quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

222. Bolo de Natal



Ingredientes:

Um fardo de palha
Um burro
Um bovino de raça barrosã
Um homem
Uma mulher grávida
Uma garrafa de coca-cola
Um Pai Natal barrigudo
Um centro comercial
Um menino descalço
Um menino calçado

Tempo de preparação: menos de 24 horas

Numa barraca qualquer, entre Nazaré e Belém ou mesmo na margem sul, desapertam-se com cuidado os arames do fardo, não vá o vento tecer indesejáveis sopros, e espalha-se a palha pelo chão. Cuida-se para que o burro esteja de ventas tapadas pois se a cheira lá se vai a cama da criança. À vaca, quiçá boi, aconselha-se que esteja de dieta, que só coma produtos à base de soja transgénica, para que esta também não desate a ruminar palha seca de centeio e forragem.

Enquanto a palha assenta, um dos segredos deste preparo, dão as dores do parto à mulher grávida e o homem que se chama José desata aos Ai Jesus onde é que eu me vim meter e puxando dos galões de mecânico encartado mas que não passa faturas, Ainda se fosse uma motorizada ronceira a deitar fumo negro pelo escape ainda vá lá e, tentando imitar o outro, Ou até mesmo a fazer uns armários novos de cozinha, mas assim de repente a servir de parteira é que não sei mesmo para onde hei de me virar.

Uma meia hora depois da palha espalhada deita-se a mulher num cantinho confortável, onde o bafo de vaca, quiçá de boi, pois que o sexo não foi determinado nos ingredientes, a aqueça, já que este mês de Dezembro não está muito chuvoso, nem muito frio, mas mais logo, a noite não é de se fiar.

Entretanto enquanto o homem anda de um lado para o outro, para não arrefecer, já  que a caminhada o manterá na temperatura ideal, Ai Jesus, ai Jesus, acendam-se as luzes do centro comercial pois já à sua volta vai um corrupio de gente babada por tão deliciosa receita. Só falta mesmo a mulher, que por acaso se chama Maria, dar também ela à luz, que as montras já deram.

Coloca-se o menino calçado a chupar duas palhinhas numa coca-cola enquanto a mamã o senta  ao colo do Pai Natal barrigudo, de vermelho vestido como o rótulo da bebida, sem perigo de se queimar pois este é inofensivo, não é pedófilo só porque anda com as criancinhas ao colo. Quando esta mistura, menino calçado, coca-cola, Pai Natal barrigudo, estiver quase pronta começar-se-á a atingir o ponto consola PS4, que o menino calçado pediu. Quem não se consola, é o José que ainda anda de um lado para o outro aos ais. Reservemos então José para mais tarde, mas nunca menos que morno.

Preparemos agora em banho Maria a finalização do prato, perdão do parto. Deixem-na gritar agora por uns momentos, tragam água quente para a lavar e para lavar o menino descalço que vai nascer, há de chamar-se Francisco que é o nome do avô,  enrole-se o menino descalço nuns panos para que não arrefeça. Encoste-se o produto final ao bafo da vaca, quiçá boi, e do burro que não tocou na palha.


Lá fora, enquanto os vossos companheiros ou companheiras pensam nas anjinhas celestiais de Victoria Secrets ou sonham com os Bombeiros de Setúbal e entoam mentalmente um jingle bells, com um copo de whisky e duas pedras de gelo, ou com um licor Beirão, vá à varanda e veja a nova estrela que nasceu no céu. É que, se nasceu descalço, no meio da palha e é um menino, então está pronto o Natal.  Provem porque o nascimento é mesmo uma confeção deliciosa.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

221. A bruxa Josefa



A bruxa Josefa

Sorrateiramente, sem dar os bons dias a ninguém saía Josefa de casa todas as manhãs, bem cedinho. Sem dar os bons dias a ninguém era uma maneira de dizer porque ela, pela sua própria boca, eram as outras pessoas lá da aldeia que lhe viravam a cabeça e fingiam não a ver. Estava sempre preparada para uma boa intriga e então com a vizinhança nem se fala. Sabia-se que ela era invejosa, trapalhona, mau-caráter, ensarilhadora  de perfeição, e até se afirmava à boca pequena, não fosse o Diabo tecê-las, que aquela mulher, a Josefa da Arminda, que Deus lá tenha a alma em descanso pois era uma santa de uma mulher e logo houvera de ter tido uma filha assim, era uma bruxa. Na aldeia, onde outras pessoas gostam também de fazer meia e liga a par das conversas sobre a vida alheia não havia quem não falasse mal de Josefa, poucas lhe queriam bem, pois gente de Satanás, longe da porta, longe da porta. Houve um casamento que se desfez com o noivo já no altar da igreja, uma jovem que se afogou na ribeira, sem que se lhe conhecessem problemas de cabeça, dois pastores que dispararam um no outro por causa da morena Jacinta, ainda por cima desdentada, uma manada de vacas solta a meio da noite que invadiu as estradas e fez com que o jipe da GNR se tenha despistado e caído numa vereda, a mulher do Dr. Bernardes, vejam lá tão bom médico, coitado, que fugiu com um caixeiro viajante e tantos outros sarilhos à conta das intrigas que diziam serem obra da Josefa que se aqui se fossem a relatar todas, qualquer um de vós arrepiaria caminho antes de passar às portas daquela aldeia, que é como quem diz, passariam a léguas. Todos os dias Josefa saía manhã fora, direita aos campos, ninguém sabia de como se sustentava ou quem a sustentaria, pois homem nunca fora visto a galgar-lhe a cancela e só voltava quando a  alcofa de vime abarrotava de ervas e ervinhas, arbustos e bagas, algas da ribeira e até de fungos que se diriam incomestíveis. Houve quem jurasse tê-la visto chegar, um dia, com uma cabeça de porco sangrante, ela que não criava bichos e ninguém nas redondezas se queixara de roubo, dentro da alcofa e outros que não, que não seria porco, mas também que sim que poderia ser e então galinhas nem se fala pois que raro não era que apareciam nos galinheiros com as cabeças cortadas, principalmente as pretas e pedreses, coisas do escuro da noite e aquilo, jurava-se, não era coisa da zorra, antes obra do demónio.

A verdade, verdadinha , é que o cheiro das sopas e dos caldos que provinha da casa da Josefa, daquele caldeirão fumegante, supostamente negro como seriam negras as rezas da misteriosa mulher, perfumes silvestres à mistura com cheiros de enchidos de carne cozida, deixava todos os fins de tarde a aldeia hipnotizada. E no meio de cada casa, nos quintais ou azinhagas, parados e petrificados como que por encanto, porque se sabe já que Josefa é uma mulher especial que além de intriguista é uma verdadeira bruxa, pareciam mais mortificados do que os mortos, casais e filhos de casais, casais sem filhos, homens e mulheres solteiros e solteiras, novos e velhos e outros muito velhos, com as cartas da bisca na mão sem a poderem jogar nas mesas de granito da taberna, crianças em frente a uma bola ou um arco ou um pião sem se mexerem, os músicos num mudo e triste silêncio numa estranha estatuária em cima do coreto, cães que não ladravam, gatos que não miavam, galinhas que não cacarejavam, alimárias que não zurravam. Na aldeia só se ouvia a voz monocórdica e zumbida de Josefa a cantar e as sombras de uma dança à volta do caldeiro e ao longe, lá muito longe nos confins da serra, quando o vento era de feição o som dos lobos a uivarem.

© Vítor Fernandes

sábado, 27 de junho de 2015

220. Em defesa do Acordo Ortográfico de 1990.


Esta será a minha última intervenção pública sobre o AO de 1990. Não mais me pronunciarei sobre ele, nem em artigo de opinião, nem em comentários às publicações pró e contra que são feitas nos mass media incluindo as redes sociais. Não participo em cruzadas. Reservo-me o direito de em tertúlias de amigos, poder defendê-lo em off, sem qualquer azedume e cuja discussão culmine sempre com um "Viva a língua portuguesa!" e, de preferência, com uma saudação num copo de bom vinho tinto. Português, é claro.

Até ao início do século XX, tanto em Portugal como no Brasil, seguia-se uma ortografia que, por regra, se baseava nos étimos latino ou grego para escrever cada palavra: phosphoro (fósforo), lyrio (lírio), orthographia (ortografia), phleugma (fleuma), exhausto (exausto), estylo (estilo), prompto (pronto), diphthongo (ditongo), psalmo (salmo), etc.

(retirado da wikipédia)

Em 1910, logo após a implementação da República foi criada uma comissão, onde, entre outros, pontuavam , Carolina Michaëlis, Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, vultos incontornáveis da cultura portuguesa, para que se estabelecesse uma ortografia simplificada a usar no ensino e nas publicações oficiais. Em 1 de Setembro de 1911 a Reforma Ortográfica é oficializada e prevista a sua implementação até 1913.

Tal como hoje, houve grandes escritores e poetas a insurgirem-se contra esta reforma. De Alexandre Fontes, Teixeira de Pascoaes a Fernando Pessoa não se deixaram de ouvir comentários, críticas e a escreverem-se peças como a que transcrevo da autoria de Fernando Pessoa:

"Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse".

Ora a verdade é  que a maioria da obra de Fernando Pessoa é publicada a título póstumo (em vida publicou quatro obras, que apesar de a "sua pátria ser a língua portugueza", ou talvez por isso, três delas fê-las publicar em inglês), acabaram por ser publicadas mais de uma vintena de anos após a Reforma e, como tal, segundo a "nova" grafia. Está obviamente por saber se tivessem sido publicadas com a grafia anterior a 1911 se Pessoa teria sido lido como foi ou se se continuasse a publicar nessa mesma grafia haveriam mais do que colecionadores a adquiri-la. Mas isto é especulativo e não vou por aqui.

Dizem os anti-AO de 1990 que este Acordo foi imposto por decreto. Se isto não fosse uma coisa séria daria vontade de rir. A Reforma de 1911 foi imposta por decreto a posteriormente o AO Luso-Brasileiro, é assim exatamente que se designa, de 1945 foi  igualmente imposto pelo decreto-lei 35228 de 8 de dezembro de 1945.
"Está bem", dirão alguns, "foram todos por decreto lei mas agora temos fatos e não factos, espetadores e não espectadores". Pois temos se escrevermos no Brasil. Basta ler o AO em vez de vir para as redes sociais escrever amén! Temos factos e espectadores em Portugal. Porque se a discussão é a perda da etimologia latina e grega então remeto-vos de novo para Fernando Pessoa ou mais simplesmente para Teixeira de Pascoaes "Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal".

Se é desta forma de escrever português que os atuais anti-AO têm saudade (saudade do que nunca escreveram, claro) então sim, dou-vos a minha palmada nas costas de solidariedade, embora não lacrymeje convosco. Agarram-se então a quê os que estão contra o acordo? Já vi muitos brasileiros chorarem a perda do trema. Deixam de escrever lingüiça e cinqüenta. Oh que drama! Querem ver que passarão a contar de quarenta e nove para sessenta e não mais matarão porcos? E os portugueses? Caem do hífen abaixo?

Pois eu, meus amigos, pagarei a mesma multa se for em excesso de velocidade numa auto-estrada ou numa autoestrada. Dessa ninguém me livra e que se lixe o hífen. E já agora, daqui a trinta anos, quando todos passarmos a escrever (ou não) segundo o novo AO, quero ver todos os meus amigos escritores que hoje arvoram a defesa da língua de Camões a escreverem como se escrevia no século XVI. Eu terei dificuldade em ler-lhes as suas belíssimas obras, confesso.


PS. Já se esta raiva anti-AO for ideológica, aí não tenho opinião. Há, de facto, muita gente saudosa de Salazar e dos seus decretos-lei. Eu por mim dispenso.

terça-feira, 9 de junho de 2015

219. Um déjà-vu ou hoje na fila dos correios


Pareceu-me mesmo a voz do Xico

Xico é um cão. Um pequeno chihuahua  de quem a dona, uma francesa famosa desde que foi protagonista de um romance de ficção, não descolava. Não podia o pobre bicho ir fazer chichi  ou cocó que a francesa não fosse com ele. Até naquelas intimidades que os pequenos bichanos têm com as minúsculas bichanas da sua raça, ela tinha de estar presente. É claro que o Xico ia aos arames, como se diz na gíria popular, ou talvez em francês aller aux petits fils. E portanto o Xico ladrava uma vezes e rosnava outras. E ela, a francesa, achava-lhe uma gracinha, ao seu chien, ao Xicô, como ela tinha a mania de pronunciar, sem saber se o Xico ladrava de contentamento ou rosnava de aborrecimento já que a sua voz se confundia ou o bicho é que era confuso.
Estava hoje eu na fila dos correios, com o fito de expedir mais alguns exemplares do meu último romance, quando, atrás de mim, uma senhora francesa conversava, em francês, está claro, com o companheiro acerca de não sei o quê, pois isso não me interessou, apenas aquela pronúncia me parecia familiar. Tremi e um pouco timidamente voltei-me. Dou de caras com uma senhora que em nada era parecida com a "minha" francesa. Disfarcei, trocamos sublimados olhares, cada um retomou a sua compostura, mas da bolsa de tiracolo, soou a voz esganiçada e ameaçadora de um chihuahua. Ou aquilo foi mais um dos meu dejá-vu ou então era ele. É que pareceu-me mesmo a voz do Xico.

© Vítor Fernandes

domingo, 31 de maio de 2015

218. Quem não gosta que falem bem do seu trabalho?



Um livro muito engraçado, misto de humorístico e de policial. Está recheado de gagues, de apartes, de alfinetadas políticas, de situações hilariantes que deixam o leitor bem disposto. Quem leu o livro "Sete Facadas e Carapaus de Escabeche" sabe do que estou a falar.

Desta vez, tudo se passa entre 26 e 27 de setembro de 1998, as 24 horas mais alucinantes do já nosso conhecido Constantino, escritor e narrador, curioso que baste e que, por isso, se mete em enrascadas, como foi o caso. Tudo por causa de um manuscrito encontrado dentro da caixa ainda selada de um monitor de computador, de origem um pouco duvidosa.
Em busca de saber se o manuscrito, que parece muito antigo, terá algum valor, Constantino vai a Paris, onde tem encontros mais do que imediatos com as mais estranhas personagens, como a sinopse muito bem descreve.
Depois de rocambolescas aventuras, num ritmo alucinante medido ao cronómetro, tudo acaba da maneira mais inesperada e indesejada. Até fiquei com as minhas dúvidas se tudo não passou de um sonho do Constantino Sednanfer, que é como quem diz, o alter ego do autor.

Só tenho um reparo a fazer. É uma pena que os autores iniciantes tenham de se sujeitar a fazê-lo com orçamentos modestos, através de editoras com poucos recursos, muitas vezes às suas próprias custas, se querem ver os seus trabalhos publicados. Este nem é um dos piores casos, porque a Pastelaria Studios até é muito profissional com os seus parcos recursos. Mas as obras acabam por sair com gralhas e com uma formatação do texto pouco apelativa e que dificulta a leitura.

De qualquer modo, é um livro que se lê bem, que dispõe bem e nos dá umas horas bem passadas. Será que vamos ter novas histórias do amigo Constantino? Espero que sim.

Crítica de Sebastião Barata 

"Há fogo na doca", © Vítor Fernandes / Pastelaria Studios Editora (2015)

quinta-feira, 30 de abril de 2015

217. Frágil mocidade



Frágil mocidade

Outros tempos, outros usos. No entanto, pouco deverá ter mudado na mentalidade do ser humano. Nada, diria mesmo, no que respeita a sentimentos, a paixões, a inocências perdidas. A avó, crítica feroz de toda a modernidade, casara grávida sem ninguém saber, a não ser os seus próprios pais. Mais tarde ameaçava esbofetear o primeiro ou a primeira que lhe jogasse isso em cara. Severa no porte, era a última a sentar-se na cabeceira da mesa, desde que enviuvara e, mal chegava, logo a família se punha em pé para a receber. Depois sentava-se, sentavam-se os outros e agradeciam a Deus mais uma refeição. Não se comia antes de se rezar, nem ninguém se levantava da mesa sem, divinamente, agradecer a refeição.

Dona Maria Amélia, Melita na intimidade, nasceu numa família remediada da serra algarvia. Os pais eram rendeiros abastados, em abono da verdade, o pai. A mãe, senhora de muitos dotes, era mulher de casa, tocava piano, instruía a criadagem,  fazia as contas da casa, coisa rara naquele tempo e bordava, dedicando a maior parte do seu tempo ao enxoval das filhas. Os lençóis de linho, bordados por ela, brilhavam no meio do mais fino bragal. Todo o dia metida em casa mas, mesmo assim, não menos atenta,  as ausências de Melita nunca lhe passaram despercebidas. Ir ao poço ao cair do dia, não ficaria bem, se não fosse acompanhada de Genoveva a fidelíssima criada e na carroça do Manuel Penteado, o cocheiro que já fora dos seus pais.  Nada poderia acontecer à sua filha.

Dona Maria Amélia, tinha os olhos rasos de lágrimas. Uma mulher de sessenta anos chorava com o daguerreótipo de sua mãe encostada ao peito. Lembrava-se dos seus vinte anos, da sua mais pura ingenuidade, da fragilidade da mocidade de então. Tinha ido na conversa bonita, quase poética, do seu amor de uma vida. Ildefonso tudo lhe prometera, mas a promessa de que ela seria a mãe dos seus filhos caiu-lhe no mais fundo do seu íntimo. E nem Genoveva, nem o cocheiro, que se entretinham um com o outro, evitaram o inevitável. Depois, Ildefonso partiria, emigrando sem dar água vai, nem água vem. Apenas um telegrama quando já se albergara por terras de França. Os pais de Maria Amélia, socorreram-se de um primo afastado, um tipo que embora fosse um pouco "poucochinho" e fraco de tino, tinha algo de seu por generosa herança,  que garantiria qualquer coisa que se visse a Maria Amélia. Ninguém saberia, nem soube, que o pequeno Afonso não era filho do primo Manuel do Ó. Dona Maria Amélia chorava agora agarrada à imagem emoldurada da senhora sua mãe. Não. Sandra não sofreria a mesma humilhação que ela. Se a sua neta quisesse ter o bebé que o tivesse. Afinal as fragilidades da mocidade eram iguais às do seu tempo, mas ela, apesar de toda a sua austeridade, não tinha já nada a ver com aquela bonita bordadora que um dia, para salvar a honra do se sua casa e a reputação do seu remediado e prestigiado marido, que cofiava o bigode em salões dançantes e em bordeis de espanholas a fizera casar com o já falecido Manuel do Ó, seu primo e pai de seis dos seus sete filhos. Que Deus lhe tenha  alma em descanso.

©Vítor Fernandes

30/4/2015

terça-feira, 28 de abril de 2015

216. Teoria musical




Teoria Musical

Ele bem se esforçava. Primeiro comprou uma pandeireta, depois duas maracas e mais tarde um berimbau. Havia de aprender música nem que para isso, toda a biblioteca da FNAC, da Bertrand ou da Leya ficassem esgotadas dos manuais do mestre Eurico Cebolo. Ao reparar que tinha alguma queda para os ritmos não hesitou, depois de soprar no saxofone, tocar acordeão e xilofone com bastante esmero, comprou uma viola e uma guitarra portuguesa.

Naquela manhã o meu colega Inácio Pedro estava lívido. O ar alegre que punha quando entrava no escritório a assobiar uma polka num dia, uma tarantela ou um tango no outro, uma zarzuela ou um samba ou bater com o lápis no computador para acompanhar uma imaginária bossa nova, um irreconhecível bolero ou a cantarolar uma ópera heroica, tinha desaparecido. Pensávamos todos que horas e horas a dar folga ao sono, estudando colcheias e semicolcheias,  acordes maiores e menores, tónicas e dominantes, escala uniformes e biformes, compassos de espera ou de silêncio e até enarmonia nos acordes de sétima diminuta, lhe tinham dado a volta à cabeça e o rapaz se tivesse passado. O Inácio Pedro não só estava lívido mas também nervoso, apático e ausente.

Vim a saber, mais tarde, que o Inácio Pedro nunca se entendeu com a guitarra portuguesa. De um conhecimento circunstancial com um rufia que se dizia, e até parecia, exímio tocador de tão nobre instrumento até metê-lo em casa para lições particulares não demorou um fósforo a arder. Quando naquele dia, por força da paixão e amor à causa, se demorou um pouco mais para trazer umas partituras que um tocador da velha guarda lhe haveria de arranjar, apanhou em sua própria casa o vadio a tocar guitarra no corpo de Rosita, a sua tão bela e dedicada esposa. Nunca mais para ele, um mulher seria como uma guitarra.

©Vítor Fernandes

28/04/2014