quinta-feira, 30 de agosto de 2018

235. O dono da bola - #6. A namorada também ia à bola


Um salto no tempo, um parêntesis na cronologia, futebol a dois, porque no futebol também há amor ou porque pode fazer parte dele. Comecei a namorar com a minha mulher com dezanove anos de idade, ambos já estudantes universitários. Um namoro à moda antiga. Um namoro onde para namorar se pedia namoro à namorada. Um dia, muitos anos mais tarde, perguntei ao meu filho já adolescente, Ouve lá João, como é que hoje se pede namoro a uma miúda e ele respondeu-me, Sei lá pai, não se pede ou então, é assim, é perguntar-lhe se dá para andar e eu, Pois, deve ser isso e calei-me. Nunca me teria passado pela cabeça vinte anos antes ter perguntado à Maria José, Olha lá miúda, dá para andar? Se calhar ela teria ficado a pensar se eu achava que ela tinha sido atropelada por alguma bicicleta ou, sei lá, a saltar para o cacilheiro, na pior das hipóteses e tivesse torcido um pé. Dá para andar? Não sei, se não doer…Não filhote, o que eu pai queria saber mesmo era como é que se pediria hoje em dia (naquela época em que ele era adolescente, e já agora, como é que será hoje?) a uma garota se queria namorar com ele, conversar, pensar numa vida a dois e mais tarde até casar, constituir família, estás a ver? Pois eu pedi namoro a sério e ainda me lembro como foi, mas não vou dar a receita agora. Isso já foi há muito mais de quarenta anos, parece mais mezinha caseira e eu estou aqui é para escrever sobre bola. Só que parece que deu resultado, quase meio século depois aqui estamos juntos, apesar do pai dela, quando começamos a namorar, nem de mão dada achar bem que andássemos, com dois maravilhosos filhos e, para já, três ainda mais maravilhosos netos, quem sabe se um dia destes a contabilidade esteja desatualizada. Apenas uma coisa nos separa. Já não vamos à bola um com o outro. Eu explico.

Durante a semana eram os estudos. A Maria José trabalhava e estudava. Eu não trabalhava oficialmente pois não tinha, por bem dizer, um emprego, embora andasse de empresa em empresa a vender livros à comissão, trens de cozinha, objetos decorativos de cobre e latão, a dar explicações em casa, entre outras atividades e estudava. Não restava tempo. Aos fins de semana alternávamos. Ou cinema ou futebol, isto durante a época porque no verão as saídas eram diferentes. E aqui não era fizesse sol ou chuva. Nas semanas em que o Benfica jogava em casa, os caprichos do S. Pedro não eram relevantes, nem interferiam nas nossas decisões. Piores eram os caprichos da minha sogra, Deus tenha a sua alma em descanso. Mas mesmo esses não nos desviavam os olhos dos remates certeiros de Nené e Jordão, da inteligência e visão de jogo do Vítor Martins, do portento físico do Toni, da elegância e precisão do Humberto Coelho, da agilidade felina do José Henrique. O Estádio da Luz era o nosso destino. O que faz o amor. Ela que até torce pelos leões!

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

234. O dono da bola #5 - O meu primeiro jogo oficial

Durante toda a semana não falei de outra coisa. A minha mãe já deitava futebol pelos olhos. O meu pai, que amiúde me via jogar com os outros rapazes, não me achava nenhum Cavém, nenhum José Augusto, nenhum Jaime Graça e nem, mesmo pela altura, nenhum Simões, mas ainda assim incentivava-me. Achava-me irrequieto, mexido, cheio de vontade e na brincadeira dizia que de vez em quando eu acertava com o pé na bola. E no meio daquela converseta e da minha excitação pelo meu primeiro “jogo oficial”, lá vinham as inevitáveis perguntas sobre os deveres, o que se viria a chamar mais tarde tê-pê-cês, Então e as cópias, já fizeste as cópias? Sim, mãe, já as fiz. Mas não te vi estudar a tabuada. Já estudei, mãe, já sei a tabuada toda. Então quantos são sete vezes oito e eu São cinquenta e seis, mãe, E nove vezes quatro, Trinta e seis, mãe, com ar enfastiado e a pensar querem ver que agora vou ter de responder á tabuada toda, E a lição, Qual lição, mãe? A lição de hoje… Não é preciso, mãe, eu já sei ler aquilo, Tu só pensas é na bola, é o que é, rematava e eu ria e ia dar-lhe um beijo. Mais tarde iria aparecer lá em casa com uma taça, desenhada e recortada em cartolina, pela D. Eduarda a minha primeira professora primária, como troféu do melhor em tabuada, que a encheu de orgulho e que ainda hoje fala nisso, Ainda te lembras, filho? Lembro sim, mãe e ela, Este rapaz tem uma memória…

Naquela semana o mais importante não eram as cópias, nem os ditados, nem a tabuada, nem a lição… era a bola. A primeira classe ia jogar contra a segunda, aquele que iria ser o meu primeiro jogo oficial de todos os tempos. Quando é o primeiro é o primeiro e será sempre o primeiro não haverá hipóteses de haver novamente um primeiro pelo que dizer de todos os tempos é só uma maneira de dizer. O jogo ia ser no sábado e eu estava até com medo de não me meterem na linha porque era o mais pequenino da turma e aquilo era só para calmeirões. Mas enganei-me e foi com grande alegria que me disseram que eu ia jogar. Pudera, deve ter sido coisa da D. Eduarda, olha, olha, logo o melhor a tabuada, ficar de fora. Isso nem lembraria ao diabo.
Linha feita e eu, o Vitinha, ia jogar à defesa. À defesa? Mas eu não sei jogar à defesa, eu sei é correr lá à frente, chutar para a baliza, marcar golos, e depois correr de um lado ao outro do campo, com o punho fechado a gritar goooollllooo, como fazia o Eusébio, e os outros a correrem atrás de mim para me abraçarem, como se faz no futebol a sério e a gente via na televisão do café Marissol. A preto e branco, é claro, mas a gente sabia bem a cor da camisola do Eusébio. Não faz mal a gente ensina-te, disse o Boavida, repetente, oito anos de idade, um veterano! Era o maior da turma, mas era meu amigo e, portanto, ele ia-me ensinar a jogar à defesa. Com uma pedra riscou no chão um círculo já perto da nossa baliza e disse-me, Não sais de dentro desta linha é aqui que ficas e cortas as bolas quando eles vierem e chutas para a frente. Não percebi nada. Então eu não podia sair dali? Não podia pegar na bola correr o campo todo e chutar à baliza? Não podia ir lá à frente? Isso é que era jogar à defesa? Mas está bem, o Boavida é que era o técnico, ali na escola era o meu Bella Guttman e se ele dizia que era assim que se jogava à defesa, então seria assim que eu jogaria. O meu primeiro jogo oficial!

Acabei o jogo a chorar. Não toquei uma única vez na bola. Ninguém passou por mim e eu não saí de dentro daquela rodinha. O Boavida não era mesmo um grande treinador. Mas não deviam de passar por mim para eu cortar a bola? Ou então, não deveria eu ter saído do círculo para ir de encontro à bola? Oito a um! Oito a um! Que desastre! De um resultado assim só me lembro daquele, no dia da inauguração do Estádio das Antas, quando o Benfica foi lá, como convidado, dar oito a um ao FC Porto. Se calhar, nesse dia, não deixaram o Pinto da Costa sair de uma rodinha. 

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

233. O dono da bola - # 4. O dono da bola


Joga sempre, escolhe a equipa, é o capitão, nunca vai à baliza, decide quando é que é penalti ou não, se a bola está fora ou segue jogo, se a bola foi “altas”, isto é, por cima da barra imaginária da baliza e se não ganha… amua. Da próxima vez não escolhe aquela abécula do Pernas para ir à baliza, é alto, mas é um frangueiro do caraças e o Cara-de-Velho não volta a jogar na equipa dele porque é um foção, não passa a bola a ninguém. O dono da bola chega a fazer regras para ganhar legalmente.

O dono da bola, depois de lavar os dentes, vai para a cama e já com o pijama novo vestido, que a tia que mora no Cristo-Rei lhe ofereceu no Natal, reza a oração que avó lhe ensinou “Ó meu Anjo da Guarda, minha companhia, guardai minha alma, de noite e de dia. Com Deus me deito, com Deus me levanto, que seja na Graça do Espírito Santo. Ámen!” e depois, num murmúrio envergonhado, pede baixinho ao Anjo da Guarda para que não apareça mais ninguém que também tenha uma bola de catechu. É que ele não quer, por nada, ir à baliza.


quarta-feira, 1 de agosto de 2018

232. O dono da bola - # 3. Esta sim, era uma bola de catechu


Naquele tempo ter uma bola de catechu era um luxo. Catechu é, naturalmente, um galicismo. Provirá da palavra francesa caoutchouc que significa borracha. Mas cá entre nós as bolas de borracha são uma coisa, as bolas de catechu são outra, nós adotámos bola de catechu para designar as bolas de couro e, pronto, é assim mesmo que se conhecem, apesar de com a evolução dos materiais e das tecnologias as bolas hoje sejam totalmente sintéticas e nada tenham a ver com as bolas com que se jogava antigamente. Curiosamente, quando em condições de tempo adversas se tinha que jogar sobre poças de água ou terrenos enlameados, as bolas ficavam irremediavelmente embebidas que pareciam pesar chumbo, o que lhes consignava o epíteto de bola de “catechumbo”. Era uma perdição para qualquer criança atingir o desiderato de possuir uma bola de catechu. Sim, uma bola igual à dos federados, quer dizer, dos futebolistas a sério, daqueles que até tinham cartão com nome deles e fotografia que lhes permitia entrar à borla nos campos para ver outros jogos, desde que fossem organizados pela mesma associação. Bom, coisa difícil de explicar, mas que me fazia brilhar os olhos quando eu via o cartão de jogador do Tateu, o meu primo, isto é o filho da minha tia Gracinda, que por acaso se chamava Zé, mas que todos os conheciam por Tateu, uma abreviatura de Matateu, já que o Zé, embora sem qualquer raiz africana que lhe fosse conhecida, era um tipo muito moreno e jogava muito bem à bola. Quanto ao Matateu, esse era um jogador africano de excelência e que pontificou nos anos 50 do século passado no Clube de Futebol Os Belenenses. Já as bolas de borracha, acabaram por ser as sucessoras das velhas e artesanais bolas de trapos, com as quais eu nunca joguei, apesar de me recordar que quando ainda garoto, o meu falecido e saudoso pai me as ensinou a fazer. Mas voltemos às bolas de catechu, que um antigo e já desaparecido relator desportivo, da extinta Emissora Nacional, caraterizava como “os quatrocentos gramas de couro insuflável”.

As bolas de catechu de antigamente eram um luxo, mas chegavam, algumas, de qualidade de fabrico mais descuidado a ser um empecilho à boa prática, ou como se diz hoje ao fluir nas transições ofensivas a partir da zona de construção. É que as bolas, no local de enchimento da câmara de ar, ou seja, no pipo, não eram completas. Havia que dar acesso à agulha de enchimento. E aquele pequeno círculo que não fechava a bola, era compensado por uma língua de couro mais maleável que metade cosida à bola era a outra metade enfiada entre o couro e a borracha da câmara de ar sustentando-se pela compressão que esta, a borracha sob pressão de ar, fazia contra couro da bola. Ora se a bola vazasse um pouco, esta pressão era aliviada e a língua saía de fora, pelo que era necessário voltar a colocá-la no seu sítio perdendo-se com isso algum do tempo de jogo. Além deste quiproquó havia já o referido inconveniente do peso da bola, quando ensopada em água. Ora isto era um flagelo para os pés descalços, ou mesmo de sandálias, dos miúdos lá da zona. Depois de secar, a bola acabava por ficar dura demais para os pezinhos das crianças. Portanto para os putos, mesmo para os que sonhavam ter uma bola de catechu, a bola ideal era a de borracha ou até a bola de trapos.

Mas há bolas de catechu e bolas de catechu. Quero dizer, nem todas as bolas de catechu eram iguais e no estrangeiro já havia bolas de catechu muito melhores do que as nossas. Mesmo os clubes de futebol daquela época, só os de maior poderio económico as usavam. Nas divisões inferiores jogava-se muito com bolas iguais às que descrevi. Falo do estrangeiro porque, um dia, o meu foi convidado pelo estaleiro onde trabalhava para ir fazer um curso à Suécia. Sim era um curso, mas que hoje em dia se dá o pomposo nome de “on the job training” o que significa, “não penses que vais para o bem-bom duma sala de aulas e o salário vai-te parar ao bolso no fim do mês”, ou seja, vais bulir e ao mesmo tempo aprender coisas novas. E lá foi ele, nove meses fora da mulher e dos filhos para poder ter um futuro mais risonho. Muitas cartas, muitos postais ilustrados, não raros salpicados de lágrimas sobre a tinta ainda fresca, muitas saudades, muitos beijos e surpresa das surpresas um presente chegado pelo correio, uma bola de catechu. Mas uma bola daquelas que não tinham língua. Uma bola a sério, com o pipo incorporado no couro. Uma bola que não precisava de ser ensebada para que não lhe entrasse a água, uma bola que não pesava como chumbo, uma bola que não nos deitava a língua de fora. Uma bola oficial, caraças! Leitoras e leitores, apresento-vos o novo dono da bola!