Ora diga lá Espinheira
o que é que consta a páginas setenta e dois e seguintes do manuscrito que nos
serviu para consolidar o que vamos de seguida dizer sobre o senhor doutor
Ismael ben-Avraham. Depois, antes que Espinheira abrisse a boca, virando-se
para Francisca, disse-lhe, com a sua
licença minha senhora. Já não teve tempo de ver a cara com que Francisca
recebeu este ‘minha senhora’ assim lançado pelo inspetor e, tal como sabemos,
também amante, pois que tinha ainda solicitado ao Espinheira um momentinho se faz favor, já que teve
necessidade de, primeiro, ir verter águas. Ouviu-se o correr do autoclismo, a
torneira da água de lavar as mãos a correr, o que mostra que o nosso inspetor
tinha hábitos higiénicos muito avançados para a época. No entanto, quando saiu
dos lavabos, vinha a assobiar e a apertar os botões da braguilha. E dirigindo-se
ao nosso Ismael Gusmán, o inspetor Ismael Sacadura Flores perguntou-lhe, o que
Ismael entendeu como uma ordem, se não podia servir uns copos de água às
senhoras ou mais uma rodada de gasosa espanhola que para ele se contentaria com
um copo de tinto. Nenhum dos presentes se admirou de, mesmo em serviço, o
inspetor Ismael Sacadura Flores beber o seu copinho e comer uns torresmos ou uma
conserva de atum pois foi coisa que sempre o viram fazer. Agora que sabemos que
a nossa Fernandinha não era moça que ali pudesse estar, conforme relatado em
capítulo próprio, os pastelinhos de bacalhau estavam fora de questão. E posta
que foi a introdução, vamos lá ouvir o jovem Espinheira que está ali danadinho
para intervir, se bem que o inspetor o pudesse ter feito ele mesmo.
Senhor inspetor Ismael
Sacadura Flores, senhores chefes de brigada, Dr. Ismael de Almeida e Monsieur Ismaelix,
senhor Ismael Gusmán, nosso digníssimo anfitrião e não disse mais nada pois
o inspetor, enfastiado com tanta cerimónia, repreendeu-o com veemência, tanto
que há testemunhas de que o jovem Espinheira terá ficado corado que nem um
tomate e deveras acabrunhado. Oh homem, leia-nos
o que escreveu a senhora dona Francisca nas páginas que lhe indiquei, caramba!
Esta interjeição foi, para um homem tão educado como sabemos que o inspetor o
é, e agora também que tem hábitos higiénicos, foi, dizia, um pouco a
despropósito mas teve de ser narrada pois foi assim mesmo que o inspetor Flores
interjecionou. O pobre, que é como quem diz em tom paternalista, o jovem, com o
manuscrito na página setenta e dois aberto de par em par, começou então a ler
as considerações que Francisca fez sobre a localização de Ismael ben-Avraham em
anotações que apontavam o médico para as bancadas do Estádio da Luz, inaugurado
dois anos antes, a assistir a uma daquelas maravilhosas noites de futebol que
vieram a afamar aquele estádio como o Inferno
da Luz, para o que, diz quem assistiu, muito contribuiu a fantástica
vitória sobre o grande Barcelona daqueles tempos por quatro bolas a zero. Tudo isto está aqui escrito no manuscrito,
faz tenção de informar o jovem estudante, que todos sabem gostar muito mais de
ciclismo do que de futebol, o que ato contínuo provocou uma reação ao sobrinho
de Francisca, o marinheiro Sebastião que, sendo ele sportinguista, não hesitou
em deitar a língua de fora à sua própria tia. Mal-educado foi a única coisa que
veio ao pensamento de Francisca mas que não lhe saiu sequer boca e, por isso, o
escritor não colocou em discurso direto. Entretanto, é rigoroso dizer que nem
com esta provocação, Francisca tirou os olhos e os ouvidos do jovem Espinheira
que continuava a ler o seu manuscrito. O doutor Ismael ben-Avraham, que não
conseguiu disfarçar um sorriso, imitava Francisca e fulminava com os olhos,
quer o jovem Espinheira, quer a capa do manuscrito.
Teve então que interromper a leitura do manuscrito o
inspetor Ismael Sacadura Flores, mediante alguma estupefação dos presentes e
até perante um protesto lavrado oralmente pelo nosso amigo galego, pois como
ele fez questão de afirmar, as noites
gloriosas do seu Benfica não podiam ser assim tão abruptamente interrompidas,
nem que em causa estivessem outros interesses superiores da Nação, como fosse o
caso de se desvendar o assassino de Isabella Vicentini, disse, num misto de
português e galego que a maioria não percebeu patavina. E perguntam nesta
altura os leitores desta pseudonovela dramática, com ares de conto policial trafulha,
misturado com histórias do autor, passadas numa tasca da Rua dos Correeiros,
pertença de um seu amigo, galego como todos o sabem, porque é que o inspetor
que estava tão ávido de que o jovem Espinheira lesse o manuscrito o viria
assim, de um modo tão abrupto como se disse e nunca é demais repetir o
adjetivo, a interromper. E aqui é a vez de o inspetor confrontar os presentes
que essa tinha também sido a desculpa ou, na opinião do próprio Ismael ben-Avraham,
o álibi que o ilibaria de qualquer suspeição sobre o crime da Rua dos
Correeiros número 43, sexto andar. Mas Isabella tinha sido morte com sete
facadas e um crime tão horrendo não poderia ser tratado de ânimo leve. Até
porque o inspetor Ismael Sacadura Flores andava há algum tempo a sofrer algumas
pressões superiores para que fechasse rapidamente o caso, uma vez que dada a
falta de bons inspetores criminais, já estava a ser preciso para investigar o
estranho desaparecimento dos animais de estimação da esposa de um detentor de
um alto cargo governativo, falava-se até de um boi almiscarado. Não, não era o
ministro o boi almiscarado, mas adiante, pois acho que já entenderam. E para
que todos os presentes soubessem porque é que ele interrompeu o jovem Espinheira,
esclareceu detalhadamente que foi pela
grande contradição encontrada quando o Doutor, em depoimento escrito, dado nas
instalações da própria Polícia Judiciária, declarações essas datadas e
assinadas, afirmou perentoriamente que tinha estado a trabalhar nas urgências
do Hospital dos Capuchos, num turno de vinte e quatro horas, só tendo saído ao
meio dia do dia do crime que, segundo a perícia legal teria ocorrido cerca das
sete horas da manhã, mas cuja uma ausência suspeita, a horas ainda não
definidas neste fascículo, teria sido testemunhada por uma enfermeira feia.
E é aqui que um dos presentes, mais concretamente Isaurinha Bate-Sola se
levanta, se vira para Francisca e diz do alto dos seus saltos, oh minha senhora, então a senhora, que até
parece ser uma fervorosa adepta de futebol, não sabe que um jogo só dura hora e
meia, vá lá com o intervalo e com as compensações mais uns vinte e poucos
minutos e que às sete da manhã, o doutor Ismael ben-Avraham ou lá como é que se
pronuncia este nome estrangeiro, podia muito bem ter dado as facadas à
rapariga? E neste momento, a enfermeira feia que tinha acabado de entrar, a
pedido do inspetor, deu uma gargalhada, o que obrigou o inspetor a pôr ordem na
sala.
Foi neste ambiente que já tendia para a peixeirada que o
inspetor abriu as goelas, mandou parar a discussão que já se iniciava entre a
Francisca e a Isaurinha Bate-Sola, decidiu que iria fazer mais revelações sobre
os outros presentes que, como já sabemos desde o episódio vinte e oito, acabou
por revelar quem foi o autor do hediondo, sanguinário e até mesmo
incompreensível crime e anunciou que o doutor Ismael ben-Avraham passaria à
segunda volta.
Qual deles ficou a olhar para o tecto perante a revelação?
ResponderEliminarVá lá, desvende lá o mistério que eu estou a ficar curiosa e o inspector tem que ir procurar o boi almiscarado do governo digo da esposa do ministro...*
Ai tétisq isto é suspense (eu já estou é a precisar de suspensórios) :)
EliminarBom fim de semana
Passar à segunda volta quer dizer que Ismael (médico?) ainda é um dos suspeitos, certo? :)
ResponderEliminarEntão cá ficamos a aguardar o epílogo! :D
Uma coisa é certa: essa tasca é do mais machista que há - as mulheres só bebem água ou gasosa?!? Balhamedeus! :))
Beijocas!
Teté, em 1956 as mulheres só bebiam às escondidas ou nas vernisages :) Quer dizer, acho eu. Por acaso ainda não fiz essa pesquisa.
EliminarBeijocas, bom fim de semana.
Não conhecia o termo “almiscarado”. Tive que recorrer ao dicionário. ... “que produz almíscar”... fiquei na mesma; fui ver “almíscar” – subtância aromática segregada pelo almiscareiro; fui ver almiscareiro – mesmo que civeta! Finalmente, fiquei elucidada! : )
ResponderEliminarAbraço
Almíscar: Secreção das glândulas odoríferas prepuciais do macho do veado-almiscareiro (Moschus moschiferus). Contém civetona e escatol como substâncias odoríferas. Utilizado outrora em medicina, este produto constituí uma das substâncias básicas da perfumaria. embora possa ser substituída por substâncias sintéticas, como xilenos e cetonas. Também os viverrídeos segregam uma substância que tem as propriedades do almíscar e é conhecida por algália e viverreum, sendo usada como fixador de perfumes.
EliminarIn Lexicoteca, Edição Círculo de Leitores
Entretanto deixei-lhe aqui mais uma série de palavras para consultar no dicionário. Sou tão mauzinho :) :)
Bom fim-de-semana
o qu eue aprendo aqui! chiça CONSTANTINO tu és uma enciclopedia
ResponderEliminarkis .=) BFSEMANA
Sou eu e as enciclopédias. Beijinhos.
EliminarComo eu gosto destas "reconstituições"... mas com aquelas entradas da praxe!
ResponderEliminarDesta vez torresmos e um copo de tinto.
Até tenho que esperar um pouco, pois não é de bom tom falar com a boca cheia...
Eu quando os como peço-lhes sempre o favor de quando chegarem lá dentro pedirem tréguas ao colesterol.
EliminarComo vai agitada esta investigação! :))
ResponderEliminarE ainda não é nada...
EliminarQuando mete futebol, a coisa azeda sempre...
ResponderEliminarFutebol e política dão sempre molho.
EliminarTá bem...se o ben-Avraham passou à segunda volta é porque ficou apurado.
ResponderEliminarNão quero nem saber em que ano é que vamos na história, gasosa é que eu não vou beber. Saia uma ginjinha dupla para a minha mesa, que peixeiradas só mesmo bem acompanhadas.
A tua foto está linda de morrer, Constantino. O pormenor da abelha é lindo. Acabo sempre por me esquecer de lhes fazer referência, o que é uma injustiça. És um fotógrafo de mão cheia! Parabéns.
Continue Inspector...continue!
Beijinhos, Constas.
Eu mando-te servir um copinho do bom!
EliminarQuanto ás fotos, obrigado por reparares. De facto, no meio das histórias as fotos têm passado para segundo plano. Ou se calhar não têm sido tão boas como eu julgava que eram :)
Beijocas.
Uau!... Foi como assistir a um filme, enquanto aquela abelhinha zunia lá em cima...
ResponderEliminarE isso tudo, às duas da manhã (e eu cá com um cálice de Rapariga da Quinta logo à mão)
:))
Abraço grande pra você amigo.
Até mais ver,
Cid@
Cida, o meu carinho para você.
EliminarBeijo.
Isto promete...e a abelha bem que está agarradinha:) e vou almoçar:)
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