terça-feira, 3 de abril de 2012

120. Rostos


“Este é o tipo de desafios blogosféricos que me agradam”
                                               Constantino, in frases marcantes da minha vida

E como este tipo de desafios agradam ao Constantino e ele não tem muito tempo para escrever novos contos, já que anda com as mãos na Isabella Vicentini e a bisbilhotar o manuscrito da Francisca, pediu ao Filipinho que lhe escrevesse algo sob os auspícios da



que tivesse como tema “Rostos” . Eu já o li e confesso que fiquei comovido pois não esperava tanto do Filipinho e agora só desejo que na Fábrica de Letras, eles também se comovam. Mas não precisam de lacrimejar muito pois, se as letras caem nas lágrimas, ainda vamos ter uma sopinha de letras. É só juntar Knorr e levar ao lume durante 10 minutos. 




Cinderela.


Já não vejo a Fátima há muitos anos. Quando eramos miúdos brincávamos no pátio das nossas casas, que eram quase porta com porta. A diferença de idades, eu, garotinho de pouco mais de sete anos e ela, mocinha já a caminhar para os onze, tornava sem sentido qualquer outra aproximação que não fosse a inocente brincadeira das crianças. No entanto, lembro-me do senhor Josué, o pai da Fátima, conversar com o meu e dizer-lhe, «senhor Marques, cá para mim ainda vamos ser compadres». Ao que o meu pai, uma pessoa muito respeitadora, muito religiosa e homem de poucas confianças e até de poucas falas, que saía de manhã para o escritório e chegava, quase sempre, tarde a casa e ainda se sentava à máquina de escrever para acabar os mapas para o Santana, que era o chefe da contabilidade lá da firma, respondia, «vamos a ver, o futuro pertence a Deus». Cá para mim, quando a gente ia à missa ao domingo, o meu pai rezava e pedia ao Senhor para que eu nunca me embeiçasse pela Fátima. Eu bem ouvia as conversas entre ele e a minha mãe e não raro o ouvi sussurrar, «Genoveva, não gosto que o miúdo brinque com a filha do protestante». Nestas coisas da religião, o meu pai era muito preconceituoso. Mas só na religião porque o meu pai não era racista. O senhor Kalankou, que era preto, era o seu melhor amigo. Lá em casa todos gostávamos do senhor Kalankou e sempre que ele lá ia jantar levava-nos sempre um bolso cheio de rebuçados de mentol para me dar a mim e à minha mãe. Ainda me lembro de todos como se fosse hoje. O senhor Josué era gordo, usava suspensórios, só punha gravata aos domingos e usava uma barba quase branca na cara sob uma pele clara e sardenta. O cabelo dele era ruivo e tinha uns olhos azuis muito grandes e redondos. Se o senhor Josué não fosse já velho, diziam que ele tinha uns bons quarenta anos, eu diria que tinha uns olhos tão bonitos como os da Fátima. Só que os dela eram mais azuis. O senhor Josué tinha uma cicatriz no lado direito do rosto, que lhe fizeram na guerra, mas a barba disfarçava embora não crescesse muito bem ao longo daquele traço. Eu só sabia disso porque a Fátima me contou e ria-se quando dizia que o pai penteava a barba para disfarçar a cicatriz. E eu ria-me também. Mas nem o meu pai sabia, se não ainda era capaz de achar que o “protestante” era um malfeitor. O senhor Kalankou estava sempre a rir. Tinha os dentes muito brancos e cara de um preto mesmo escuro de onde sobressaiam dois olhos redondos de cor castanha entalhados em duas brancas elipses. Era mesmo simpático o senhor Kalankou, sempre a mostrar os alvos dentes. O senhor Kalankou não era castanho como alguns que a gente vê na televisão, não, era mesmo preto escuro numa cara muito redonda. O senhor Kalankou também era gordo ou então, por causa da minha tenra idade, todos me pareciam gordos. O senhor Kalankou não tinha o nariz como o do meu pai. O nariz do meu pai, era comprido e fininho. Às vezes à noite, quando a minha mãe me ia adormecer e contar histórias e me contava aquela do Pinóquio eu adormecia a rir, a pensar que o meu pai era mesmo o Pinóquio. E aquele seu ar sempre sério, sem pestanejar nem franzir as sobrancelhas, até parecia que era feito de pau. Ainda hoje solto uma gargalhada só de pensar nisso. O meu pai, um boneco de madeira, para o que me havia de dar para pensar! O do senhor Kalankou era um nariz largo e também era um nariz gordo como o próprio senhor Kalankou. O senhor Kalankou era baixinho, mais baixo do que o meu pai e quando a minha mãe me contava a história da Branca de Neve, eu ficava a pensar que o senhor Kalankou, se fosse branco, poderia ser o anão narigudo da história. Mas o senhor Josué com aquelas barbas brancas também podia ser um dos anões da história. Se calhar o Mestre. Mas não, o senhor Josué não podia. Ele era muito alto, não podia ser anão. Se calhar dava bem era para ser o Pai-Natal. Uma vez eu e a Fátima fizemos um jogo de dar alcunhas às pessoas e ela fartou-se de rir quando eu disse que o pai dela era o Pai-Natal. E ela, como que a ler os meus pensamentos, disse-me que o meu pai era parecido com o Pinóquio. E perguntou-me meio acanhada, «Pode ser o Pinóquio?». E no meio de tantas gargalhadas houve dois momentos de puro encantamento. O primeiro foi quando ela disse que a minha mãe usava sempre um penteado tão bonito, umas camiseiras tão rendadas, um colar tão elegante ao pescoço, que tinha uma cara tão branquinha, uns olhos verde-esmeralda, um queixo suave e até o nariz empinado, que parecia mesmo a fada madrinha. E como a fada madrinha era uma fada boa, eu assentei que sim, que a minha mãe podia ser a fada madrinha. O outro ficou só no meu pensamento e nunca lho disse. Mas quando apago a luz e fico sozinho na escuridão do meu quarto, ainda fico a pensar nos loiros cabelos compridos de Fátima, nos seus olhos azuis, muito azuis, nos seus lábios pequenos e vermelhos e, é como se ouvisse a voz da fada madrinha ao meu ouvido, a dizer «dorme, que a mãe conta-te a história da Cinderela». E eu fico a sonhar com a Fátima.

12 comentários:

  1. Adorei! Gosto tanto quando me contam histórias de fadas... :)

    Beijocas!

    ResponderEliminar
  2. E quando é que vamos poder ler esse texto que o Constantino encomendou ao Filipinho para poder participar no desafio do "Fábrica de Letras"?

    Esta Cinderela não perdeu o sapato, mas perdeste-a tu a ela.
    Fadas-Madrinhas, Pais Natais e Pinóquios são personagens que já não povoam os meus sonhos, mas gostei e achei lindo estes elogios que a Fatinha fazia àquela doce senhora tua mãe, que se Deus quisesse, poderia vir a ser a sua futura sogra. Esperta a menina!
    Só não percebi é que outro ficou no teu pensamento...outro quê?

    Beijoca!!

    ResponderEliminar
  3. Há muito tempo que não ouvia uma história!

    ResponderEliminar
  4. Parabéns ao Filipinho, tem um jeitão! Ainda te vai fazer sombra! Ou tu também ficaste marcado pelo rosto da Fátima?
    Bjs

    ResponderEliminar
  5. Interessante, mesmo!

    Boa Páscoa.

    bj

    (Ah e não corro o risco dos dentes...eu é mais cabrito alentejano do que amêndoas...)

    ResponderEliminar
  6. Oh, que sonho! Ainda bem que partilhaste! É muito comovente reviver as fantasias inocentes da infância, ainda para mais se são convocadas por palavras tão doces como estas!

    ResponderEliminar
  7. Há pessoas e situações que não se esquecem, por mais anos que passem sobre elas!
    Essas memórias são-nos sempre contemporâneas.

    ResponderEliminar
  8. Adoro histórias e esta levou-me aos meus tempos de criança, com o meu amigo Zé, que ricas peças e se fosse contar saia risada pela certa. Infelizmente foi morto na maldita guerra.

    Adorei e mais uma para contar às netas:)

    Beijos

    ResponderEliminar
  9. Lembraste-me a Madalena. Foi a minha "Fátima"

    Parabéns ao Filipinho. Havemos de encontrar forma de ele trocar letras com o Rogérito. Fica dito.

    ResponderEliminar
  10. Só li agora. Gostei bastante. Também me fez lembrar o Zé, o neto dos vizinhos de barraca de praia dos meus avós, negro, brasileiro, com quem brinquei um Verão... Fiquei com saudades do Zé, :)Beijinho

    ResponderEliminar
  11. Ai os sonhos da infância!...Ainda bem que o Filipinho não guarda os sonhos só para ele, e vem contá-los para nos encantar!

    ResponderEliminar