Parecia que nunca se passava nada naquele pequeno espaço. Na verdade não era tão pequeno assim como se possa pensar, pois o navio era um super-petroleiro e os super-petroleiros não são pequenos. Mas a dimensão é uma coisa relativa e, um navio daquele tamanho, diria mesmo, daquele super tamanho, não era mais de que uma gota, uma pequena gota, nessa imensidão oceânica. Pois, de onde vos retiro esta história, é ainda de um espaço mais pequeno. Tudo se passa entre o porão e o convés, no porão e no convés.
Como costumava, levantou-se poucos segundos depois de o seu despertador ter gritado a plenos pulmões, se assim se pode falar de uma campainha estridente, incomodativa e que toca sempre quando nos parece inoportuno e quando ainda achamos que estamos no primeiro sono. Mas se o hábito não faz o monge, ele não confirma o ditado. Acostumou-se a levantar-se de um salto aos primeiros acordes da campainha pois, para ele, não havia coisa mais sagrada do que a hora do almoço. E, assim, apesar de ter adormecido quando o Sol já rasgava o horizonte, levantou-se e espreitou pela vigia. O mar estava calmo e uma ligeira névoa cobria o horizonte. À parte o zumbido que se ouvia das turbinas, capaz de abafar alguma voz a pouco mais de dez metros de distância, passe a ironia da afirmação, quase se poderia dizer que o silêncio era ensurdecedor. Depois, escanhoou-se a preceito, demorou, como sempre se demorava num banho morno e revigorante, vestiu camisa aos quadrados e calças jeans (mais tarde haveria de regressar ao camarote para trocar de roupa, a fim de se apresentar no trabalho) e desceu ao refeitório. Naquele dia, uma quinta-feira a refeição iria ser melhorada, como era melhorada todas as quintas-feiras. E aos Domingos também.
Antes de começar a comer, pensou no quanto estava longe de casa, há quantos meses não via sequer os contornos da costa, saudades dos pais e dos irmãos, saudades da namorada. E agradeceu a Deus por a viagem estar a correr muito bem, pela saúde e bem-estar de que usufruía e, hoje particularmente, pelos camarões grelhados à la planche cujo aroma já tinha atravessado anteparas e excitado as suas bem treinadas células olfactivas. Depois seguir-se-ia uma bela posta de pescada cozida com brócolos e uma mousse de chocolate. Um café terminaria a refeição mas, como o trabalho estava a espera, hoje não beberia o delicioso licor de ginja, especialidade da terra do comandante. Comeu sozinho e em silêncio (àquela hora só almoçavam ele, o piloto e o Félix; o piloto estava como uma úlcera gástrica e o Félix ainda não tinha aparecido), como silenciosa era a manhã. Apenas o tal som do despertador que ainda não lhe tida abandonado a cabeça e o referido zumbido das turbinas. Talvez por isso, deu-lhe de repente uma sensação de sono. Pudera, com tão repimpada refeição outra coisa não era de esperar. E pensou que o que saberia bem agora, era um outro banho de água morna para ver se despertaria de uma vez por todas. Só que isso seria impossível. Não só porque começava a fazer a digestão, mas também porque não tinha mais tempo do que o de subir ao camarote, trocar de roupa e descer à casa da máquina para pegar ao serviço.
E neste corrupio de pensamentos (penso que terá sido Dostoievsky que terá dito que os pensamentos chegam-nos à velocidade de um comboio que por vezes descarrila e isso é perigoso,) lembrou-se que hoje era dia de entrarem no Mediterrâneo, iria ver de novo terra, iria passar o estreito de Gibraltar, quase poderia tocar na África e na Europa ao mesmo tempo e aí, aumentaram as saudades, tão perto e tão longe de casa. E haveria a praxe. Sim a praxe, pois seria a sua estreia de Mediterrâneo e os colegas não iriam, com certeza deixar passar o evento, sem o inevitável baptismo. E baptismo mete água, é secular, e água quer dizer banho. E ele seria praxado e levaria um banho de todo o tamanho e a preceito. Restava-lhe portanto fintar o destino ou deixar que isso acontecesse naturalmente.
O Félix era o seu camarada de quarto. Entraram simultaneamente ao serviço e, ao contrário do que era habitual, falarem sobre as condições de serviço, o Félix atirou:
- Já foste ver as focas?
Cheirou-lhe de imediato a esturro. Primeiro porque estávamos a atravessar o estreito de Gibraltar e, focas no Mar Mediterrâneo não lhe parecia verosímil. Em segundo lugar, o Félix, que não tinha ido almoçar, ainda vinha estremunhado a esfregar os olhos, como quem tivesse acabado de acordar, se tivesse vestido à pressa e corresse escada abaixo, sem sequer olhar para o lado para não perder tempo em chegar ao trabalho.
- Não, não fui, respondeu ele, não tive tempo.
- Então vai já, porque daqui a uma meia hora já não se verá nada.
Saiu respirando desconfianças. Pé ante pé, percorreu os caminhos onde não houvesse varandins superiores, de onde um balde água lhe pudesse fazer a surpresa. E não eram baldes pequenos. Menos de vinte litros não seriam com certeza. Seria um banho e peras. E quando chegou ao convés, olhou, saiu pela porta de bombordo e, nem sombra de focas se vislumbravam. Difícil seria agora chegar a estibordo. Não que pela ré não o pudesse fazer sem perder muito tempo. Mas o risco de ficar exposto ao tão esperado, como indesejado por inoportuno, banho, aumentaria exponencialmente e para isso ele não estava disponível. Voltou para trás, regressou à casa da máquina, reencontrou o Félix, que sem parecer sequer admirado por vê-lo tão enxuto, lhe perguntou se tinha gostado.
- Não vi nada. Se calhar já passou.
O Félix, pegou no telefone, discou o número piloto, perguntou-lhe se ainda se viam as focas.
- A estibordo? Obrigado. E desligou
Ele saiu de novo, do mesmo jeito que da primeira vez. Tomou caminhos simétricos mas não com menos cuidado. Saiu a porta de estibordo e lá estavam elas. As focas.
Durante alguns minutos usufruiu do espectáculo das focas a brincarem. Metade desses minutos completamente encharcado. Felizmente a água estava morna. E despertou para mais uma tarde de trabalho.
Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.