terça-feira, 31 de janeiro de 2012

94. Ismael (19) - Cisma


Imprimi todas as páginas escritas do meu livro cujo nome ainda não inventei. Há pouco, enquanto tirava a fotografia a uma nuvem cujo sol-pôr a iluminava numa chama voadora, ai que bonito que isto é, ainda pensei, provisoriamente, chamar-lhe “ Ismael, Isabela e Incesto, três is, uma só história”. Mas retirei logo isso da cabeça pois, no meu livro, não tenho qualquer intenção de escrever sobre nenhum incesto. Assim impressos em Trebuchet MS 14, justificado em ambas as margens, já vai numas belas 39 páginas, somando aquelas que ainda não publiquei na Internet, já começaria a compor algo vendável. Enfiei os A4 numa pastinha plástica da Âmbar e saí, como raramente o faço, para tomar um café.

Já vi que é escritor, disse-me mesmo antes de dizer bom dia, bom dia e desculpe a intromissão, continuou sem que eu tivesse ainda reagido. A bica estava quente, uma mania que nunca entendi esta de servirem o café em chávena escaldada que me queimou os lábios mal lhe toquei com os ditos. Soltei um bolas, não em voz alta mas o suficiente para aliviar a tensão quando um tipo não está em situação de dizer um impropério. Pedi desculpa, olhei-a na mesa ao lado da minha, com um livro de Luís Sepúlveda fechado ao lado da sandes de fiambre com manteiga. Respondi-lhe que era uma tentativa. Quis saber qual era o tema e eu disse-lhe que ainda não tinha. Deu uma gargalhada e suspirou um não acredito! Depois ainda sem ter sustido completamente o riso perguntou-me como é que se pode escrever um livro sem tema?. Foi aí que eu lhe expliquei que na verdade eu não sabia bem se aquilo era um livro ou se eu iria escrever um livro. Pareceu-me confusa e obrigou-me praticamente a explicar-lhe detalhadamente todo este imbróglio. Ela foi comendo a sandes e no fim lambeu um pouco de manteiga que lhe ficou num dedo. No fim da sandes, quero eu dizer, mas não no fim da nossa conversa que ainda durou mais uma bica, desta vez em chávena apenas morna e um carioca fraquinho para ela. Sugeriu-me que fossemos até à esplanada para que pudesse fumar um cigarro e desta vez foi a minha de soltar uma gargalhada. O café não tinha esplanada.

Quando saí dali, não trazia apenas a garota na cabeça, trazia novas ideias, mas que não as explanarei agora, pois isso tiraria algum suspense. Discutimos se Isabella poderia ter uma irmã gémea que fosse na verdade o objeto do crime e que só por engano tenham recaído sobre ela as sete, logo sete, facadas; falamos também do tio do médico israelita e da coincidência de ele ser coxo, coincidência essa com o facto da misteriosa senhora de Trás-os-Montes achar que na noite do crime alguém coxeava; falamos que até pode não ser coincidência e falamos também que o meu livro não é um livro policial, que a morte de Isabella é um fait-divers para que eu possa contar as minhas histórias e as minhas relações de amizade com o galego Ismael Gusmán e que, eu próprio, nem sequer sei se na Rua dos Correeiros, 43, há ou alguma vez houve um prédio com sexto andar direito. Só não a consegui convencer como é o Dr. Castro Ribeiro um senhor de famílias, escrivão de Direito na cidade do Porto, divorciado de uma mulher com os dotes de Francisca, notívago de vocação, frequentador de cabarets, casas de alterne e outras de má porte, não tem nada a ver com esta história mas sim com um posfácio que eu terei forçosamente de escrever para me esclarecer.

Se isto tivesse sido noutros tempos, o meu amigo Ismael Gúsman ao ver a minha cara de preocupação com a evolução deste trabalho, tinha-me trazido um daqueles pãezinhos saloios, com dois lombinhos na chapa, passados em manteiga de vaca e um copinho de tinto das Gaeiras. Colocaria ao meu lado uma tacinha com mostarda e uma colher de café e dir-me-ia, batendo-me nas costas, Oh Constantino, não penxe mais nixo! 

sábado, 28 de janeiro de 2012

93. Ismael (18) - Francisca, essa magana!


Parece que temos novidades, disse o Inspetor Ismael Sacadura Flores, mal acabou de chegar e ainda antes de cumprimentar o jovem Espinheira que, enquanto comia uma sandes de torresmos e bebia uma schwepps de ananás, não tirava os olhos do livro de capa preta. Depois de pendurar o sobretudo no bengaleiro e também o chapéu de feltro, esfregou as mãos uma na outra, soprou-as fazendo-lhes chegar ar quente acabado de fabricar no seu próprio interior e interjeicionou, incha que está frio! O jovem Espinheira (que é o mesmo senhor Espinheira a quem já me referi em tempos, mas noutra época), assentou que sim com a cabeça. Em todo este entretanto, aproximou-se o galego Ismael Gúsman trazendo numa mão um pequeno prato onde ainda fumegavam dois pastéis de bacalhau e na outra uma taça de tinto, que era preciso aquecer as entranhas ao inspetor. Depois de perguntar ao jovem Espinheira se precisava de algo mais, retirou-se e foi ter dois dedos de conversa com a Fernandinha. Ouviu-se-lhe ainda de fundo falar em Sebastião, na expressão poucas-vergonhas e outros sussurros que poderão não ter interesse para a narrativa. Desembuche lá, Espinheira, que não tenho o dia todo, rematou o inspetor Sacadura.

Temos aqui na página doze, uma referência que não sei se lhe interessa, disse o Espinheira hesitante, pois estava com pouca vontade de entrar por ali. Pois eu confesso-lhe, Espinheira, que poucas foram as páginas onde consegui decifrar mais do que três palavras seguidas, confessou efetivamente o inspetor Ismael Flores. Continua então Espinheira, a páginas doze, diz a Francisca que “o doutor Ismael ben-Avraham vivia com os seus pais nos Alpes Austríacos, longe dos negócios da família ben-Avraham da parte do pai e da família Baruch da parte da mãe”. Conta ela também, informa o Espinheira, que “os pais do doutor foram muito mal tratados por uns italianos suíços, ou suíços italianos de Lugano, muito próximos dos camisas negras”. Não esclarece as ligações desta família suíça com a bailarina italiana Isabela, morta, como sabe senhor inspetor, com sete facadas, aqui mesmo no número quarenta e três desta Rua dos Correeiros, observa e muito bem, segundo palavras do próprio inspetor, o jovem Espinheira. Só se for lá para a frente quando eu conseguir decifrar esta espécie de hieróglifos, dando alguma esperança ao inspetor Sacadura. Ah, esqueci-me de dizer que temos aqui uma nota de rodapé, nesta mesma página doze, dizendo que  “o tio, Ishmail Baruch perdeu dois irmãos, duas cunhadas, vários sobrinhos e um filho durante a depuração nazi”. E mais não diz por enquanto.

Em seguida, num só fôlego, Espinheira, depois de saltar para a página oitenta e oito leu, em voz alta, para grande espanto de todos, inclusive do Rogério que tinha chegado e discretamente se sentado na sua mesa de canto,  A disceptação teve o seu epílogo. Estava decidido. Como bom dendrófobo dirigir-me-ia para o deserto. Ele caminharia para os antípodas. Sentia-me fatigado de ser sempre apoucado nas minhas decisões. Assumiria de uma vez por todas o meu eremitismo. O badano, já cambado, haveria de suportar as duas ou três horas que me faltavam para chegar ao destino. Quando as adelfas e as carvalhinhas começaram a rarear nas margens do caminho, o dia abaçanava. A alimária alentecia e nem os golpes de butuca a fariam mover. Paramos. Coligi os escassos haveres, cobri-me com um bedém, com o qual me tinha abispado antes da partida, sentei-me ao velho jeito índio, as pernas cruzadas uma sobre a outra e adormeci. A minha mente extenuada achapuçava-se de sonhos. Abentesmas albípedes cujas restantes partes corporais se não viam, bandarreavam no meu espírito deixando-me azabumbado. Como seria possível em lugar tão ermo me sentir cercado. Acordei abruptamente. Autócnes de aspeto boçal faziam a festa. Nunca na vida tinham deparado com tão alva tez. Com as mãos enrugadas esbarbavam-me o capote como que se inteirando da minha condição de real. 

Fernandinha não entendeu patavina da récita, Ismael Gúsman gritou lá de dentro do balcão que os passarinhos estavam prontos se podia servi-los já ou esperavam mais um pouco, Rogério coçou a cabeça e o inspetor Ismael Sacadura Flores, ainda um pouco perplexo, com os olhos meio esbugalhados apenas conseguiu dizer, que essa Francisca era um poço de surpresas. Então ela escrevia contos e nós não sabíamos de nada? Pois vou querer seguir essa história. E, com as mãos em concha soprou-as de novo com ar quente.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

92. Ismael (17) - Salut Eusébio



Sei que hoje o meu amigo Ismael Gúsman não vai ler este meu texto. Já se devem ter apercebido, pelo que vem sendo escrito e pela cronologia, que o meu amigo Ismael, o galego, já não faz parte do mundo dos vivos. Um dia destes conto-vos algo que sucedeu no dia do seu funeral, mas vamos por partes, isso não é para já. Quando decidi escrever este livro e antes de me decidir dar sete facadas na italiana, dar salvo seja, pois todos sabem que não fui eu e que, mais dia, menos dia, o provarei, tinha pensado em escrever sobre hóquei em patins. Isso mesmo, porque o Ismael era um maluco por essa modalidade sobre rodas. Diz ele que a única ideia que traz bem viva na sua memória foi a de um dia ter ido assistir a um jogo entre o Liceo de Coruña e o Réus. E, porque para mim seria quase impossível nomear um único jogador deles que fosse, Ismael teria uns sete anos de idade e é homem praticamente da idade do meu pai, resta-me lembrar-vos que também eu me sentava ao lado do meu avô, ouvidos no transístor a ouvir o Nuno Brás da Emissora Nacional a gritar os golos do Fernando Adrião e do Vaz Guedes. nos tempos gloriosos da nossa Seleção Nacional contra a sua rival de sempre, a Espanha.

Em Viena de Áustria esperava que me fosse indicada mesa para comer aquele bife panado que não se come em mais lado nenhum. Schnitzel é mesmo em Viena, enche o prato e não se nada em gordura. O empregado que fazia as honras da casa foi perguntando um a um dos meus companheiros gastronómicos de onde éramos. Espanhol, francês, austríaco, suíço, ele que também era suíço ali ficou dois ou três minutos a falar sobre o seu, deles, país natal e finalmente eu, português. O homem era de Berna e assim que falei que era português, deu-me uma palmada nas costas, encheu-me de novo o copo com um reisling bem fresco e disse-me de rajada e sem perder o fôlego, Costa Pereira, Mário João, Ângelo, Cavém, Germano, Neto, Santana, Coluna, Cruz, José Augusto e Águas. Senti-me perdido e confuso. Perdido porque nem fui capaz de ripostar. Eu próprio, um ‘maluquinho da bola’ não sabia de cor a linha campeã europeia em 1961 mas também não dei parte fraca. Dei um sorriso largo, bebi um gole de vinho, dirigi-me à mesa que entretanto tinha ficado livre e fiquei a matutar. Confuso, sim confuso, ele não falou em Eusébio. E foi aí que me lembrei que Eusébio só iria ganhar a Taça dos Campeões em 1962 (*), numa portentosa exibição contra o Real Madrid de Santamaria, Gento, Di Stefano e Puskas. Há cinquenta anos atrás.

Sei que hoje o meu amigo Ismael Gúsman não vai ler este meu texto. Bem sei também que hoje não há inspetores nem misteriosas senhoras trasmontanas; hoje Francisca continua a ser a dona do manuscrito e Ismaelix ainda tem um farto bigode branco; hoje ninguém se sentará na mesa do canto, nem a escrever nem a comer passarinhos fritos em carcaça de forno de lenha. Hoje eu e mais seis milhões, ou mais, uns com champanhe, outros com um tinto do canjerão, outros até só com um copo de água da torneira por não haver posses para mais, vamos levantar o nosso copo para saudar o septuagésimo aniversário do grande Eusébio da Silva Ferreira. E, meu grande amigo galego Ismael, sei que estás também a erguer um angélico cálice para saudares o maior, o grande, o pantera negra.

(*). Tomem lá:
Benfica: Costa Pereira, Mário João, Ângelo e Cavém; Germano e Mário Coluna; Cruz, Simões, Eusébio, José Augusto e José Águas.
Real Madrid: Araquistain, Casado, Santamaria e Miera; Pachin, Gento e del Sol;  Di Stefano, Tejada e Puskas.
O treinador do Benfica era Béla Guttmann e o do RM era Miguel Muñoz.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

91. Ismael (16) - O canto do cego


A data de 1956 para ocorrência do crime na Rua dos Correeiros, irão ver mais adiante, não foi escolhida por acaso. Mas não foi uma data presencial para o escritor deste pseudolivro que pretende misturar suspense com histórias da vida real e banalidades, que só quem tiver uma paciência santa é capaz de o ler. O autor, por esses tempos, tinha apenas um ano de idade mas sabe, porque lhe vão contando e porque mais tarde ainda pode assistir, que era frequente cegos tocarem e cantarem em verso, que depois vendiam por cinco tostões, os casos mais dramáticos como acidentes, cataclismos e, principalmente, tragédias familiares, histórias de faca e alguidar (no Brasil eram e são conhecidas por estórias de cordel). Não foi portanto de espantar que por esses tempos, enquanto a investigação decorria, um cego, em pelo Terreiro do Paço, por debaixo dos arcos do Ministério das Obras Públicas, enquanto os peões corriam para o vapor que os levaria ou a Cacilhas ou ao Barreiro, quiçá alguns até moradores na Quinta do Conde, cantava em verso, o crime da Rua dos Correeiros, número 43, como aqui se documenta.

Dizem por aí nos jornais
Que foi com sete facadas
Que a pequena se finou.
Parecem coisas banais,
Mas que devem ser contadas,
Como mais ninguém contou.

Uma jovem bailarina,
Acredite quem quiser,
Da Itália era chegada.
Parecia ser gente fina
Dançava no Parque Mayer
E foi morrer à facada.

No peito foi golpeada,
Não se sabe ‘inda por quem,
Alguém tem que descobrir.
E a pobrezinha coitada
Nem pode chamar pela mãe,
Em sangue se foi esvair.

Dizem que uma velhota
Ouviu os passos de um manco
No andar por cima dela.
Fizesse como na lota,
Subisse acima de um banco
E gritasse pela janela.

O inspetor Sacadura
Está em cima da jogada,
Em breve se saberá.
Diz que ele tem mão dura
E a quem mata à facada
Nada se perdoará.

Na tasca do Ismael
Especula-se às carradas,
E toda a gente que fica
A comer o bom pastel
Ou fala das sete facadas
Ou do glorioso Benfica.

Escrito p’la mão da Francisca
Descobriu-se num caderno
Muita coisa enigmática,
Mas não é lá boa bisca,
Lê-lo é como ir ao inferno
E nem com uma gramática.

Há também o Sebastião
E o judeu nesta história.
E ainda a cozinheira,
Não é fácil, isso não,
Dizer todos de memória,
Isto não é brincadeira.

Mas se o jornal não contar
Durante esta semana
As coisas muito bem contadas,
Virei pra rua cantar
A história da italiana
Que levou sete facadas.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

90. Ismael (15) - Interrogatório número 1.


A senhora de Trás-os-Montes esteve fechada cerca de meia hora numa sala quase vazia e fria. A sorte da idosa foi que a Primavera tinha vindo quente nesse ano. Mas o reumático não perdoa. Na verdade a sala não estava vazia, tinha uma mesa e duas cadeiras mas sem mais nenhum outro móvel, objeto decorativo ou bengaleiro para o casaco, que a misteriosa senhora de Trás-os-Montes também não se preocupou em despir. O pior era mesmo não ter uma janela o que, para quem sofre de asma e tem complexos claustrofóbicos, não é muito saudável. Não sabemos se a senhora padecia de algum destes males, isto são apenas considerações. O inspetor Ismael Sacadura Flores entrou com um caderno de capa preta debaixo do braço e um sorriso mal disfarçado nos lábios. Atirou o caderno para cima da mesa e perguntou á misteriosa senhora de Trás-os-Montes o que é que ela tinha a ver com aquilo. O rosto da misteriosa e idosa senhora quedou-se imperturbável.

Esteve a transmontana mais de duas horas numa espécie de interrogatório. Folhearam o manuscrito de Francisca de trás para a frente e de frente para trás. Uma ou outra vez a idosa dava um misterioso sorriso ou franzia, não menos misteriosamente, o sobrolho. Ismael Sacadura Flores puxou apenas uma vez do maço de tabaco às riscas vermelhas e brancas da marca Provisórios e ofereceu um à senhora de Trás-os-Montes. Esta não aceitou e resmungou uma frase em inglês que perturbou um pouco o inspetor. No final da conversa, o inspetor Sacadura, como ele pediu á senhora para ser tratado, retirou do bolso um bilhete de avião com passagem paga na PanAm, para o dia seguinte e um voucher de uma noite para o Hotel Restauradores. Voltar aquela noite para casa dela na Rua dos Correeiros nem pensar, porque seria perigoso e ir e voltar à Quinta do Conde seria muito incómodo para uma senhora já da idade da misteriosa senhora de Trás-os-Montes. Lá fora esperava-a o agente Ismael de Almeida que ela bem conhecia da entrada do Teatro Nacional, onde este costumava dar milho aos pombos.

Ismael Sacadura Flores já no seu gabinete de trabalho discou um número no telefone. Pouco mais de uma hora depois, encontra-se com um jovem, de seu nome Espinheira (de quem já vos falei, mas que merecerá algum detalhe em breve), na tasca do meu amigo galego, Ismael Gúsman. Parece que o grande problema que tinha pela frente era o tipo de escrita de Francisca. Mas na verdade o que mais os perturba é o enigma. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes ouviu passos suspeitos no andar de cima. Entre a conversa dela com o agente disfarçado a dar milho aos pombos e a sua tentativa de partida para o Canadá tinham decorridos precisamente seis dias. Como é que Francisca, a páginas vinte e oito do manuscrito refere o número 7 como se fosse chave de algum quebra-cabeças e refere, isso sem equívocos ou dificuldades de leitura, a palavra ‘italiana’ e número 43 da Rua dos Correeiros? Quem lhe transmitiu a informação?

Uma luz apagou-se na vivenda, desocupada, da senhora de Trás-os-Montes em plena Quinta do Conde. A misteriosa senhora passou a noite no Hotel Restauradores, constantemente vigiada pelo agente disfarçado Ismael de Almeida que desta vez não deu milho a nenhum pombo, pelo que se estranha luzes na sua Residência. Em simultâneo, no número 43 da Rua dos Correeiros quinto andar, esquerdo ou frente já não posso precisar dado que já se passaram mais de cinquenta anos sobre o crime, no apartamento onde a misteriosa senhora residia em Lisboa, uma luz também se extingue e uma porta é fechada silenciosamente. Francisca ressonava no quarto do primeiro andar da vivenda em frente á da senhora idosa, misteriosa e transmontana. Sebastião consta que por estes dias teria embarcado para Coraçau como ajudante de cozinha. Espinheira meteu o manuscrito no bolso e pediu uma gasosa a Ismael Gúsman. O inspetor Ismael Sacadura Flores comeu uma sandes de chouriço e bebeu uma tacinha de vinho tinto.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

89. Ismael (14) - O fio da meada


O Ismael Gúsman, a Agatha Christie, o Gabriel Allon, a Francisca, a Isabela, o Ismael ben-Avrham, o Ismael Gúsman Júnior, o Sebastião, a Ekatrina Sminorva, o Ismael de Almeida, a senhora de Trás-os-Montes, o Rogério, as sobrinhas da senhora de Trás-os-Montes, o Ismael Sacadura Flores, o Ismaelix, o Espinheira, a Fernandinha, o barão francês, o Daniel Silva, o Goscinny e o Uderzo, o Dr. Castro Ribeiro, a Isaurinha Peres também conhecida como Isaurinha bate-sola, o Sr. Ismael de Gúsman y Toledo, a D. Laurentina, o Mário Zambujal, o Ismaelzinho, o homem de fato cinzento e chapéu, o Piskonov, o velho Ishmail Baruch, o Ismael Pinheiro, o Bernard Ismaelix, o meu pai e eu.

O Ismael Gúsman é o herói da nossa história, isso já todos sabem e são relembrados em cada episódio. Agatha Christie é escritora de livros policiais e de suspense, quiçá a mentora do judeu Ismael ben-Avraham, médico de profissão ou talvez um agente da Mossad disfarçado e apreciador de charutos cubanos. Gabriel Allon é o protagonista dos livros de espionagem do escritor Daniel Silva, um espião assassino e restaurador de quadros mas que não fará parte desta história, apenas foi citado. Francisca escreveu um manuscrito muito importante (que o paleólogo Espinheira tarda em descodificar) que ajudará com certeza o inspetor Ismael Sacadura Flores a desvendar o caso das sete facadas na corista italiana Isabela, companheira de quarto da bailarina clássica Ekatrina Smirnova. Ismael Gúsman Junior emigrou para o Canadá, já não me recordo se vos contei qual foi o destino dele, mas mais pormenores saberão assim como do seu filho Ismaelzinho e neto do nosso Ismael Gúsman que acabou adotado por uma misteriosa senhora de Trás-os-Montes ou pelas suas sobrinhas. O Dr. Castro Ribeiro continua a frequentar casas de alterne na cidade do Porto e tirando aquele caso de amizade com um presidente de um clube de futebol, não trará mais valor acrescentado à história. Mas isso fica para mais tarde. Ismael de Almeida, agente da Judiciária trabalha sempre sob disfarce e é muitas vezes visto a dar milho aos pombos mas não deve ser confundido com um tipo de fato cinzento e chapéu, que muitos julgam ter sido agente da PIDE. O Goscinny e o Uderzo são dois géneos da banda desenhada que me inspiraram a criar Ismaelix, um tipo com um bigode à Chalana, mas para o branco e o seu tio Bernand Ismaelix que assim como entrou em cena assim saiu e não se falará mais dele. O barão francês fez o que fez à Fernandinha, se calhar mato-o um dia destes afogado em vinho tinto, c’est pour cause. A Isaurinha bate-sola acabou por encornar o meu amigo Ismael Gúsman, não sei quantas mais referências vai ter aqui no livro. Tenho de ajudar o meu amigo a vingar-se. O Sebastião anda cá anda lá, ora está no cais do Sodré, ora embarca, ora passa pela tasca da Rua dos Correeiros a contar mentiras de viagens e a deixar pelo beicinho a nossa especialista em pastéis de bacalhau. A D. Laurentina, uma senhora séria a quem, bastas noites, o nosso querido Ismael Gúsman, todos sabemos órfão de D. Ismael de Gúsman y Toledo, pede perdão. Piskonov escreveu livros de matemática, editados em Portugal através de uma tradução do francês, não voltará a ser chamado. Ismael Pinheiro já nos disse que quando voltar a haver fados na tasca do meu amigo Ismael está disponível para tocar viola. Com cachet, é claro. O Rogério, ele próprio, haverá de escrever um livro, se é que não o escreveu já, tanto ele medita lá no cantinho da taberna e finalmente o meu pai e eu haveremos de nos arranjar por cá, pois também temos e teremos os nossos papéis.

Parece que hoje não adiantei nada ao livro que ainda não sei se um dia escreverei mas era absolutamente necessário fazer o ponto da situação para que, quer os que um dia gastem uns dezasseis euros numa edição impressa de Ismael e os outros, título provisório, mas que também poderia ser Nesta taberna há passarinhos fritos, outro título provisório, quer os que têm vindo a acompanhar na Internet esta saga, não se percam neste emaranhado de personagens onde, rai’s partam a ideia do autor, existem Isaméis para todos os gostos. Até o velho Ishmail Baruch um quase profeta bíblico e que coxeia que quase se não aguenta em pé, teve de aparecer na história.

Não gostaria de rematar este episódio sem vos falar no meu altamente apreciado autor Mário Zambujal, de quem já li várias obras, de cabeça umas quatro (ou cinco). O Zambujal foi, aqui atrasado, citado num episódio mas não entrará em cena. É que o meu livro já tem um coxo pelo que vou ter de dispensar o gago. Mas na verdade meu caro Mário, quem escreve assim…

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

88. Ismael (13) - Fernandinha


O gato passou-me por cima da secretária, colocou as patinhas em cima do teclado e alterou-me as definições do dito de tal maneira que o tipo passou de Garamond onze para  Batang setenta e dois.   Como consequência, a mais grave, foi a minha mulher ter passado em frente ao ecrã e ter visto em letras garrafais a palavra Fernandinha. Ora não lhe teria chamado a atenção se não fosse o nome de uma mulher, mas por fim foi uma conversa muito proveitosa. A modos que a justificar-me, lá lhe fui contando que ando a escrever um livro aqui no computador, um livro que talvez um dia se consiga acabar. E então ela pediu-me para ler o que já estava escrito. Acabei por lhe confessar que tinha um blog e acabamos a lê-lo lado a lado. Foi para mim, admito, uma sensação estranha ter de falar um a um dos meus personagens se nem eu próprio sei quem são. Assim não fui de modas e comecei logo por inventar a vida da Fernandinha, que não teve uma infância fácil. Nascida e criada até aos doze anos de idade numa aldeia da freguesia de Lajeosa do Mondego nas cercanias de Celorico da Beira, a emigração estava-lhe na massa do sangue. Quase todos os seus familiares já tinham dado o salto e os pais não se fizeram rogados. A menina, que com aquela idade não tinha quereres nem meios quereres, de trambolhão em trambolhão, acaba a instrução primária já numa escola de Paris, até que os pais, ele trolha de profissão e a mãe trabalhadora a dias na casa de uns senhores de linhagem, acabam por se transferir para os arredores de Marselha.

É neste momento que o gato volta a morder a perna da minha mulher que de surpresa solta um grito. Não foi nada de importante, apenas uma dentadinha de aviso por não ter ração na gamela. Ficou o resto da história da Fernandinha por contar mas não tenho a certeza se aos leitores deste livro isso interessa para alguma coisa. Ainda assim, atrevo-me a dizer que Fernandinha engravidou de um barão francês e abortou espontaneamente depois de ter descido à cave e partido propositadamente meia dúzia de garrafas de Château d’Yquem 1942 e quatro  de Château Margaux 1953, ambos premier grand cru classé.  Uns acham que o aborto se deveu aos vapores do tinto outros ao medo do que o barão poderia fazer com ela, a verdade é que acordou num hospital de freiras em Gémenos  e com a ajuda de uma minhota, vendedora de ervas aromáticas e sabões de glicerina, radicada em França há mais de oito anos, conseguiu ser enviada direitinha a Portugal para uma pensão da rua da Madalena em Lisboa com uma mala de cartão praticamente vazia. As últimas coisas que sabemos dela (da Fernandinha e não da minhota que pertence a outro conto) é que faz uns belos petiscos na tasca da rua do Correeiros que, como todos sabemos, pertence ao meu amigo Ismael Gúsman e que anda catrapiscada com Sebastião, sobrinho na nossa Francisca, a escritora de diários e que nem pode ouvir falar de ismaelix. Dizem que quando se deita não dispensa de ler umas páginas de Agatha Christie, pois sempre gostou de enredos.

De quem me dava mesmo jeito falar neste capítulo era do inspetor Ismael Sacadura Flores, do agente Ismael de Almeida que faz do disfarce a sua maior arma, sendo que até já foi visto a dar milho aos pombos e de Ismael ben-Avhraam que segundo consta o título de Dr. é um disfarce para as suas atividades de contraespionagem ao serviço da pátria do Rei David. Mas como isto são muito Ismaéis para tão poucos leitores se calhar vou ali vazar um bocadinho a areia da minha camioneta e já volto.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

87. Ismael (12) - Afinal havia um coxo


No quinto andar, a esta distância dos acontecimentos, já nem eu me lembro e creio que nem o Espinheira (de quem vos tenho vindo a falar aos poucos) foi capaz de me esclarecer, se seria no quinto direito ou no quinto andar frente já que no quinto esquerdo não teria sido, pois havia mais de três anos que estava encerrado por mor de uma penhora, que morou uma velhota misteriosa. Só era vista pela casa entre Setembro e Maio uma vez que, por questões associadas ao seu sistema hormonal, não aguentava nem muito calor, nem muito frio. Nessa altura, meados de Maio, mais coisa menos coisa, embrulhava a trouxa, comprava passagem e viajava até ao Canadá onde tinha lá uma filha, por sinal bem casada com um polaco e ainda duas sobrinhas que esperaram uma carta de chamada da tia para emigrarem. Diz-se que esta senhora era de Trás-os-Montes mas desde que saiu da terra para emigrar para o Canadá nunca mais lá voltou. Uns falam que foi por desgosto de amor, outros dizem que ela tinha umas contas a ajustar com um conterrâneo que veio morar, crê-se também que, para a Quinta do Conde, a verdade é que a pobre velhota (este pobre nada tem de material é apenas para enriquecer a escrita), alugou um apartamento na baixa, vivia entre Lisboa e Toronto, fazia caminhada todas as manhãs, dando duas voltas ao Rossio, contando as estátuas das fontes como entretenimento e, pelas nove da manhã, antes de ir à missa na igreja de S. Domingos, bebia uma ginjinha, na Ginjinha do Rossio, que pertencia a outro Espinheira que não o paleólogo de quem vos voltarei a falar. Palavra de escuteiro.

Ora no fatídico dia em que Isabela pereceu, terá comentado com um reformado, que se sentava junto ao Teatro Nacional D. Maria II a dar milho aos pombos, de que teria ouvido passos no andar de cima. Ela não achava nada de anormal ouvir passos nos andares de cima já que o prédio tinha vários moradores. Mas vindos do sexto andar esquerdo? Não… ali havia mistério. A menina Isabela tinha chegado tarde do teatro, que ela bem o sabia, pois a sua crónica insónia não a deixava pregar olho antes das quatro da manhã, embora às oito já estivesse a pé e a caminhar, vingando-se depois na sesta das três da tarde. Ora, se a menina chegou tarde e com uns passinhos tão leves, não poderia andar com tacões altos às sete da manhã, já o dia começara a romper, pois nunca a vira levantar-se para abrir a janela antes do meio-dia, meio-dia e picos. E a mais que ela bem lhe pareceu ter ouvido um grito. Não se meteu, porque não tem nada a ver com a vida dos vizinhos, só estranhou os tacões pelo que o barulho lhe pareceu algo irregular, de alguém que fosse manco. O reformado que dava milho aos pombos junto ao Teatro Nacional, levantou os olhos do chão, olhou para a misteriosa senhora de Trás-os-Montes e respondeu, Pois!

Quando a misteriosa senhora de Trás-os-Montes, já após ter feito o check-in, àquele tempo no único terminal do aeroporto de Lisboa se preparava para partir, Ismael Sacadura Flores, o inspetor encarregado do “caso corista” não a deixou embarcar.

 Em Toronto, duas sobrinhas esperaram muito tempo pela tia trasmontana.

domingo, 8 de janeiro de 2012

86. Ismael (11) - copos


Tinham acabado as festas, Baltazar, Belchior e Gaspar já tinham entregado os presentes ao Menino Jesus, as mesas já haviam sido levantadas, as passas sobrantes, os pinhões, e até as frutas cristalizadas um dia destes serviriam para fazer um bolo inglês. Quando abri o frigorífico já nem um pouco do borrego assado no dia de Reis, envolto em gordura coalhada, sequer sobrava. Os queijos haviam levado um sumiço e até do pedaço de presunto comprado na feira de Natal só sobrava o osso. Tinha de sair para a escola, a minha mãe atrás de mim com uma caneca de café acabadinha de fazer e uma fatia de bolo-rei e eu a dizer que não tinha tempo para tomar o pequeno-almoço, farto que estava de bolos, filhoses e fatias paridas. Sei que ela ficou com uma lágrima no olho por eu ter sido tão brusco ao fechar o portão da escada, mas o Sr. Ramalho não iria esperar para pôr a carreira em andamento até Cacilhas só porque aqui o moi même tinha de tomar o cafezinho e assim saí e assim, sem nada no bucho, cheguei à faculdade.

Com aulas atrás de aulas acabei devorando uma sandes de queijo e um sumol num dos intervalos e uma bica e dois cigarros noutro. Quando por volta das cinco da tarde saí do Técnico estava com uma fome de lobo e não pensei em mais ninguém, nem em mais nada. Apanhei o metro até ao Rossio e dirigi-me à Rua dos Correeiros, à tasca do meu amigo Ismael. Passarinhos acabados de fritar, rissóis de camarão e pastelinhos de bacalhau, como só a Fernandinha os sabia fazer, só naquela tasca recôndita, mal iluminada onde o Rogério se senta a ler e a escrever.
   
Ainda não vos falei do Rogério, tampouco da Fernandinha, mas deixarei para mais tarde alguns detalhes e quiçá, umas narrativas dos personagens. Hoje apenas vos digo que a Fernandinha era a moça que o Ismael tinha contratado para a cozinha. Uma jovem beirã, faces rosadas, um pouco anafadinha para a idade mas que não deixava de ser a cobiça de quantos paravam na taberna. Sabe, xenhor Constantino (apesar de eu me irritar com este tratamento, jovem de pouco mais de vinte anos que eu era), se voxê quisesse tinha ali um bom partido. E eu começava-me a rir, oh homem, vossemecê não acha que ainda sou muito novo para me prender? Não sei que idade tinha o Ismael Gusmán, mas já teria entrado nos cinquenta, o filho, Ismael Gusmán como o pai, a quem tratávamos por Júnior já era crescidote na altura e o senhor Ismael já não era novo quando teve aquela aventura com a cantadeira Lucrécia, Deus tenha a sua alma em descanso porque era boa mocinha mas, enfim, muito fraca de corpo e, naquele tempo, a tuberculose era fatídica. Ou então, venha de lá quem saiba, teria sido de ciúmes da Isaurinha bate-sola, pois se se morre de amor, também se morre de ciúme. No entanto, aquela contratação da Fernandinha, trazia água no bico. Adiante.

Ficamos depois ali mais de uma hora a falar de namoradas e a comer rissóis de camarão, passarinhos fritos e pastéis de bacalhau e eu a vingar-me da bebida que em casa não bebia, não que não tivesse havido espumante, anis e vinho abafado, mas um adolescente e ainda por cima estudante, não se mete nessas coisas. Não foi portanto de admirar que um bom jarro de tinto já me tenha dado um certo tremor nas pernas. Não dei parte fraca mas acho que ao senhor Ismael não lhe passou despercebida a cor dos meus olhos. Quando lhe dei as boas noites e lhe acenei com a mão como quem faz continência, estava quase na hora do último vapor do Terreiro de Paço para Cacilhas. Voei, literalmente, e lembro-me de um homenzinho de camisa azul e panamá branco, de virola dobrada, gritar-me salta ou ficas em terra. Saltei.

Durante uns quatro ou cinco dias não tive oportunidade de passar pela taberna do galego pois um exame de eletrotecnia e uma discussão do trabalho de uma disciplina tão parva que já nem me lembro o nome, me ocuparam mais horas do que aquelas que eu gostaria de ter despendido. Para mim há outras coisas boas (muito boas) na vida que não seja só estudar, mas obrigações, são obrigações.

Seja bem aparexido sr. Constantino, cumprimentou-me o Sr. Ismael mal bati com a cabeça nos espanta-espíritos, anjinhos em latão amarelo tocando sinos com uma vareta, suspensos na porta que sinalizavam a nossa entrada. Respondi-lhe à saudação com um aperto de mão e meio abraço e aproximamo-nos de uma mesa isolada quando ele me atacou. Oiça lá xenhor Constantino, o tintinho faz boxê perder o xuízo ou está a ficar maluquinho de tanto estudo? E eu com uma cara de parvo que nem imaginam, fazendo-me de novas sobre o que ele estava a falar. Esperto e perspicaz, o meu amigo galego dá uma gargalhada e diz-me baixinho, não, não xenhor, não o estou a criticar de ter passado o tempo a bater olhos à Fernandinha, mas que história é essa de me ter passado a tarde a chamar xudeu, de me dixer que eu era tal e qual o xenhor ben-Avraham e dizer-me que um dia ainda vai desvendar o crime das sete facadas?

Nesse dia, li um livro de Asterix, folheei três páginas de Herman Hess e decidi-me por Edgar Morin. E nem a voz abafada de um bardo cantando como se estivesse atado a uma árvore me inspirou o resto do dia. Quando adormeci, em vez de sonhar com Isabela voavam à roda da minha cabeça seis passarinhos fritos e três pastéis de bacalhau.