“Este é o tipo de desafios blogosféricos que me agradam”
Constantino,
in frases marcantes da minha vida
E como este tipo de desafios agradam ao Constantino e ele
não tem muito tempo para escrever novos contos, já que anda com as mãos na Isabella
Vicentini e a bisbilhotar o manuscrito da Francisca, pediu ao Filipinho que lhe
escrevesse algo sob os auspícios da
que tivesse como tema “Rostos” . Eu já o li e confesso que
fiquei comovido pois não esperava tanto do Filipinho e agora só desejo que na
Fábrica de Letras, eles também se comovam. Mas não precisam de lacrimejar muito
pois, se as letras caem nas lágrimas, ainda vamos ter uma sopinha de letras. É
só juntar Knorr e levar ao lume durante 10 minutos.
Cinderela.
Já não vejo a Fátima há muitos anos. Quando eramos miúdos brincávamos
no pátio das nossas casas, que eram quase porta com porta. A diferença de
idades, eu, garotinho de pouco mais de sete anos e ela, mocinha já a caminhar
para os onze, tornava sem sentido qualquer outra aproximação que não fosse a
inocente brincadeira das crianças. No entanto, lembro-me do senhor Josué, o pai
da Fátima, conversar com o meu e dizer-lhe, «senhor Marques, cá para mim ainda
vamos ser compadres». Ao que o meu pai, uma pessoa muito respeitadora, muito
religiosa e homem de poucas confianças e até de poucas falas, que saía de manhã
para o escritório e chegava, quase sempre, tarde a casa e ainda se sentava à
máquina de escrever para acabar os mapas para o Santana, que era o chefe da
contabilidade lá da firma, respondia, «vamos a ver, o futuro pertence a Deus».
Cá para mim, quando a gente ia à missa ao domingo, o meu pai rezava e pedia ao
Senhor para que eu nunca me embeiçasse pela Fátima. Eu bem ouvia as conversas
entre ele e a minha mãe e não raro o ouvi sussurrar, «Genoveva, não gosto que o
miúdo brinque com a filha do protestante». Nestas coisas da religião, o meu pai
era muito preconceituoso. Mas só na religião porque o meu pai não era racista. O
senhor Kalankou, que era preto, era o seu melhor amigo. Lá em casa todos
gostávamos do senhor Kalankou e sempre que ele lá ia jantar levava-nos sempre
um bolso cheio de rebuçados de mentol para me dar a mim e à minha mãe. Ainda me
lembro de todos como se fosse hoje. O senhor Josué era gordo, usava
suspensórios, só punha gravata aos domingos e usava uma barba quase branca na
cara sob uma pele clara e sardenta. O cabelo dele era ruivo e tinha uns olhos
azuis muito grandes e redondos. Se o senhor Josué não fosse já velho, diziam
que ele tinha uns bons quarenta anos, eu diria que tinha uns olhos tão bonitos
como os da Fátima. Só que os dela eram mais azuis. O senhor Josué tinha uma
cicatriz no lado direito do rosto, que lhe fizeram na guerra, mas a barba
disfarçava embora não crescesse muito bem ao longo daquele traço. Eu só sabia
disso porque a Fátima me contou e ria-se quando dizia que o pai penteava a
barba para disfarçar a cicatriz. E eu ria-me também. Mas nem o meu pai sabia,
se não ainda era capaz de achar que o “protestante” era um malfeitor. O senhor
Kalankou estava sempre a rir. Tinha os dentes muito brancos e cara de um preto
mesmo escuro de onde sobressaiam dois olhos redondos de cor castanha entalhados
em duas brancas elipses. Era mesmo simpático o senhor Kalankou, sempre a
mostrar os alvos dentes. O senhor Kalankou não era castanho como alguns que a
gente vê na televisão, não, era mesmo preto escuro numa cara muito redonda. O
senhor Kalankou também era gordo ou então, por causa da minha tenra idade,
todos me pareciam gordos. O senhor Kalankou não tinha o nariz como o do meu
pai. O nariz do meu pai, era comprido e fininho. Às vezes à noite, quando a
minha mãe me ia adormecer e contar histórias e me contava aquela do Pinóquio eu
adormecia a rir, a pensar que o meu pai era mesmo o Pinóquio. E aquele seu ar
sempre sério, sem pestanejar nem franzir as sobrancelhas, até parecia que era
feito de pau. Ainda hoje solto uma gargalhada só de pensar nisso. O meu pai, um
boneco de madeira, para o que me havia de dar para pensar! O do senhor Kalankou
era um nariz largo e também era um nariz gordo como o próprio senhor Kalankou.
O senhor Kalankou era baixinho, mais baixo do que o meu pai e quando a minha
mãe me contava a história da Branca de Neve, eu ficava a pensar que o senhor
Kalankou, se fosse branco, poderia ser o anão narigudo da história. Mas o
senhor Josué com aquelas barbas brancas também podia ser um dos anões da
história. Se calhar o Mestre. Mas não, o senhor Josué não podia. Ele era muito
alto, não podia ser anão. Se calhar dava bem era para ser o Pai-Natal. Uma vez
eu e a Fátima fizemos um jogo de dar alcunhas às pessoas e ela fartou-se de rir
quando eu disse que o pai dela era o Pai-Natal. E ela, como que a ler os meus
pensamentos, disse-me que o meu pai era parecido com o Pinóquio. E perguntou-me
meio acanhada, «Pode ser o Pinóquio?». E no meio de tantas gargalhadas houve
dois momentos de puro encantamento. O primeiro foi quando ela disse que a minha
mãe usava sempre um penteado tão bonito, umas camiseiras tão rendadas, um colar
tão elegante ao pescoço, que tinha uma cara tão branquinha, uns olhos
verde-esmeralda, um queixo suave e até o nariz empinado, que parecia mesmo a fada
madrinha. E como a fada madrinha era uma fada boa, eu assentei que sim, que a
minha mãe podia ser a fada madrinha. O outro ficou só no meu pensamento e nunca
lho disse. Mas quando apago a luz e fico sozinho na escuridão do meu quarto, ainda fico a pensar nos loiros cabelos compridos de Fátima, nos seus olhos
azuis, muito azuis, nos seus lábios pequenos e vermelhos e, é como se ouvisse a
voz da fada madrinha ao meu ouvido, a dizer «dorme, que a mãe conta-te a
história da Cinderela». E eu fico a sonhar com a Fátima.
Muito bonito! : )
ResponderEliminarAdorei! Gosto tanto quando me contam histórias de fadas... :)
ResponderEliminarBeijocas!
E quando é que vamos poder ler esse texto que o Constantino encomendou ao Filipinho para poder participar no desafio do "Fábrica de Letras"?
ResponderEliminarEsta Cinderela não perdeu o sapato, mas perdeste-a tu a ela.
Fadas-Madrinhas, Pais Natais e Pinóquios são personagens que já não povoam os meus sonhos, mas gostei e achei lindo estes elogios que a Fatinha fazia àquela doce senhora tua mãe, que se Deus quisesse, poderia vir a ser a sua futura sogra. Esperta a menina!
Só não percebi é que outro ficou no teu pensamento...outro quê?
Beijoca!!
Há muito tempo que não ouvia uma história!
ResponderEliminarParabéns ao Filipinho, tem um jeitão! Ainda te vai fazer sombra! Ou tu também ficaste marcado pelo rosto da Fátima?
ResponderEliminarBjs
Interessante, mesmo!
ResponderEliminarBoa Páscoa.
bj
(Ah e não corro o risco dos dentes...eu é mais cabrito alentejano do que amêndoas...)
Oh, que sonho! Ainda bem que partilhaste! É muito comovente reviver as fantasias inocentes da infância, ainda para mais se são convocadas por palavras tão doces como estas!
ResponderEliminarHá pessoas e situações que não se esquecem, por mais anos que passem sobre elas!
ResponderEliminarEssas memórias são-nos sempre contemporâneas.
Adoro histórias e esta levou-me aos meus tempos de criança, com o meu amigo Zé, que ricas peças e se fosse contar saia risada pela certa. Infelizmente foi morto na maldita guerra.
ResponderEliminarAdorei e mais uma para contar às netas:)
Beijos
Lembraste-me a Madalena. Foi a minha "Fátima"
ResponderEliminarParabéns ao Filipinho. Havemos de encontrar forma de ele trocar letras com o Rogérito. Fica dito.
Só li agora. Gostei bastante. Também me fez lembrar o Zé, o neto dos vizinhos de barraca de praia dos meus avós, negro, brasileiro, com quem brinquei um Verão... Fiquei com saudades do Zé, :)Beijinho
ResponderEliminarAi os sonhos da infância!...Ainda bem que o Filipinho não guarda os sonhos só para ele, e vem contá-los para nos encantar!
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