sábado, 27 de junho de 2015

220. Em defesa do Acordo Ortográfico de 1990.


Esta será a minha última intervenção pública sobre o AO de 1990. Não mais me pronunciarei sobre ele, nem em artigo de opinião, nem em comentários às publicações pró e contra que são feitas nos mass media incluindo as redes sociais. Não participo em cruzadas. Reservo-me o direito de em tertúlias de amigos, poder defendê-lo em off, sem qualquer azedume e cuja discussão culmine sempre com um "Viva a língua portuguesa!" e, de preferência, com uma saudação num copo de bom vinho tinto. Português, é claro.

Até ao início do século XX, tanto em Portugal como no Brasil, seguia-se uma ortografia que, por regra, se baseava nos étimos latino ou grego para escrever cada palavra: phosphoro (fósforo), lyrio (lírio), orthographia (ortografia), phleugma (fleuma), exhausto (exausto), estylo (estilo), prompto (pronto), diphthongo (ditongo), psalmo (salmo), etc.

(retirado da wikipédia)

Em 1910, logo após a implementação da República foi criada uma comissão, onde, entre outros, pontuavam , Carolina Michaëlis, Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, vultos incontornáveis da cultura portuguesa, para que se estabelecesse uma ortografia simplificada a usar no ensino e nas publicações oficiais. Em 1 de Setembro de 1911 a Reforma Ortográfica é oficializada e prevista a sua implementação até 1913.

Tal como hoje, houve grandes escritores e poetas a insurgirem-se contra esta reforma. De Alexandre Fontes, Teixeira de Pascoaes a Fernando Pessoa não se deixaram de ouvir comentários, críticas e a escreverem-se peças como a que transcrevo da autoria de Fernando Pessoa:

"Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse".

Ora a verdade é  que a maioria da obra de Fernando Pessoa é publicada a título póstumo (em vida publicou quatro obras, que apesar de a "sua pátria ser a língua portugueza", ou talvez por isso, três delas fê-las publicar em inglês), acabaram por ser publicadas mais de uma vintena de anos após a Reforma e, como tal, segundo a "nova" grafia. Está obviamente por saber se tivessem sido publicadas com a grafia anterior a 1911 se Pessoa teria sido lido como foi ou se se continuasse a publicar nessa mesma grafia haveriam mais do que colecionadores a adquiri-la. Mas isto é especulativo e não vou por aqui.

Dizem os anti-AO de 1990 que este Acordo foi imposto por decreto. Se isto não fosse uma coisa séria daria vontade de rir. A Reforma de 1911 foi imposta por decreto a posteriormente o AO Luso-Brasileiro, é assim exatamente que se designa, de 1945 foi  igualmente imposto pelo decreto-lei 35228 de 8 de dezembro de 1945.
"Está bem", dirão alguns, "foram todos por decreto lei mas agora temos fatos e não factos, espetadores e não espectadores". Pois temos se escrevermos no Brasil. Basta ler o AO em vez de vir para as redes sociais escrever amén! Temos factos e espectadores em Portugal. Porque se a discussão é a perda da etimologia latina e grega então remeto-vos de novo para Fernando Pessoa ou mais simplesmente para Teixeira de Pascoaes "Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal".

Se é desta forma de escrever português que os atuais anti-AO têm saudade (saudade do que nunca escreveram, claro) então sim, dou-vos a minha palmada nas costas de solidariedade, embora não lacrymeje convosco. Agarram-se então a quê os que estão contra o acordo? Já vi muitos brasileiros chorarem a perda do trema. Deixam de escrever lingüiça e cinqüenta. Oh que drama! Querem ver que passarão a contar de quarenta e nove para sessenta e não mais matarão porcos? E os portugueses? Caem do hífen abaixo?

Pois eu, meus amigos, pagarei a mesma multa se for em excesso de velocidade numa auto-estrada ou numa autoestrada. Dessa ninguém me livra e que se lixe o hífen. E já agora, daqui a trinta anos, quando todos passarmos a escrever (ou não) segundo o novo AO, quero ver todos os meus amigos escritores que hoje arvoram a defesa da língua de Camões a escreverem como se escrevia no século XVI. Eu terei dificuldade em ler-lhes as suas belíssimas obras, confesso.


PS. Já se esta raiva anti-AO for ideológica, aí não tenho opinião. Há, de facto, muita gente saudosa de Salazar e dos seus decretos-lei. Eu por mim dispenso.

terça-feira, 9 de junho de 2015

219. Um déjà-vu ou hoje na fila dos correios


Pareceu-me mesmo a voz do Xico

Xico é um cão. Um pequeno chihuahua  de quem a dona, uma francesa famosa desde que foi protagonista de um romance de ficção, não descolava. Não podia o pobre bicho ir fazer chichi  ou cocó que a francesa não fosse com ele. Até naquelas intimidades que os pequenos bichanos têm com as minúsculas bichanas da sua raça, ela tinha de estar presente. É claro que o Xico ia aos arames, como se diz na gíria popular, ou talvez em francês aller aux petits fils. E portanto o Xico ladrava uma vezes e rosnava outras. E ela, a francesa, achava-lhe uma gracinha, ao seu chien, ao Xicô, como ela tinha a mania de pronunciar, sem saber se o Xico ladrava de contentamento ou rosnava de aborrecimento já que a sua voz se confundia ou o bicho é que era confuso.
Estava hoje eu na fila dos correios, com o fito de expedir mais alguns exemplares do meu último romance, quando, atrás de mim, uma senhora francesa conversava, em francês, está claro, com o companheiro acerca de não sei o quê, pois isso não me interessou, apenas aquela pronúncia me parecia familiar. Tremi e um pouco timidamente voltei-me. Dou de caras com uma senhora que em nada era parecida com a "minha" francesa. Disfarcei, trocamos sublimados olhares, cada um retomou a sua compostura, mas da bolsa de tiracolo, soou a voz esganiçada e ameaçadora de um chihuahua. Ou aquilo foi mais um dos meu dejá-vu ou então era ele. É que pareceu-me mesmo a voz do Xico.

© Vítor Fernandes