quinta-feira, 25 de outubro de 2018

242. O dono da bola - #13. Golo!


Desde sempre que o golo foi o objetivo, o sumo, o êxtase, o orgasmo de um jogo de futebol. Desde sempre o grito de gooooolllllloooo foi a sua expressão mais almejada, o seu lancinante grito de guerra, o desiderato mais querido do avançado.

A minha mãe dizia-me muitas vezes que eu gostava de empregar palavras de sete e quinhentos que era uma expressão popular para palavras de uso menos comum. No entanto só as comecei mesmo a usar quando aprendi futebolês, uma língua própria que é, muitas vezes absolutamente errada na formulação, mas conceptualmente aceite no meio.

Dentro do campo pelo autor do último chuto, nas bancadas pelo espectador, bastas vezes em incontrolados pulos que o podem fazer rolar nos degraus, abraçado ao vizinho do lado que não conhece e com o qual segundos antes tinha trocada piropos discordando do fora de jogo que foi mas não era, ou que não foi mas deveria ter sido,

 - Foi fora de jogo!
- Lá está este a pensar que sabe mais que os outros…
- Isso é comigo?
- Não é com o outro

abafado num beijo na companheira ou companheiro, que nem torce pelo mesmo clube, mas que vai à bola com ele ou com ela para fazer jeito, ou sozinho em casa saltando do sofá como uma mola, esbracejando e pulando que nem um maluquinho, fazendo a voz ecoar sozinho entre quatro paredes também elas sós, a mulher deixara-o há meses, e uma garrafa de vinho tinto meio cheia,

“ela agora, desde que se pirou com o senhor engenheiro, é mais ténis, a pirosa”

no restaurante entornado a cerveja nas calças do tipo da mesa ao lado, com os amigos em frente ao écran gigante estrategicamente colocado na principal praça da cidade, no carro, preso no trânsito da 2ª circular ou em plena autoestrada para o Algarve gritando junto  com o empolgante e saudavelmente louco relator da rádio, ou até no sossego intimista da casa de banho, quando, durante um ataque da sua equipa sofre ele também um ataque de diarreia e quase sem tempo de baixar as calças, grita golo porque ouviu os outros gritarem lá dentro, na sala, enquanto os amigos saboreiam aqueles pastelinhos de bacalhau feitos pela tia Arminda, que lá nisso não há pasteis de bacalhau iguais aos da tia Arminda em lado nenhum do mundo.

Corre-lhe uma lágrima no rosto. Corre o marcador de um lado para o outro no campo ou então apenas para um lado, gritando ele mesmo golo e ensaiando uma coreografia, pontapeando a bandeirola de canto ou içando-a em troféu, dançando um samba com os outros companheiros ou ajoelhando-se virado para Meca com a cabeça no relvado, passando a mão na relva e benzendo-se, abraçando-se em círculo ou em pirâmide, fazendo um moche de onde sai a apalpar as costelas para saber se ainda resta alguma inteira, beija a câmara do operador de TV enquanto lança o seu gutural golo para a lente, coloca a bola por debaixo da camisola junto à barriga e chuchando no polegar de uma das mãos dedica o golo acabado de marcar, acabado de gritar, com a mulher e o filho que esta traz nas entranhas, quem sabe um potencial marcador de golos no futuro, despe a camisola e roda-la no ar enquanto grita e festeja, mostrando músculos de fazer inveja a qualquer escritor de histórias, barrigudo e cheio de tendinites. E há mesmo quem grite o golo a chorar de emoção e alegria.

- E aquela merda do árbitro a estragar tudo, nem vê que o homem tirou a camisola só para festejar…
- Lá está outra vez você, Não vê que dar cartão amarelo é da lei?
- É da lei, é da lei, o gajo é que precisa com a lei na cabeça!
- Quem eu?
- Não, caralho, o gajo, o árbitro, não seja parvo você…
- Veja lá como é que fala…

E o jogo continua, golo é golo, seja no estádio, seja na PlayStation, seja no rinque de futsal lá do meu bairro, seja na praceta onde eu jogava à bola num mano-a-mano com o Zé Carlos, seja no corredor lá de casa onde eu jogava com os meus irmãos. Golo é golo, é para festejar. O candeeiro não teve culpa de a bola ter entrado na porta da casa de banho que fazia de baliza, ter sido golo limpinho, limpinho, mas, quando saltei para o festejar e dei um valente murro na lanterna que se partiu de imediato, por vingança, deixou-me um golpe na mão que demorou semanas a curar.

Quando a minha mãe entrou em casa, ela que é católica, benzeu-se e fez o sinal da cruz, sem ter tocado com a mão no relvado. Não consta que fosse também a festejar o nosso golo. Mas lá que nos mostrou três valentes cartões amarelos, mostrou. E nem tempo tivemos para despir as camisolas.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

241 - O dono da bola - #12 Ó vizinho deixe-me entrar consigo.


Era uma romaria aos domingos e eu ainda sou do tempo em que o futebol se jogava aos domingos, às quatro da tarde ou às três quando o inverno chegava e os dias eram pequenos. Nesse meu tempo de criança havia poucos automóveis e as carreiras ao domingo, exceto no tempo de praia e exatamente para as praias, os transportes, tal como hoje, eram mais raros e espaçados. Por isso, para ir à bola, ia-se a pé.

(parecia uma romaria)

O Campo de Jogos do Pragal, que era assim que se chamava ao campo de futebol do Almada Atlético Clube ou simplesmente do Almada, ficava onde ainda hoje se situa: lá no cimo, paredes meias com o monumento a Cristo-Rei.

- Vá lá, senhor, uma imagem do santo. São só vinte escudos, - apregoavam as vendedeiras que vendiam cristo-reis fosforescentes e colavam autocolantes nas bandas dos casacos e nas golas das camisas a dez tostões e vendiam também a Nossa Senhora de Fátima fosforescente que era para se ver à noite em cima da cómoda ou da mesinha de cabeceira, com as luzes apagadas. Quer aos que iam à visita ao Cristo, quer os que iam ver a bola ao Almada.

Por isso era ver aquele povo todo a subir a pé a Avenida Cristo-Rei ou a rampa do Pragal que vinha lá de baixo desde a estrada nacional, passava pelo quartel e desembocava no largo do Cristo-Rei, mesmo junto ao campo do Almada. Aliás, como hoje.

Fui, enquanto criança, sempre com o meu pai. O meu pai foi, se não nascido, pelo menos criado em pleno Pragal e não poderia ser de outro clube senão do Almada.

- Viva o Almada!

Poder podia. Naquele tempo quase toda a gente era do Benfica, do Sporting ou do Belenenses, coisa que já não é igual hoje em dia, pois que, à força das vitórias que conseguiu nos anos 80 e 90 do século passado, fez-se transferir a paixão dos miúdos também para o Porto.

- Almada! Almada! Almada!

Mas se torcíamos por um grande a verdade é que o Almada e o Piedade eram os clubes de todos nós, os daquela zona de Almada. E eu, porque cresci no Pombal, exatamente a meio caminho entre o campo do Almada e o campo do Piedade, escolhi o Almada como clube de coração. Era a malta dali metade / metade, de forma que, até quando em miúdos escolhíamos a linha para os nossos desafios, o fazíamos em função disso, imitando no terreiro frente ao pátio um derby Almada-Piedade. Já no início da adolescência, porque me mudei para um Bairro próximo do Pragal, aí já ia sozinho, a pé, com os outros putos

(parecia uma romaria)

vermos o Almada. Atalhávamos caminho numa azinhaga que ia dar à Ermida e dali era um pulinho até ao campo da bola.

O pior era para entrar. Os porteiros não deixavam os putos entrar sozinhos, já que os miúdos teriam que ter quem se responsabilizasse por eles. E quando não estava lá, aquele porteiro amigo do meu pai, que apanhando o fiscal da Associação distraído me fazia passar entre ele e o portão sem que ninguém desse por isso, só entrávamos acompanhados por um adulto. E aí começava a pedincha,

- Ó vizinho, deixe-me entrar consigo

e logo um adulto nos dava a mão, e na porta, em perfeita cumplicidade com o porteiro,

- É meu filho,

 franqueava-nos a passagem. E lá entrávamos e nos juntávamos à outra malta que, com o mesmo estratagema, entravam com os “pais” deles. Muitas das vezes, com dez ou onze anos de idade, não ligávamos patavina ao jogo. Queríamos era andar para ali a brincar no peão por trás da baliza, onde a GNR nos repreendia e ameaçava levar-nos presos. Naturalmente isso nunca aconteceu.

Algumas considerações finais:

1 – O meu Almada sofre das amarguras que sofrem os que outrora foram grandes clubes. Vi lá grandes jogos contra o Estoril, o Lusitano e o Juventude de Évora, contra o Amora, contra o Lusitano de VRSA, contra o Vasco da Gama de Sines, contra o Esperança de Lagos, o Montijo, o Barreirense e obviamente, contra o grande rival de sempre o Desportivo da Cova da Piedade,

- Almada! Almada! Almada!

quando até o varandim do monumento a Cristo-Rei servia de bancada a 100 metros de altura. Hoje, com a transformação de um desporto em negócio, a criação de SADs para acionistas, o futebol de cariz mais popular anda a fazer uma travessia no deserto que parece nunca mais ter fim. O meu Almada arrasta-se entre a primeira e a segunda regional e nunca mais se sentiu a emoção do velho derby.

2 - O Grupo Desportivo da Cova da Piedade conseguiu, via patrocinadores e acionistas chineses criar algumas estruturas para poder competir em divisões superiores nomeadamente a profissional 2ª Liga do nosso futebol. Tem até, por isso, direito a algumas transmissões televisivas onde já ouvi alguns comentadores e relatores designarem-no por Cova. O Cova isto, o Cova aquilo. Pois, meus senhores, essa não é nem a designação do Clube nem sequer da localidade que lhe dá o nome. A localidade é Cova da Piedade e o clube, se falarem com os mais velhos, é para eles o Desportivo e se falarem para os mais novos, incluindo os da minha geração, é o Piedade. Cultura desportiva não devia ser coisa que faltasse a esses arautos. Mas parece que sim.

3 - Um dos porteiros nosso amigo era o sr. Delfim. Conheci-o quando era miúdo e nunca me deixou ficar à porta. Com ele lá, entrava sempre sem ter que ter um pai emprestado. Soube que morreu há pouco, em Junho de 2018. E como o mundo é pequeno soube agora que era o padrasto de um amigo meu de infância. Nunca tinha relacionado o facto até ter visto a fotografia do sr. Delfim no cartão da funerária. Que o São Pedro lhe tenha franqueado as portas do Céu e que descanse em paz.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

240. O dono da bola - #11. Um pontapé de bicicleta


A praia era, naquele tempo, para mim, o areal e uma bola. O mar era para o banho no fim do jogo. Logo pela manhã, aos sábados ou aos domingos de verão, se juntava a rapaziada lá do bairro, cada um com a sua toalha debaixo do braço e uma ou duas bolas, não fosse alguma rebentar e lá íamos nós. Alguns, os mais afoitos, iam à boleia.  Ficávamos no troço da autoestrada à saída da ponte 25 de abril de dedo esticado ou com uma cartolina a dizer C. CAPARICA e não me lembro de algum dia em que em pouco mais de meia-hora não estivéssemos já todos no Paraíso ou no Dragão a escolher as linhas.  Claro está que ir à boleia era um risco, pois apesar de serem tempos mais remotos, predadores sempre os houve, mas nós lá íamos cumprindo algumas regras de que nunca ia um sozinho e a minha mãe a dizer

- Se sei que vocês vão à boleia nunca mais vos deixo ir à praia sozinhos

nem nunca ficava para trás nenhum sozinho. E quase sempre apanhávamos boleia de casais. É verdade que sendo regra nem sempre se cumpria, pois quando a pessoa que nos oferecia boleia tinha “cara de boa pessoa” também aceitávamos. Há quase 50 anos havia muito menos carros a circular mas, em relação aos tempos de hoje, creio que muito maior oferta de boleia. Era frequente, nesse mesmo local verem-se pessoas de mochilas às costas, casais com frequência, jovens na generalidade, estrangeiros muitos e também alguns militares cada um com os seus destinos marcados em maiúscula, por vezes com erros nas placas de cartão que clamavam por VRSA, BEJA, SINES, LAGOS, VENDAS NOVAS,

(um amigo meu fez a tropa em Vendas Novas e saiu com a coluna militar que “fez o 25 de Abril, acho que a partir do Cristo-Rei)

andar à boleia era não só uma aventura, uma forma de poupar umas coroas, mas também uma moda que vinha dos anos 60 do século passado a década do Woodstock, do inicio da guerra nas nossas províncias de África – o Vasco morreu em Moçambique poucos dias depois do 25 de Abril -  do Maio de 68, dos hippies, das manifestações dos estudantes de Coimbra, da greve na Lisnave.

(chorei quando me lembrei do Vasco)

E havia ainda outra regra entre nós, uma terceira regra que era sagrada e a voz da minha mãe ainda a soar-me nos ouvidos

- Se sei que vocês vão à boleia nunca mais vos deixo ir à praia sozinhos

E a regra era, não havia chibos. Ai daquele que tivesse o descaramento ou a imprecaução de, à frente dos pais ou de outros putos que não pertencessem ao grupo da malta da boleia, bufar que fulano ou sicrano tinha ido à boleia. A primeira é que era naturalmente excluído das nossa equipas ficando a jogar ao pau com os ursos como se dizia na altura e que creio ser expressão que ainda hoje se utiliza. A segunda eram as consequências para nós próprios. Se os meus pais sonhassem (sonhar, sonhavam, as recomendações da minha mãe não me deixam mentir), que nos davam o dinheiro para as passagens e até para um gelado da Olá e que andávamos à boleia, era certo e sabido que a ficaríamos esse verão sujeitos a que só fossemos à praia com eles ou, na melhor das hipóteses, termos de apanhar a camioneta da carreira sob a sua vigilância. E isso era terrível pois não era raro passarmos horas na paragem porque as camionetas já vinham cheias desde Cacilhas e muitas não traziam desdobramento, ou traziam-no cheio.

(Era o Machado o expedidor, um tipo magro, austero, de bigode para meter respeito, quem todos os choferes temia, porque quem mandava era o Machado, que mandava parar um autocarro, por exemplo que fosse para outros destino, tipo o Pragal e ordenava que o chofer quando lá chegasse não voltaria a Cacilhas mas seguiria em desdobramento para a Costa).

A bola fora centrada do lado direito do ataque. Eu estava na área quando a vi chegar e vi que ela me passaria nas costas virei-me e num ápice, todo no ar, com as duas pernas como que pedalando numa bicicleta ao contrário, apliquei-lhe em cheio com o peito do pé direito. Não vi o final porque estava de costas e também porque não teve direito a repetição em câmara lenta como hoje em dia fazem as televisões. Mas diz a malta que passou mesmo entre os braços abertos do guarda-redes que não esperava por aquele golpe. A areia fofa da praia aparou-me a queda e foi como se nada se tivesse passado. O pior foi em casa, a explicar ao meu pai, tentando imitar todo o movimento. Sim, porque um golo daqueles não se marca todos os dias, eu não era nenhum Madjer ou Alan do futebol de praia, aliás essa modalidade ainda não existia e nem sei se o Madjer já era nascido e, portanto, o golo merecia ser relatado com todos os pormenores. O pior foi a queda no soalho do corredor. Aquilo não era a areia da praia e ainda hoje parece que me doem as costelas todas.