, o Augusto, o Chico e o Capote, o Nico e o Manivelas, o Carapinha e o
Carlos, que é meu irmão, o Mesquita, o Caracol e o Tóninho, para nomear apenas
os que de repente me vêm à cabeça. Com uns eu tinha uma relação mais próxima e
ainda hoje somos amigos. Com outros eu mantinha distância por não me inspirarem
confiança ou simpatia. O Pintarroxo, que é pintor e que não deve a sua alcunha
à profissão, já que o seu pai também era assim conhecido e também o seu avô,
ainda é meu amigo e sempre que preciso algum trabalho de pinturas é a ele que
recorro. Quando posso vou ao café do Terrível, a quem sempre trato pelo nome
próprio. O Capote era meu cunhado e infelizmente já faleceu, como também
faleceu o meu amigo Marado. O Zé tangas, o irmão, os manos Vianas, o Nico
vejo-os a espaços. O Manivelas morava na mesma praceta mas não fazia parte do
grupo. Não nutria por ele a mínima simpatia e nem sei o que é feito dele. Pelo Caracol não só não tinha qualquer simpatia como não me inspirava confiança
nenhuma. Era de quem eu me afastava mais. Não gostava dele, nunca simpatizei
com o personagem, era desasseado, intriguista e ruim de lidar. Chegou a tentar
roubar-me um projeto de namorada. Dava-se com o Manivelas, mas com a nossa
malta só convivia com o Nico pois morava porta com porta. O Chico era o melhor a
pescar, o Carapinha era o melhor a correr e até tinha uma camisola de atleta do
Benfica, o Capote era o melhor de todos pois estava sempre de bem com cada um e
pregava o amor de Cristo, o Quim era o que cantava melhor o fado, o Madeirense
era o mais brincalhão e dos mais duros a jogar à bola, o Manecas era o que mais
percebia de música pop, o Meia-Lua convivia pouco com a gente, fez-se homem
cedo de mais, não acompanhava com crianças, apesar de ser da nossa idade. O
Carlos era o melhor guarda-redes, o Zé tangas era o mais descarado pois,
naquele tempo, já andava com o braço por cima do pescoço da namorada, o que era
um escândalo para a época e era também o mais mentiroso. Aliás, era o tangas de
serviço. O Caracol não pertencia a este grupo e até tremíamos quando ele se
tentava aproximar. Normalmente dispersávamos para não lhe dar cunfias. O Marado não perdia um baile na
Sociedade, o Grilo era o mais desconfiado, o Augusto o que mais prendia o machinho,
o Tóninho era maricas pelo que apenas morava lá na praceta mas o grupo de
amigos dele era outro. O Pintarroxo jogava bem à bola, até jogou no Piedade, os
Vianas eram os meus companheiros na catequese, o Mesquita só aparecia para
jogar futebol. O Manecas e Quim gostavam da mesma miúda que eu, as mães deles
queriam por força ser comadres da minha sogra, mas a namorada era minha. Do
Quim nada sei e o Manecas apesar de o ver com pouca frequência ainda é um bom
amigo. O Caracol, diziam, metia a mão onde não devia e também por isso não
pertencia ao nosso grupo. Na vida uns têm mais sorte, outros têm menos, outros
fecham-lhe a porta. Os mais atraiçoados foram o Marado e o Capote que morreram
cedo. Demasiado cedo. Do Tóninho, a quem arranjei emprego pois acabou por
ocupar a vaga que deixei numa loja de pronto a vestir quando eu tinha catorze
anos, nunca mais lhe soube do rasto. O Nico vi-o no funeral do pai dele. O
Caracol andou pelos caminhos da droga e do alheio e passou vários anos à
sombra. Nunca gostei do Caracol. Hoje, quando me viu, pediu-me 50 cêntimos para
uma bica. É claro que lhe dei e darei sempre que mo pedir. E mesmo que mo não
peça. Alguns não tiveram sorte. Outros fecharam-lhe a porta.
Já lhe disse que gosto muito do seu estilo de escrever? Se não o disse, digo-o agora: gosto muito desta forma de escrever e descrever... )
ResponderEliminarLi a crónica com muito prazer.
Abraço
Obrigado Catarina. Os vossos comentários são um grande incentivo.
EliminarAbraço e bom domingo.
Li de seguida e parece que via cada personagem, amigos de infância e engraçado que não referes miúdas, porque no meu grupo também havia um Caracol porreiro, o Chupeta, o João maneta (falecido) o João grande, o médio e o pequeno (este era o meu irmão que morreu cedo) a Glória, a Girafa, o Picolé, o Mekui (desgraçado que devorava frango de churrasco) e mais uns quantos uma turma tão parecida com a tua mas que a guerra encarregou-se de nos separar. Mais tarde soube de um ou dois e o resto nada sei.
ResponderEliminarAdorei, adorei!
Fatyly, naquele tempo os rapazes e as meninas só se juntavam nos bailaricos :)
EliminarBeijinhos.
Este grupo que refiro era o do meu bairro, onde as miúdas entravam caso contrário estavam tramadas:)
EliminarOs bailaricos...pois...que saudades:) e se soubesse o que sei hoje tinha feito tudo de novo mas em triplicado LOL
A vida e as suas circunstâncias...
ResponderEliminarQue percentagem temos nós nas escolhas? E as circunstâncias?
Com o passar dos anos há a tendência para delimitar territórios, sem questionarmos se tivemos o amparo do "anjinho bom"...
Abraço
Concordo. Não somos donos das nossas próprias escolhas. As circunstâncias são determinantes. O que podemos é tentar dominar o circundante.
EliminarAbraço
Pelo menos, o Vitor ficou com a rapariga.
ResponderEliminarComovente, muito bonito este texto!*
Fiquei e casei com ela. Teve seis anos de namoro e tenho 31 de casamento. E sou feliz, graças a Deus. Infelizmente a minha sogra já faleceu.
EliminarJá lhe deixei um pedido de adição no FB
EliminarTodos nós podemos fazer uma revisitação destas à nossa memória...
ResponderEliminarE os personagens desfilam ao vivo e a cores com a sinopse individual de cada um a correr por debaixo da sua figura.
E faremos sempre isso, enquanto a nossa memória não nos começar a atraiçoar.
Grande abraço, Vítor.
Vamos aproveitando para deixá-las registadas por depois poderá ser tarde.
EliminarUm abraço e boa semana.
Que bela esta crónica de nostalgias, de amizades, de vida a ser aprendida e a ser vivida!
ResponderEliminarE o tempo, sempre o tempo - o tempo que foge, o que fica na memória, o que ainda temos para viver!
Abraço
O tempo que tudo cura e tudo devora.
EliminarAbraço.
Boa semana.
E não é sempre assim, com vizinhos e colegas de escola ou liceu? Uns com mais sorte, outros com mais azar, nem sempre a educação (ou falta dela) é sinónimo de uma vida menos atribulada - os caminhos que se vão seguindo também divergem... ;)
ResponderEliminarMas gostei muito destes "recuerdos" dos verdes anos! :D
Beijocas!
Os meus sempre foram anos vermelhos, Teté :) Nunca deixei que os verdes me invadissem a cor. Nem a dos anos :)
Eliminarbeijinhos
boa semana.
Por aqui também há Caracóis
ResponderEliminarde mão estendida, para pedir
uns... carcanhóis
Alguns não tiveram sorte. Outros fecharam-lhe a porta.
Folgo por teres ficado com a namorada!!!
É assim, no jogo da vida :)
EliminarGrande abraço.
Boa semana.
Crónica, como sempre, interessante, leve e ritmada, que se lê num fôlego. É assim a vida de facto, uns têm sorte, outros nem por isso e outros, fecham-lhe a porta, nem mais! Beijinho
ResponderEliminarÉ a Lei da Vida, meu caro. A muitos amigos da juventude e adolescência perdi o rasto pois, tal como eu também partiram para outras paragens. Curiosamente, nos últimos três anos tenho reencontrado alguns e até já fizemos um encontro ao estilo "Amigos e Alex".
ResponderEliminarTambém no meu grupo, pude constatar, houve aqueles que tiveram sorte e pouco fizeram por merecê-la, outros que a conquistaram e alguns a quem a sorte virou as costas.
Abraço
Noto uma grande nostalgia neste teu regresso ao passado. Neste desfilar de nomes que fizeram, e alguns ainda fazem, parte da tua vida.
ResponderEliminarQuem, ao ler-te, não sentiu também o reviver de memórias distantes?
Como vivi a minha infância na terra onde nasci a adolescência e parte da juventude em outro lugar e depois "migrei" definitivamente-creio- para outro, muitos nomes que fizeram parte da minha vida encontram-se dispersos e da maioria perdi o rasto. Hoje são muito poucos os que me restam.
Sabes, Vitor? Deixaste-me triste!
Cheguei até a pensar em não comentar.
Um beijo, meu amigo!
Ao ler esta crónica , lembrei-me da Graciete invejosa, da Irene traiçoeira que me denunciuou à professora por ter copiado as contas de dividir, do Zé careca que de careca não tinha nada, mas diziam, sem razão que era meu namorado, do Ruizinho, filho único e com posses e sempre aprumadinho, da Gracinda que tinha a mania que sabia cantar melhor que eu...e podia continuar.
ResponderEliminarNão sei nada desta gente, tenho pena, sabia? De repente veio a "saudade", não é nome de gente, mas que a gente sem querer, nunca a pode esquecer..Que raio de coisa esta!!
fiquei nostálgica, mas adorei o que li.