quinta-feira, 19 de abril de 2012

126. Ismael (45) - Ligações perigosas



Quando Jürgen Grass jurou sob sua honra e da dos Grass, família proeminente da Renania –Westfália  e amicíssima da  família Schneider, uma abastada família de banqueiros, artesãos e alfaiates judaica, seus vizinhos e ainda aparentados devido ao casamento de uma prima afastada de Jürgen com Ismael Schneider o principal alfaiate de Remscheid que, se algo lhes acontecesse durante a guerra, ele próprio se encarregaria de converter em ouro todos os bens antes que as SS o conseguisse e que depositá-lo-ia numa conta na Suíça cujo número estaria suficientemente camuflado para que ninguém o descobrisse e também que, ainda sob compromisso de honra, custasse o que custasse, passe a atualidade da expressão, percorreria Seca e Meca, passe aqui  a ironia da expressão, até que encontrasse um familiar dos Schneider  a quem confiar tão presumível fortuna, estava longe, muito longe de imaginar que numa viagem que não parecia ser de risco, dada a conhecida neutralidade suíça,  que entre Chur e Lugano, viesse a ser vítima de um traiçoeiro assalto que entre uma mala com um acordeão, uma pequena bolsa com duas sandes de frankfurter-würstchen e uma weiss bier, uma par de militärstiefel, ainda haveria de ficar sem um cordão fino de ouro com uma medalhinha, onde fora colocada uma fotografia em ponto pequeno de Nossa Senhora. E porque é que se diz aqui que o assalto fora traiçoeiro? Será apenas intenção do escritor e por vezes narrador de contos adjetivar o assalto? Não nos parece e para que não restem dúvidas que nesta novela e tampouco nos contos que fazem parte desta coletânea de coisas que ora são contos, ora não são, não se gastam adjetivos em vão, cá vai a explicação de porque é que esse assalto foi traiçoeiro.

Faz o narrador aqui um parêntesis para lamentar que a cronologia tenha obrigado Fernandinha a viajar até ao futuro, a saltar vinte anos para a frente, deixando para trás tudo quanto de bom trouxe a esta novela, nomeadamente os pasteis ou bolinhos de bacalhau como são chamados no norte do país e também nomeadamente a sua permanente coscuvilhice, a querer sempre saber o que se passa com o desenvolvimento do crime e ainda nomeadamente com o seu pseudoflirt com Sebastião, o marinheiro, pois que como é bom de ver nunca poderia ter acontecido e, finalmente, nomeadamente um avental novo que ao escritor tanto trabalho deu em encontrar a condizer com a decoração das paredes da tasca do meu amigo e seu patrão Ismael Gusmán. Mas isto são contingências de um não-livro, de um quase não-blog e definitivamente um não-pastel de bacalhau, o que nos obrigará a falar provavelmente de moqueca de camarão, de pita shwarma ou de polvo em molho vinagrete o que também não é petisco de se jogar fora. Feito que está o lamento, retomemos o que da viagem de Jürgen Grass da Alemanha a Israel , com passagem pela Suíça, Itália, Grécia, Turquia e Chipre, nos interessa e diga-se, em abono da verdade, algo efetivamente nos irá interessar.

Viajava então Jürgen numa confortável carruagem proporcionada pela Wagon-Lits quando conheceu no bar-restaurante um simpático italiano que, apesar de vestir uma camisa negra, não lhe motivou nenhuma desconfiança. A guerra já tinha acabado e apesar de ainda não ter sido inventada a minissaia nem o biquíni pequenino às bolinhas amarelas, cada qual veste aquilo que muito bem lhe apetecesse e ninguém tem nada a ver com isso. Eu por exemplo, estou a escrever este texto em roupão, com os chinelos de quarto enfiados. Mas se estivesse descalço, o que é que alguém tinha a ver com isso? Conversa para aqui, conversa para acolá, às tantas já estava o nosso Jürgen com três canecas de cerveja no bucho, daquelas canecas de litro e o nosso vígaro italiano a pedir-lhe vinte paus emprestados que lhe pagaria no sábado, quando recebesse a semanada lá da fábrica, etecetera e tal. E é aqui que se dá a traição. Depois de se ver com os vinte paus no bolso, que naquele tempo eram em francos suíços, vinte paus de franco já estão a ver o balúrdio que era,  e depois do Jürgen ter pago do seu bolso, coitado, a despesa que fizeram no bar e que, pode o narrador garantir, ainda custou uma nota, porque nos restaurantes dos comboios a coisa não é barata, principalmente nas carreiras internacionais, mais ou menos ao preço que pagamos, hoje em dia, nas nossas áreas de serviço, não é que o italiano gama o que acima foi descrito e ainda um relógio de pulso que tinha sido comprado horas antes na gare de Berna, ao pobre do alemão, enquanto este dito cujo alemão estava a tirar uma soneca, a ressonar e tudo, à conta das bejecas bebidas e depois desaparece mesmo com o comboio em andamento? Por sorte ou coincidência, apesar da Margarida Rebelo Pinto dizer que as não há, uma senhora que costumava fazer as limpezas das carruagens e que por acaso estava a gozar um dia de feriado, quando viu o alemão a blasfemar em alemão, praticamente a grunhir e a dizer uma montanha de asneiras tais como «f.…-se, uma destas é que eu não estava à espera, car…», mas isto tudo em alemão, o que nem dá para traduzir completamente porque parece mal, ter exclamado em voz alta para quem a quis ouvir, «isto só pode ter sido obra do senhor Vicentini», mas em suíço-alemão que é ainda mais complicado de traduzir.

Ora, Francisca que não perde pitada destas coscuvilhices, aproveitou logo a deixa para insinuar no seu manuscrito que, apesar das vicissitudes da viagem, Jürgen seguiu até Israel, não antes de ter passado por Atenas, para ver, segundo a própria Francisca que é pouco dada a estas coisas da História e dos fenómenos da Natureza, os estragos que a guerra fez nos monumentos, pois parece que aquilo estaria tudo em ruinas, com o objetivo de reunir com a Mossad. «Ora a verdade, segundo Francisca, e ela é uma mulher muito bem informada nestas coisas, se calhar sabe muito mais do que diz», dizia o jovem Espinheira sentado num banco ao balcão da tasca e conversando informalmente com o meu amigo Ismael Gusmán, «é que consta por aí que nem Ishmail Baruchi é tio de Ismael ben-Avraham, nem este é sobrinho do primeiro, bem entendido. E se assim for, talvez sejam agentes secretos à procura da medalha. Só não sabemos bem, porque está difícil de descodificar no manuscrito, porque é que ele só falava numa sobrinha chamada Raquel, que há muitos anos vivia em Portugal e era especialista em peixe de assar na brasa».

«Com peixe na brasa ou com ervilha e ovos escalfados quem pagou as favas foi a Isabella, essa é que é essa. E logo com sete facadas», rematou o meu amigo Ismael, limpando as mãos ao avental azul preso à cintura e desviando-se para ir aviar mais um copo a um freguês que tinha acabado de entrar na taberna. «E um piresinho de torresmos, faxavôr», pediu o cliente.


7 comentários:

  1. O freguês que entrou não era eu... eu tinha acabado de sair, meio baralhado com o que acabara de ouvir.
    Esta narrativa está-me a dar a volta à cabeça... e já perdi a esperança de a Francisca ser arrumada... (só se for à facada, como a outra, aquela coitada)

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  2. Como isto agora mete agentes secretos e tudo, se tivesse a mania da perseguição diria que "bolinhos de bacalhau como são chamados no norte do país e também nomeadamente a sua permanente coscuvilhice,a querer sempre saber o que se passa com o desenvolvimento do crime" para além se aplicar à Fernandinha, que viaja no tempo, também podia ser para mim, que estou de pijama e meias de algodão a coscuvilhar novamente...*

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  3. Depois do frankfurter-würstchen e duma weiss bier, só mesmo os apetitosos bolinhos de bacalhau que apareceram a meio do texto, me permitiram matar uma fome de um dia que me vinha apertando o estômago...

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  4. Pois...se estivessemos no Verão eu estaria a ler esta embrulhada de pé descalço. Assim, estou toda enchouriçada de roupão e mesmo assim ainda sinto calafrios!

    Com alemães à mistura as ligações tinham mesmo que ser perigosas.
    Hoje, tudo me está a correr mal aqui na tasca!

    Quando entrou o freguês que pediu o "piresinho de torresmos, faxavôr" vi que era um velho amigo meu e convidei-o para a minha mesa. Afinal, quem comeu os torresmos fui eu!
    Isto de tu influenciares a alteração dos hábitos dos fregueses com essa mania de meteres gente estranha na história, a comerem coisas com nomes esquisitos, é no que dá! Até o que é nacional deixa de ser bom.

    Sendo assim:
    -Ó amigo Ismael, traga-me lá uma moqueca de pita shwarma, please!
    Também tenho que me estilizar, e já agora fico a conhecer o sabor que isso tem!
    Por causa de snobismos, lá vai o Gúsman ficar com a giga da sardinha para dar ao Schubert.
    E a culpa do prejuízo é toda tua, Constantino...

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  5. Vítor, já pensou em colocar os seus relatos num livro? Pense nisso...

    bjs

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  6. Ai, que isto está cada vez mais complicado! :)

    Beijocas!

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