terça-feira, 29 de agosto de 2017

229. Alguém foi enganado

Alguém foi enganado

A história que vou contar ouvi-a também assim. Para ser mais exato, ouvi-a mais ou menos assim, pois se quem conta um conto não lhe acrescenta um ponto o melhor é ficar sossegadinho, já que não faz jus ao provérbio. E é por vezes neste ponto que se acrescenta, que se dá ou se retira o dramatismo de uma situação, ora conferindo-lhe uma nota de humor, ora adicionando-lhe um não-sei-o-quê de pesar. E neste conto não vos irei defraudar, resta saber se o que vos narrar vos fará rir ou, quiçá, chorar.
Feito que foi o introito, ou quase, também eu irei meter a foice nesta seara, opinando que o conto encerra qualquer coisa de trágico. Mais tarde mo dirão se assim é ou não e isto se assim vos aprouver. Tragédia mundana que é como alguns sábios a classificam, mas que é cá um dramalhão, lá isso é inegável. Vamos então contar o nosso conto que foi para isso que fui convidado.
Estava a internet, ou melhor, o seu uso, ainda em plena aurora e já a máquina de construir enganos começava a ser oleada. Estudava o Francisco em Lisboa, rapaz pacato e de boas famílias, se bem que de não muitas posses mas, ainda assim, havia entrado na Universidade. Cursava Direito, dizia que apesar do seu curso não iria enveredar por qualquer carreira política, não tinha vocação, o que era verdade, rapaz de perfil baixo, já que o conto é em português e escusa-se o anglicismo, ficará para outra ocasião, pronto, era low-profile, seria tão somente um advogado competente, honesto e trabalhador. Para ajudar a enfrentar a dureza do curso, como qualquer jovem classe média de hoje, o Francisco tinha computador em casa e, como praticamente se pode dizer, ter computador é o principal caminho para se estar ligado com o mundo, então o Francisco tinha também internet. Mas era Francisco um rapaz normal, o computador era um instrumento de trabalho, consultava códigos, lia pareceres, revia legislação, aperfeiçoava-se na ética enfim, tudo o que um jovem estudante de Direito, mas não só, pode ter ao alcance de algumas teclas. Os seus tempos livres eram semelhantes aos tempos livres de quase todos os outros estudantes, sextas-feiras de algumas liberdades, por vezes também os sábados, uma cerveja ou um shot, desculpem, mas aqui só mesmo o anglicismo transcreve fidedignamente a coisa, de vodka ou bagaço, mas tirando isso não se lhe conheciam noites de bebedeiras ou outras más vidas, regressava sempre a casa cedo, os pais não tinham de que se preocupar.
Mas alto e para o baile! E se isto que se acaba de ler, apesar da fluência, não é um corridinho, pode ser um baile mandado pois se quem dita as voltas é o mandador, aqui o dito chama-se computador, refúgio diário do Francisco, mais ainda aos fins-de-semana, está agora explicado porque é que o rapaz, apesar de gostar da farra, regressava sempre cedo para casa e ninguém o podia acusar de vir já com um grãozinho na asa, se disse antes e se confirma, uma cerveja ou um shot e era tudo. Atinado era ele e pronto, está o Francisco caraterizado, vamos à ação que até agora foi pouca.
Ora não se pode dizer que os trabalhos escolares fossem assim tantos ou que o rapaz se empenhava exacerbadamente no seu curso, porque consulta aqui, leitura acolá, o que o Francisco mais gostava era de conversar com aquela brasileira simpática de quem um dia recebeu por e-mail a sua fotografia de rosto, tipo-passe e, mais tarde, passeando-se como uma verdadeira garota de Ipanema, olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, pelas praias do Rio de Janeiro, Ipanema, Copacabana, Angra dos Reis, num corpo escultural, dentro (?) de um reduzidíssimo biquíni, coisa pouco vista nas praias portuguesas, apesar do maravilhoso sol do nosso Algarve. Além dos predicados físicos era culta, educada, meiga e autónoma financeiramente. Dizia-se moça de posses, órfã de pai, que fora morto acidentalmente num fogo cruzado em plena avenida Brasil entre gangues rivais. E o mais importante: apaixonada! E eram tantas as palavras doces, escritas naqueles cibernéticos bate-papos que o Francisco começara a ver telenovelas apenas para poder sentir o sotaque da doçura e a sensualidade das palavras batidas naquelas teclas no outro lado do Atlântico. E eis senão quando, um belo dia que se não sabe se de chuva se de sol, recebe o nosso Francisco uma passagem de avião só de ida, Lisboa-Rio de Janeiro, oferta da sua amada, com todo o amor e carinho. Adeus meu pai, abraço minha mãe, adeus também Faculdade de Direito, adeus Lisboa, ah táxi para que te quero, aí vai o Francisco rumo à Portela, adeus Portugal, tchau a todos que o meu destino está marcado, esta é a hora.
Foi só quando viu, aquela velhinha simpática à espera dele nas saídas internacionais do Galeão, com um pequeno cartaz que dizia "Francisco, Portugal! Estou aqui!" que lhe caiu a ficha e lhe vieram à memória as palavras do pai "Estás aqui, estás a voltar". A bruxa boa, neste caso, coitadinha e apaixonada, era a vovó. A neta estava a leste. E foi aqui, com a mesma determinação do mandador que ele terá pensado: palminhas acabou, mas houve alguém que se enganou.

PS. Este texto obteve uma menção honrosa na modalidade de Conto nos jogos florais de 2017 da UATI – Universidade do Algarve para a Terceira Idade, sob o pseudónimo de Padre António Vidigueira.
PPS. Este é um texto de ficção e totalmente criado pelo autor. Qualquer semelhança com pessoas, factos e locais cruzados é pura coincidência


Vítor Fernandes aka Constantino