quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

107. Ismael (30) - Mas afinal quem é que é esse tal Castro Ribeiro?



Francisca escreve muito bem, dizia o inspetor Ismael Sacadura Flores olhando para o jovem Espinheira, depois deste lhe ter lido a página noventa do manuscrito. O jovem paleólogo tinha conseguido decifrar a terceira parte do conto de Francisca enquanto, por outro lado, se ocupava das biografias que ela escreveu de alguns dos personagens, eventualmente envolvidos na morte por esfaqueamento da pobre corista italiana. Sete facadas é coisa que não se faz a ninguém, mas esta infeliz não conseguiu ter melhor sorte. Leia-me isso outra vez pedia, quase encarecido, o inspetor Ismael Flores ao jovem estudante de Letras e avençado do Estado, leia-me outra vez, Espinheira, que isso é tão bonito. E o Espinheira leu.

«A idiossincrasia do que parecia ser o chefe do grupo, dado que todos os restantes pareciam idolatrá-lo, criou-me a ilusão de que seria idóneo. Quando me desloquei a caminho do deserto, estava realmente convencido que o era. No entanto pequenos igarapés cortavam o terreno em quase todo o seu comprimento e em toda a sua largura, criando malhas incomensuráveis de água, o que nos obrigou a dividirmo-nos em ínfimos grupos de apenas três indivíduos mas que mal cabíamos nas igaras estacionadas em fila. Chegamos finalmente a uma pequena ilha, ao fim de mais de 12 horas de viagem sem nada comermos. Apenas um gole de água, que um dos indígenas me ofereceu, por uma única vez. Quando chegamos, o meu aspeto apresentava-me como um ser ignóbil. A ilha estava iluminada aparentando ser uma igreja natural. De repente, tive a sensação de me ter deixado iliçar. Ígneos archotes debruavam um caminho que me conduziria ao mais ignoto dos mundos. Eu, que não era da igualha destes autóctones, estava a ser convidado a sentar-me à volta de uma mesa coberta das mais exóticas iguarias. Não arranjei coragem para ilidir. Só pensava se sairia dali ileso»

É ou não é lindo, Espinheira?, confesse lá. Espinheira que não era pago para dar opiniões ou para confessar o que quer que fosse, mas apenas para decifrar os quase hieróglifos cursivos de Francisca, assentiu com a cabeça e perguntou ao inspetor se afinal queria saber alguma coisa sobre o Dr. Castro Ribeiro ou não. O inspetor Ismael Sacadura, olhou para o relógio e ao reparar que ali por perto estava o Rogério, cumprimentou-o tirando a boina basca que por vezes usava, principalmente quando estava frio. Rogério que se tinha sentado na mesa ao lado era todo ouvidos no conto de Francisca que, penso eu, narrador destes feitos, ainda poderá vir a ser uma coisa interessante. Levantou-se então o inspetor, arrastando consigo o jovem futuro licenciado em filologia românica, sentando-se ambos numa mesa mais recatada. E entre dois carapaus de escabeche e um branquinho caseiro dos lados de Torres Vedras, diz Espinheira que a páginas quarenta e oito e também sessenta e dois, Francisca se refere ao seu ex-marido nos seguintes termos.

“O Castro Ribeiro era um homem muito interessante na sua juventude. O padrinho dele, um padre de uma freguesia do concelho de Carrazeda de Ansiães, depois de ter mandado o menino estudar no Seminário Maior do Porto, ainda o enviou para Coimbra terminar o ensino liceal, dado que o Nuno, seu primeiro nome, não era dado às coisas da Igreja. Vivendo numa República, Castro Ribeiro terminou os cinco anos do curso de Direito em oito, mas entre bebedeiras e mulheres ficou-lhe uma famosa reputação de advogado honesto e competente, com escritório montado em Vila Nova de Gaia. Especializado em importações e exportações logo se deu com os maiores produtores de vinho do Porto, com as suas festas privadas e com as inevitáveis bacantes. Vinho e mulheres, mulheres e vinho. Bem me avisaram quando me casei com ele...”, lamentava-se Francisca às tantas, mas o inspetor pediu a Espinheira que saltasse as partes piegas que isso seria coisa mais falada no futuro e nada adiantaria para desvendar o crime. E assim Espinheira obedeceu, de modo que ouvimo-lo, quero dizer, ouvimo-lo não, eu é que inventei isto pois sou o narrador, mas fica bem dizer ouvimo-lo continuar, já saltando alguns parágrafos. “Contratado que foi para descobrir o que se teria passado com uma conta de um judeu famoso, de origens russas, aberta em Zurique, vem Castro Ribeiro muitas vezes a Lisboa”. Senhor Inspetor, vou agora saltar aqui umas frases que, ou são piegas ou são carnavalescas se não se importa, solicitou a permissão, o jovem Espinheira, ao inspetor encarregado por este homicídio, que todos sabemos ser Ismael Sacadura Flores. Entretanto, Ismael Sacadura Flores, pediu a Ismael Gusman, o dono da tasca da Rua dos Correeiros e meu amigo, galego de nascimento, que lhe trouxesse mais dois carapaus, com bastante molho e uma fatia de pão, enquanto Espinheira acabava de arrotar o gás de um pirolito, com sabor a limão, que tinha acabado de beber. Salte sim, Espinheira, deixe para outra ocasião as pieguices e fale-me lá dessa conta na Suíça, anuiu o inspetor ao pedido de Espinheira, sem qualquer tipo de contestação. Oh senhor Inspetor, retorquiu o Espinheira um bocado embaraçado. Se eu lhe contar tudo agora não fica nada para dar algum suspense à cena. Não acha que deveríamos deixar para depois do escabeche. É que até a mim me estão a apetecer uns carapauzinhos.

Enquanto os dois comiam, levantei-me, dirigi-me discretamente ao balcão, olhei para o decote de Fernandinha, hoje um pouco mais atrevido do que é costume, ainda mais atendendo à época e falei baixinho ao ouvido do meu amigo Ismael Gúsman. Sabe meu caro, eu suponho que aquele número atrás da medalhinha que os judeus andam à procura tem alguma coisa a ver com a conta na Suíça, o que é que você acha? E depois de o ver franzir os dois sobrolhos de uma só vez é que me atrevi a perguntar. Mas diga-me cá uma coisa amigo Ismael, o que é que isso pode ter a ver com o facto do Dr. Castro Ribeiro andar às seis da manhã, em pleno Cais do Sodré, quando a Ribeira já se enche de pescado, frutas e legumes, orégãos e flores, entre elas gladíolos e magnólias, aos gritos de “eu mato aquela puta, eu mato aquela puta”? O Ismael olhou para mim com um ar muito sério, quase como se fosse meu pai e repreendeu-me. Constantino, estamos em mil novecentos e cinquenta e seis, o menino ainda nem fez um ano de idade, isso são palavrões que se digam? É por estas e por outras que eu gosto mais de escrever ficção científicas do que romances de época. Acho que um dia destes ainda escreverei, “2087, o assassínio de uma corista em Andrómeda”.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

106. Cinquenta e sete


Naquele tempo eu e o meu irmão Leopoldo jogávamos à bola onde quer que fosse, numa praceta alcatroada da estrada ou numa de terra batida entre prédios, numa eira de trigo e milho, numa clareira onde quatro pinheiros ou outras quaisquer quatro árvores cortadas ou em pé, serviam de balizas, no adro da ermida onde íamos à missa ou no largo do liceu com balizas feitas de malas e agasalhos, onde só era golo se a bola passasse rasteira, vá lá a meia altura, pelo meio da baliza, pois, caso contrário seria “altas” ou no “poste”, invisível, imaginado no prolongamento do monte de pastas e livros. E era por detrás do prédio dela, pisando ervas e cardos, destruindo arbustos. Naquele tempo em que eu era um pequeno e esguio avançado-centro e o Leopoldo o guarda-redes, onde os árbitros somos nós e a voz mais poderosa, aquela que decidia se o jogo ia continuar ou não, era a do dono da bola, naquele tempo discutia-se se uma bola foi “altas”, ao “poste” ou golo, na voz alta, estridente e esganiçada de crianças, onde para o avançado era sempre golo e para o guarda-redes nunca o era, acontecia chegarem a vias de facto, até que, no fim, pudesse ser erguida a taça. E ela na janela a ver os miúdos da sua idade a jogarem à bola com, quem sabe, mais olhos para o avançado-centro do que para o guarda-redes, o médio ou o defesa, ela que quando acabava o jogo, ou antes, fechava a janela, corria as cortinas e se fechava em casa com os longos cabelos dos seus doze anos, por vezes transformados em bonitas tranças, sainha curta e bata branca, muito branca, quando caminhava para a escola. E o avançado-centro esbaforido e de rosto vermelho de cansaço que se exibia marcando golos, limpos ou ao “poste”, para a menina de doze anos, debruçada sobre o parapeito da janela ou que, de banho já tomado, na sua calça de fazenda vincada e camisa bem engomada, um pullover se era inverno, a esperava às escondidas na rua em frente à porta da saída da escola e depois se atravessava numa qualquer travessa para não ser visto e já com ela de costas lhe admirava os longos cabelos negros.

Passam-se os anos, a menina de doze anos casou com o avançado-centro, há dois filhos e um neto e a menina que fazia tranças no cabelo hoje usa-os mais curtos, já não são tão negros assim e é uma felicidade somar mais um ano aos seus doze anos e, viver com a graça de Deus, mais este vinte e oito de fevereiro, não com doze, nem com treze, nem com catorze mas com alegria e não vou dizer quantos mais. E o avançado-centro, que agora já não é esguio o suficiente para correr em cima de cardos e marcar mais um golo ao Leopoldo, limpo ou ao poste, mas que ainda tem fôlego para cantar as quadras dos parabéns a você e erguer lá no alto uma taça mas agora de champanhe.

As coisas que a gente se lembra quando se cumpre mais um ano de vida. Parabéns, amor e que contes muitos que eu vou contando histórias.


domingo, 26 de fevereiro de 2012

105. Ismael (29) - Uma tasca sempre às vossas ordens



Quando tento escrever algo com mais sentido, coerência ou até graça, não me sai nada da cabeça. É por isso que me socorro muitas vezes de livros escritos há mais de duzentos anos, por autores completamente desconhecidos do grande público, encontrados aqui e além em alfarrabistas anónimos e lhes roubo meia dúzia de ideias, leio almanaques do primeiro quartel do século XX com anedotas do Bocage e desfaço-as em contos e leio alguns livros de filosofia para debitar umas frases com enfase e erudição. Costumam dizer os críticos que o escritor fulano de tal sofre a influência do grande romance realista queirosiano, ou que beltrano é um fruto do novelismo contestatário camiliano, ou, ainda, que sicrano é mais um que seguiu a escola da poesia parnasiana. Outros desenvolvem a sua escrita socorrendo-se por exemplo do filósofo judeu sefardita Edgar Morin para construírem algo que se pareça fruto de um pensamento complexo, mesmo que só fique bem na adjetivação da sua obra ou, outros ainda, são tão lineares e racionais que, diriam os críticos com toda a pompa e alguma circunstância, os seus romances, ensaios e ficções são mais cartesianos que o próprio pensamento de Descartes. Pois eu, para além das dicas sobre os truques que uso e que já foram supra referidas, antes que a crítica me venha a classificar e englobar num qualquer grupo ou numa qualquer escola literária, classifico-me a mim próprio, passe a redundância, como um homem de escrita de influência predominantemente franciscana. E não me venham falar que de S. Francisco de Assis não se conhecem obras escritas mas sim as mais variadas biografias, que talvez eu estivesse a confundir-me com o padre António Vieira e tal, mas aí já seria jesuíta. E como eu não lhes quereria responder apenas, pois! tenho, portanto, que esclarecer que o meu franciscanismo não provém de nenhum santo ou padre mas sim do facto da maioria da minha sustentação literária estar, última e praticamente, confinada ao manuscrito de Francisca, esse sim, um compêndio escrito de alto a baixo, nas margens e nos rodapés, profícuo em contos como os ”Contos das ilhas de lá”, em novelas policiais como “O Dia da morte de uma bailarina”, cujo texto já é quase todo do vosso conhecimento,  em ficção como “A chapa das notas de vinte paus”, já para não falar na série de contos “Na taberna do galego”, onde eu me inspirei para que hoje em dia ande a escrever um bloglivro.  Também me inspiro nas suas capacidades de biógrafa não autorizada, sendo que bebi muito na obra de Francisca desde a biografia do  “Dr. Nuno Castro Ribeiro” subtitulada  “proeminente e honrado advogado de Vila Nova de Gaia”, à biografia da grande bailarina neoclássica Ekatrina Smirnova, neta de um velho judeu russo, expulso pelo czar Nicolau II, durante os famosos progroms passando pela, de entre as mais importantes, obra biográfica e histórica  “Fernandinha, a roliça beirã”, como ela mesmo a intitulou. Desta inspiração franciscana poderão sair e deverão mesmo sair mais alguns episódios de Ismael mas isto só será possível enquanto a taberna estiver aberta, os clientes continuarem a cá vir, nem que seja comer um pãozinho com cheiro, que coisa boa de comer e beber não irá faltar nesta tasca, assim os governos no-lo permitam. Enquanto a Teresa, a Luísa, a Assíria, o Rogério, a Janita, a Teté, a Margarida, o Eufrázio, o Manel, a Cida, a Manu, a Eva, o Maceta, o Chuva, a Paula, o Carlos, a Piedade, a AvoGi, a Fatyly, a Canto, a Justine, o Rafeiro, a Catarina, a Custódia, a Eva, a Lis, a Maray, o Peras e tantas e tantos outros aqui entrarem, o negócio da taberna vai dando para os trocos, não fechará a porta por falência e terão aqui alguém fortemente inspirado pela manuscritora Francisca a escrever para vocês.

E nesta tertúlia, que se reúne aqui pela tasca do meu amigo Ismael ainda há tempo e apetite para uns croquetes de atum com arroz de pimentos e um verde de Ponte de Lima. Alguém alinha?


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

104. Ismael (28) - O dia em que o inspetor Ismael Sacadura Flores desvendou quem matou Isabella




Era hoje. Ia ser desvendado quem foi que matou Isabella. A reunião foi convocada num misto de passa-palavra, de convites e de intimações. Nem de outro modo poderia ser, dado o caráter heterogéneo dos intimados e convidados e, dadas as circunstâncias. O inspetor Ismael Sacadura Flores não era apenas o mais qualificado diretor de departamento da PJ, mas também o grande estratega da corporação. Apenas uma ligeira desavença, devido a coisa de somenos importância, que se um dia me aprouver vos contarei, mas que adianto, para que vejam como os homens se chateiam uns com os outros, chegam até a vias de facto ou guerreiam-se em conflitos locais e por vezes mundiais. Um desentendimento por causa de um arroz de lampreia entre o inspetor Sacadura e o senhor Ministro da Justiça, fez com que o primeiro nunca tenha chegado a diretor nessa mesma polícia criminal, embora todos saibamos que, na liça, quem tinha razão era mesmo o inspetor Ismael Sacadura Flores. Mas adiante, o que hoje interessa menos são as incidências de um arroz de lampreia mal sucedido e mais o crime, hediondo já se sabe e como ele deve ser tratado. Pois se restassem dúvidas aos meus leitores e leitoras relembro que estou a referir-me às sete facadas que prostraram no soalho daquele sexto andar do número quarenta e três, já sem vida, a linda, a elegante e até simpática, atrever-me-ia a escrever deveras simpática, corista italiana do teatro de revista.

O Dr. Castro Ribeiro recebeu um telegrama de Francisca, sua ex-esposa, um telegrama em que referia assuntos de comum interesse. O local do encontro seria na célebre taberna, superiormente gerida, como se diz hoje, pelo meu amigo e empreendedor, como também se diz hoje, Ismael Gúsman. Já o Rogério não precisou nem de ser intimado nem de ser convidado pois, para ele, não havia melhor convite do que o cheiro dos passarinhos fritos. A Isaurinha bate-sola, que não perdia uma para ficar frente a frente com a Fernandinha, a vontade dela era puxar-lhe os cabelos nem que fosse em pensamento, quando soube que Sebastião também lá ia estar, cancelou um compromisso com um construtor civil que estava a erigir, em dois lotes na Quinta do Conde, prédios de três andares com loja e sobreloja. Para o Espinheira bastou um telefonema do inspetor Sacadura, aliás o mesmo inspetor que fez o favor de chegar a Toronto no Canadá um bilhete de ida e volta e uma intimação da Interpol para que a misteriosa idosa de Trás-os-Montes não se pudesse recusar a estrar presente. O velhinho Ismail Baruch que andava a chá de limão e Saridon, para tratar de uma grande constipação que só o fazia sair de casa às cinco da tarde para, às escondidas do sobrinho ir beber uma ginjinha e espreitar as pernas da Fernandinha, lá estaria também. Difícil foi conseguir as presenças de Ekatrina Smirnova, a braços com um invulgar trabalho de pernas para a estreia do bailado da Companhia no próximo fim-de-semana e o Dr. Ismael ben-Avraham que alegou estar de serviço nas urgências dos Capuchos, embora não haja nenhum registo de que este médico alguma vez tenha feito serviço naquela unidade hospitalar (unidade hospitalar em vez de hospital, deste estilismo é vocês não estavam à espera, confessem). Se um piscar de olho do chefe de brigada Ismaelix foi o suficiente para trazer Ekatrina com ele, diziam na época que eram mais as vezes que Ekatrina dormia na cama de Ismaelix do que na sua cama, no mesmo apartamento onde a vítima veio a ser esfaqueada, já para convencer o judeu foi necessário que o outro chefe de brigada Ismael de Almeida, que já conhecemos dos seus dotes especiais para alimentar pombos a milho,  lhe acenasse com dois Montecristo nº 3 e mesmo assim ficasse ainda de arranjar uns Partagas Lusitaneas  que um contrabandista famoso, que costumava parar no Barba Roxa, um bar mal afamado do Largo de S. Paulo, lhe arranjava todos os meses, vindos diretamente de Cuba. Francisca essa, altiva e presunçosa tinha a certeza que a sua presença seria indispensável e fez-se representar sem convite, nem intimação. Sebastião, acabado de chegar de uma viagem que fez como ajudante de cozinheiro num paquete italiano, que levava europeus para trabalharem nas américas, ajudava a tia Francisca a subir e a descer dos autocarros e a entrar e a sair do vapor, pois, naquele tempo, a viagem da Quinta do Conde, num velho autocarro dos Belos e uma viagem no Sul Expresso, um cacilheiro que mais parecia um charuto, não era coisa pouca. E se já sabemos que Sebastião tinha um forte alibi, pois andava embarcado no dia em que mataram Isabella, pobrezinha, com sete facadas e que além disso andava embeiçado pela criatura, também acabou por fazer parte dos presentes. Mas este com intimação policial, o que, como acabei de escrever nas três ou quatro linhas acima da necessidade de acompanhar a tia Francisca, não teria sido preciso.

E se às sete horas da tarde já todos estavam a postos para escutar as alegações policias, passava já da meia-noite, entre iscas com elas, lombinhos na chapa, passarinhos fritos, saladas de orelha, pasteis de bacalhau, sandes de torresmos, carapaus de escabeche, ovos cozidos com e sem sal, sangacho de atum com feijão-frade, vinho tinto do Cartaxo, morangueiro de Ponte de Lima, laranjadas e pirolitos, para além da caixa em forma de pirâmide triangular dos palitos Confiança, os melhores para palitar dentes, que esteve sempre em cima da mesa, vários maços de tabaco consumidos, quando, num ambiente pesado, com uma nuvem de fumo a pairar-lhes sobre as melenas, o Inspetor Ismael Sacadura Flores concluiu e anunciou quem matou Isabella Vicentini. Alguns viraram as cabeças para um lado, outros para o outro. Os restantes baixaram a cabeça, exceto uma pessoa que olhou pra o teto, mas não nos pareceu, que alguém tivesse ficado admirado.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

103. Ismael (27) - Seio familiar



No seio familiar não houve surpresas. A minha mãe disse-me que já estava à espera, pois já era um hábito de família. E relembrava-me que o meu irmão Leopoldo, deste há muitos anos, escreve programas de computador e que o meu mano Paulinho escreveu já uma tese de mestrado, outra de doutoramento e passa o tempo a escrever artigos em revistas. Já para não falar nos teus filhos, rematou. Só me faltou dizer que eu saio a eles, logo eu que sou o mais velho. O meu pai quis também saber do que é que tratava o livro, mas quando lhe comecei a explicar e depois de ter voltado ao princípio duas vezes, ele achou tão complicado que me contou a anedota da moça que quando recebia aerogramas escritos pelo namorado, no tempo da guerra, os levava ao farmacêutico para decifrar. O meu pai aproveita quase todos os ensejos para dizer uma graça. Acho que ele tem a quem sair. Adiante.

Depois falamos de coisas mais práticas, eles quiseram saber quando é que sai o livro, quanto é que vai custar, se eu já tenho muitas encomendas e tal e foi aqui que surgiu a confusão toda. Expliquei-lhes que isto não era bem um livro, nem tão pouco eu próprio sabia se não seria um abuso estar a chamar-lhe livro, pois não é de papel (tenho de fazer um parêntesis para vos dizer que descortinei neste preciso momento o primeiro sinal de admiração pois, que eles saibam, livro é mesmo papel e não há cá nem fun-funs, nem gaitinhas), é escrito na internet e que só quem tem esta ligação é que me pode ler. Talvez se algum dia vier a ser publicado, aí sim, poder-se-á vir a chamar livro, mas haverá sempre quem diga que, como livro, o melhor era eu ter ficado quieto e não se falava mais nisso, mas nós já sabemos como cruel é a crítica. Pelo sim, pelo não, lá me foram dizendo para quando eu fosse lá a casa com a tal internet, lhe lesse umas paginazitas para verem se eu tinha jeito para a coisa. Depois despedi-me, com um beijo, da minha mãe, que ficou com uma lágrima no olho, cheia de pena da Isabella e que ainda me perguntou porque é que deram logo sete facadas à rapariga, que isso não se faz, não há direito, palavras dela. E saí com o meu pai.

O meu pai, pôs-me um braço por cima do ombro, caminhamos no corredor direitos à porta, descemos as escadas lado a lado e, já na rua, suspirou-me, com que então escritor! Eu corei um pouco, porque sou modesto e aproveitei para lhe pedir desculpa por naquele dia, quando eu andava na escola primária, em que ele me ofereceu a minha primeira caneta de tinta permanente eu tê-la deixado roubar. Pela primeira vez ele confessou que nunca se tinha importado com isso pois sempre pensou que eu viria a ser jogador de futebol. Como estávamos longe da taberna do Ismael, entramos no café lá do bairro e fomos beber dois abafadinhos. Quando me vim embora ainda me perguntou, mas sete facadas porquê?


domingo, 19 de fevereiro de 2012

102. Ismael (26) - Correntes



Oh Senhor Constantino, assim começou a conversa que o meu amigo Ismael Gúsman quis ter comigo, mas com sotaque galego. E porque não estou com vontade de o fazer, nem sei escrever muito bem em galego, vou-vos relatar tudo isto em português. Oh Senhor Constantino, eu até estou com medo. Eu que tinha acabado de entrar na taberna da Rua dos Correeiros fiquei bastante baralhado. Medo de quê?, pensei em perguntar-lhe, mas não perguntei. Olhei primeiro para o fundo da sala e como o pide não estava lá, achei que não era coisa política. Olhei para as prateleiras, intactas e arrumadinhas, não havia sinais de assalto ou tentativa, também não seria por aí. Diga-me o que é que o aflige, amigo Ismael, ainda pensei em incentivá-lo a prosseguir, mas não o incentivei. Olhei-lhe o rosto, os olhos tinham um ar normal, não me pareceu que estivesse doente. Oh homem acalme-se e diga-me o que é que tem, pensei ainda em dizer-lhe, mais ou menos de uma forma imperativa, embora tentando não o forçar em nada, mas não lhe disse coisa alguma, já que Ismael estava numa pilha de nervos como nunca lhe houvera visto. Desembuche, homem, sou todo ouvidos, foi o que finalmente me ocorreu, mas acabei por, naquele instante, ficar calado.

Tudo isto não durou mais do que uma fração de segundo, quer os meus pensamentos não consumados nem em palavras nem em atos, quer os meus olhares, que rondaram, a bem dizer, os trezentos e sessenta graus. Não mais de que uma breve fração de segundo o que, em determinadas circunstâncias, tem tendência a parecer-nos uma eternidade. Mas o que é a eternidade senão um somatório de pequenas frações de tempo que arrastamos e acumulamos por séculos e séculos? E se eu agora desatasse aqui a filosofar sobre o tempo, sobre a eternidade, sobre o sobrenatural, sobre o exoterismo, sobre quiçá o apocalipse, sobre o julgamento final, sobre a redenção das almas. Não teria interesse nenhum, juro-vos, não só porque não sou especialista em nenhum destes assuntos, mas também porque me desviaria completamente do tema deste texto e, mais ainda, do real objetivo do compêndio que ando a compilar. Voltando ao assunto que me levou a escrever este capítulo, o qual não é definitivo pois ainda o porei à consideração daquela moça que encontrei um dia à mesa do café e que por coincidência ou não, vim a saber mais tarde, é filha do senhor Ismael da Ervanária, doutor licenciado em farmácia e responsável técnico daquele estabelecimento da Quinta do Conde. Se ela achar que o deva publicar então levá-lo-ei ao vosso conhecimento.

E neste nano-segundo decorrido desde que Ismael me disse, Oh senhor Constantino, eu até estou com medo e este preciso momento em que estou a dar continuidade à frase, já quase que me ia perdendo. Oh Senhor Constantino, eu até estou com medo de não dar seguimento a isto, acabou finalmente por concluir a frase. E, ato contínuo, mostrou-me então uma carta anónima, acabadinha de chegar no correio das dez da manhã, com uma oração a S. Judas Tadeu, uma série de ameaças veladas em castigos e punições, a ele e à sua família que, para o efeito, era naqueles tempos ainda e só o Ismael Gúsman Júnior ou simplesmente Júnior, como era conhecido o seu filho, já que o neto, o Ismaelzinho, ainda não tinha nascido e ainda uma série de recompensas, nomeadamente a sorte grande na Lotaria Nacional consoante ele escrevesse ou não uma nova oração, juntasse àquela e mandasse a sete pessoas diferentes num prazo de três dias.

Eu lembro-me desta cena perfeitamente como se fosse hoje. Bem sei que naquele tempo toda aquela gente já tinha esquecido a morte de Isabella, a corista italiana que tinha sido assassinada com sete facadas, sete sim, não foram poucas, o que era normal, pois isso tinha sido há dezoito anos atrás. Nunca mais na Rua dos Correeiros, nem tão pouco na Quinta do Conde houve similar tragédia. Mas era disso mesmo que Ismael e outros, que eu também vim a saber terem recebido cartas similares, tinham receio que se viesse a repetir, se quebrassem aquela corrente. E meus amigos e amigas que tiveram a paciência de me ler até aqui, quereis saber como é que lhe respondi e o que é que eu, efetivamente, fiz? Molhei os lábios num copo de tinto, daquele carrascão que deixa os bordos todos vermelhos, dei-lhe um beijo na testa e disse-lhe, Ismael, meu caro e grande amigo, durante os três dias não apague o sinal do meu beijo; isto é um selo que merece ostentar se tiver a coragem de quebrar essa corrente.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

101. Ismael (25) - Carnaval


Falta de atenção, o que mais me chateia é a falta de atenção, gritava o inspetor Ismael Sacadura Flores, sob o ar incrédulo dos seus mais diretos colaboradores. O jovem Espinheira, ali ao lado, estava mudo e quedo, aquilo não era nada com ele, era entre polícias e ele era apenas um contratado, no tempo em que não havia recibos verdes mas em que se pagavam avenças. Na realidade, sempre que o jovem Espinheira tinha que preencher aquela papelada burocrática e na mesma folha onde punha uma cruzinha à frente da frase em que jurava pela honra dele que não era comunista nem tinha contatos com organizações subversivas, sempre que lhe perguntavam outra atividade, para além da de ser estudante de Letras na Universidade de Lisboa ele usava a expressão, “avençado do Estado”. Ismael Sacadura Flores estava muito excitado naquela tarde e o caso não era para menos. Faltas de atenção é que ele não suportava.

Antes que os chefes de brigada Ismaelix e Ismael de Almeida pudessem sequer esboçar que iriam articular uma frase e muito menos abrir a boca, nem que fosse para bocejar, gritava o inspetor Sacadura, para quem o quisesse ouvir, mas quem é que aqui é a ferrugem destas algemas? Quem é que aqui é o bolor deste pastel de nata de exportação? Qual de vocês anda a estudar para ser como o cromo do comentador desportivo da SIC, hein? E roborizava cada vez mais a cada grito que dava. Nunca vos falaram em moleskin? Ao menos já ouviu falar em caderno de apontamentos, não ouviu senhor Ismaelix? E cadernos de apontamentos com capa preta e linhas pautadas, nunca viu nenhum na vida, não, senhor chefe de brigada Ismael de Almeida? Só sabe dar milho aos pombos, é, seu porteiro de teatro, incompetente? E à medida que ia insultando os seus adjuntos, mais excitado ia ficando, a pontos da Micas, a secretária do departamento de Homicídios e Tráfego de Mulheres, Drogas e Outros Contrabandos, a HTM.doc da Polícia Judiciária ter de lhe ir buscar um copo de água com açúcar.

Alguns minutos depois, debaixo de um silêncio sepulcral, tudo estava mais calmo. Com um movimento do indicador direito, esticando-o e fletindo-o para dentro, chamou o jovem Espinheira e pediu-lhe o caderninho de capa preta. Olhou para os chefes de brigada, depois fez um sorriso amarelo na direção do Espinheira, a Micas perguntou a medo, quer mais alguma coisa senhor inspetor?, ao que ele, com um gesto suave com a mão esquerda, a mandou afastar fazendo crer que nada mais pretendia e fez uma pergunta que era mais uma confirmação do que uma  interrogação, é na pagina trinta e sete não é, Espinheira?, ao que este assentiu que sim, com a cabeça. O inspetor Ismael Flores, abriu o manuscrito de Francisca, devagar e praticamente soletrando, leu. “Günter Freitag, tal como apareceu neste caso, assim desapareceu e não se falará mais nele”. Depois virou-se triunfante para a plateia que o rodeava e perguntou com ironia, entenderam ou querem que vos faça um desenho?

Naquela tarde houve tolerância de ponto e a tasca de Ismael transformou-se num autêntico Carnaval. Ismaelix mascarou-se de Asterix, o Gaulês, pelo que apenas teve que colocar umas tranças de cabelo postiças. Ismael de Almeida foi ao sótão buscar um casaco velho com remendos nos cotovelos e espalhava milho por tudo quanto era lado, chamando os pombos à colação. Fernandinha tirou o avental com borboletas e girassóis, pintou os lábios de vermelho vivo e com uma minissaia, que nem Mary Quant a tinha inventado ainda, cantava como se fora a Lady Gaga e até a Micas, de bigode à Charlot e rodopiando a bengala, caminhava atirando os pés para fora. O Rogério, mesmo achando que a vida não está para carnavais, vestiu um fato de Zé Povinho, colou umas barbas encaracoladas, pôs uma almofada na barriga para parecer que era gordo, um chapéu castanho de abas largas e fazia manguitos a todo o tipo com ar de burguês que lhe passasse pela frente. Ismael Gúsman, o meu amigo galego vestiu fato completo, com colete e tudo, pôs brilhantina no cabelo e calçou sapatos de verniz. Quem o visse, parecia que estava a ver o Júlio Iglésias. Só o macambúzio que costuma estar de fato cinzento e chapéu e que se senta sempre com aquele ar de bufo numa mesa do fundo da tasca, não brincou ao Carnaval. Se fosse por vontade sua, não haveria feriados para ninguém.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

100. Ismael (24) - Como Günter Freitag se vai tornar fundamental na trama



Günter Freitag nunca imaginou como aquele dia foi importante para a humanidade. Esta frase cabia bem no início de um de um livro de Edgar Wallace ou de Patricia Highsmith mas tenho de reconhecer, sem falsas modéstias que fui eu que a inventei. A verdade é que exagerei quando referi humanidade pois se Günter Freitag teve alguma influência foi nesta novela pretensiosamente intitulada como blog-livro que não tem, nem poderia ter, um desfecho imediato pois se o tivesse seria deveras prematuro. Günter Freitag nunca imaginou como aquele dia foi importante para as famílias Baruch da parte da mãe e ben-Avraham, da parte do pai, enquanto para ele, ao contrário da importância que o autor tenta fazer crer que o dia teve, foi um malfadado dia em que, numa estância alpina, apanhou uma bebedeira de caixão à cova, passe a agoirenta expressão popular, pois só canecas de litro de cerveja virou oito e shots de zuckerrohrschnaps, importada diretamente da ilha da Madeira, nem se contam. Günter Freitag nunca imaginou, pois para isso não teve tempo, como aquele dia foi importante para as histórias que o Constantino aqui conta, quando caiu em coma alcoólico, em plena viagem de comboio no seu regresso a Viena e do qual nunca mais se levantou. Sozinho e com o casaco de Herr Ismael ben-Avraham vestido, cuja troca no bengaleiro só foi possível devido à tremenda buba, foi Günter Freitag enviado para uma vala comum, acompanhado por um par de skis, duas varetas, uns óculos de plástico e um par de botas de lona, que era assim que naquele tempo se tratavam os judeus. Alguém se abotoou com a mochila pois não consta do relatório das SS. Até ao final da guerra, o jovem médico judeu, agora com uma identidade que lhe iria dar um jeitão do caneco, conseguiu emprego num posto da Cruz Vermelha nos Alpes austríacos, a tratar de pernas e clavículas partidas, quando não eram canas do nariz. O jovem médico Günter Freitag só viria a recuperar a sua antiga identidade em 1951 quando, com a ajuda do seu tio Ishmail Baruch, da parte da mãe, ingressou na Mossad, criada dois anos antes pela república da estrela do Rei David. Nesse mesmo ano, ambos são enviados para Portugal onde, de contrabando, era fácil ao, de novo, Ismael ben-Avraham comprar os seus charutos cubanos. Pensa-se que terá sido no Hospital dos Capuchos que exerceu medicina mas tal médico não consta dos registos daquela instituição. Naquele dia, tão importante para os dois judeus, Günter Freitag, entrou nesta história e assim desapareceu. Tal como em 1943, numa pequena aldeia alpina, tinha desaparecido um cordão fino de ouro, do pescoço de uma velhinha criadora de coelhos, com uma medalha em forma de coração, de abrir em duas partes. Por detrás da fotografia de uma Nossa Senhora, encerrada na medalha, um número, um único número. Pois esta medalha, que entra hoje na história, não irá desaparecer tão cedo.

Isabella Vicentini saiu feliz naquela noite fresca de Abril. A revista em cena no Parque Mayer estava a ter uma grande aceitação do público, as casas cheias sucediam-se o que justificava as suas vinte e sete semanas em cartaz. Como era habitual, foi no Riba de Oiro que jantou, a frugalidade costumeira, uma chamuça picante, uma sandes de ovo mexido com salsicha de lata e uma imperial tendo depois descido a Avenida da Liberdade, debaixo de uma luz ténue dos candeeiros a petróleo e de um céu de quarto minguante. Nos Restauradores, os bêbados do dia-a-dia, recolhidos do frio nos portões da Estação do Rossio, já fechada. Quando chegou à Rua dos Correeiros, um medo sem explicação, para quem fazia diariamente o mesmo percurso, bateu-lhe no peito e arrepiou-lhe a espinha. Ela que era bailarina e ágil, capaz de se esconder por detrás de um pau de fósforo antes que lhe notassem a presença ou de correr cem metros antes que fosse dado o tiro de partida, pressagiando fosse o que fosse, ia com medo. Mal entrou em casa, fechou rapidamente a porta, deu duas voltas à fechadura, apertou contra o peito uma medalha em forma de coração, que lhe pendia de um fino fio de ouro e rezou à sua Madonna. Uma misteriosa senhora de Trás-os-Montes ouviu nessa noite passos estranhos no andar de cima. Jurava terem sido passos de um coxo.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

99. Ismael (23) - Salada de orelha



O jovem Espinheira passeava pelo Rossio, fazendo tempo para um novo encontro com o inspetor. Aquele crime já levava uma semana e embora não fosse o manuscrito de Francisca o único elemento da investigação, o inspetor Ismael Sacadura Flores não perdia pitada do que o Espinheira ia conseguindo descobrir. Entretanto, uma subequipa, de que o agente Ismael de Almeida era o responsável, tinha assentado arraiais na Quinta do Conde, com grande pena e contra a vontade deste, tão habituados estavam os pombos às portas do Teatro D. Maria II, à sua assídua presença e ao tão apreciado milho com que sempre os nutria. Uma outra subequipa, onde, surpresa das surpresas, o nosso amigo Ismaelix com o seu bigode à Chalana, porém branco, pontificava, fez de seu quartel-general o quinto andar sob penhora, do próprio prédio da Rua dos Correeiros onde as sete facadas fatais foram proferidas, porém no sexto, o que justificava ele ter sido visto a sair do prédio, como foi dito capítulos atrás, lado a lado com Ekatrina Smirnova também ela dançarina, porém clássica.

E já que estamos em maré de poréns, o jovem Espinheira desembarcou no Terreiro do Paço, porém no Cais das Colunas, que naquele tempo serviam de cais ao vapor e que não tinham ainda sido retiradas por causa das obras do Metropolitano, porém já repostas e seguido a pé até ao Rossio onde as fontes e o seu constante jorrar de água, porém insalubre, sempre o fascinou. Deixemo-nos agora de poréns e vamos diretos aos epílogos sem muitos todavias porque há, contudo, ainda muito que contar e também muito para ser descoberto (neste momento eu deveria começar a frase seguinte com um portanto mas não me apetece). Seria certo e sabido que a reunião entre Espinheira e Sacadura se faria na taberna do meu amigo galego, Ismael Gúsman de seu nome, como todas e todos, os que têm ainda paciência para me ler e que não deram por mal empregados os quase vinte euros que pagaram por este livro, ainda por cima de capa mole com badanas, à espera que o Círculo de Leitores o publique com capa dura, numa edição com dez por cento de desconto para os sócios, por ser novidade, bem o sabem. Não faltarão na assistência, embora discretamente, os nossos figurantes e protagonistas para compor o ramalhete, quer seja a Fernandinha que estreou um avental novo com girassóis e borboletas e já aprendeu a fazer pipis estufados e, principalmente, salada de orelha de porco com alho, cebola picada, coentro, pimenta moída, azeite e vinagre, a vinte e cinco tostões o pratinho, quer seja o tipo de fato cinzento e chapéu, que levanta sempre as maiores suspeitas desde o dia em que os esbirros da PIDE apreenderam o livro de matemática ao Constantino, o narrador desta história e autor deste intragável pseudolivro. E se pensavam que com toda esta conversa iriam ficar hoje a saber porque é que o Dr. Castro Ribeiro era citado a páginas dezassete, depois de ter sido visto a sair do Barba Roxa, um bar pouco afamado do Largo de S. Paulo, cerca das seis da manhã, perdido de bêbado e a gritar Eu mato aquela puta, eu mato aquela puta, para quem o quisesse ouvir, então tirem o cavalinho da chuva. É que o Espinheira tinha acabado de decifrar a página oitenta e nove e o conto que Francisca estava a escrever começava a interessar mais aos dois do que o próprio crime. Até o Rogério, que tinha coçado a cabeça ao fim da primeira leitura, agora estava com todos os sentidos em alerta. E foi assim que o jovem Espinheira leu mais um pequeno trecho do conto da misteriosa Francisca (aqui o autor meteu água, porque quem é misteriosa é a idosa senhora de Trás-os-Montes; e mais água meteu porque o obrigou a colocar dois parêntesis num curto espaço de texto o que, dizem alguns puristas da arte de bem escrever, não é de bom tom).

“Os autóctones tinham um ar fúfio. As gaforinas não ajudavam à criação de uma imagem menos aviltrada. No entanto os pescoços exibiam fulgentes colares de estranho metal. Ensaiaram uma ginga em meu redor e tentaram comunicar. Não sei se por ter acordado no momento, os sons que emitiam eram-me ininteligíveis. A última vez que tinha escutado algo similar, foi de uns indígenas de Timor Oriental que tentaram ensinar-me o seu galóli. Tive medo que se tratasse de antropófagos preparando a funçanata. Num pequeno hiato de tempo, um deles de aspeto galhardo, apercebendo-se de que eu, efetivamente, não estava atinando com o seu linguarejar, ensaiou uma ideografia simples mas eficaz. Aí eu não tive coragem para ilidir. Aceitei de imediato. Era um convite para repasto. Seria? “

Quem pareceu não ter ficado nada satisfeito com esta concorrência, desleal, disse ele, foi Ismael Gúsman.  A sua casa de pasto era já conceituada em toda a baixa lisboeta e se se quisesse um petisco, era ali. Logo agora que Fernandinha sabia fazer salada de orelha. Para Ismael, esta Francisca estava a sair melhor do que a encomenda. Ai estava, estava. 


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

98. Parenthesys


Quer os contos do Constantino, quer o malfadado in-folio sem nome nem jeito, já tiveram melhores dias. Quero dizer, têm-se lhes vindo a subtrahir leitores e se de facto ha aquelles bloggers, os quaes dizem que ter leitores, para elles, não é cousa d’ importancia eu pergunto, então não comprehendo porque não escrevem em privado? Quem escreve para o publico quer publico. O escritor aprecia quem lhe aprecia o fructo do seu labôr (não era para rhymar). E não se trata aqui de supplicar por commentarios ofertados em odes votivas. Não se trata de mystica, mas sim de mera constactação da realidade. As salas de cinema vazías não são só prejuízo, são também frustração para produtores, realizadores e actores. Quando vou ao theatro e olho para os lados e vejo apennas mais oito pessoas a assistirem áquela peça de Gorki representada por uma companhia de theatro em que os actores são provenientes do conservatório (quão diferentes serão os que ad-vieram de novellas televisivas?), a ovação final dos nove espectadores deve deixar n’ elles um sabor a fel na bocca. E o que dizer ao autor que acabou de passar no kiosque da feira e viu a vender por uns míseros vinténs, á escolha, quase toda a sua edição, no meio d’outros que também não venderam mais do que quarenta e does exemplares? Pois minhas amigas e meus amigos confrange-me vêr um cada vez menor numero de leitores n’este blogue mas, apesar das frustrações supra-referidas a que não sou de modo nenhum immune, vou continuar a escrever. Não entendam este texto como uma lamúria ou algo de piegas pois não sou narcisista ao ponto de criticar quem cá não lê, antes pelo contrário, se o blogue não cólhe é porque a maioria dos leitores blogosphericos n’ isto vê pouco interesse. Ainda assim, sem despeicto por blogues que se affirmam a fallar de sapatos de senhora cor-de-rosa ou  que annuncíam  aos seus leitores de que hoje espirraram duas vezes mal se levantaram de manhã, mesmo que isso dê uns milhares de leitores mensaes e dê também alguns milhares de euros annuaes (o que não é uma bagatella), vou apenas escrever aquillo que me dá gozo e, acreditem se quiserem, mesmo com mágoa de não ter conseguido cativar leitores para a minha escrita, enquanto houver um só, unzinho só, que aqui venha ler cada post de fio a pavio, não fecharei o blogue ao publico. Assim a minha mente não se decrepite e os meus dedos não se quedem gottosos. Garanto-vos que isto não é philosophia.

Estava eu aqui n’esta scisma com a minha mulher, quando ella me fez uma observação pertinnente que ainda não me tinha passado pela idéa e á qual prestei a minha melhor attenção. Ella tentou fazer-me vêr que aquelles leitores que gostam mais de ortographia antiga me abandonaram e acham que a nova é uma tyrannia collonial brasileira. Só me lê quem, embora possa não estar de acordo, não tem difficuldades em aceitar o uso d’ este Acordo Ortographico e a quem tiro o meu chapéo. Deixei-me cahir no sofá e foi ahi que decidi rever o methodo. No intuito de recuperar leitores acendera-se me uma chamma e tive esta sahida de escrever este post, sem qualquer pedantismo rethorico, apenas fazendo uso de ortographia antiga. Não sei se abusei ou não, mas pelo amor de Christo, não recuei a D. Denniz, nem a Luiz de Camões. Eça de Queiroz, outr’ora, escrevia assim e eu acho que percebi os signais. Soceguem pois os que por mor d’isso abalaram. Podeis voltar tryumphantes.

D’este que se assigna Victor de appelido Constantino.

PS. Trata-se apenas de um exercício de estilo que me deu prazer pois me obrigou a alguma pesquisa, que me fez bem porque tenho andado muito preguiçoso ultimamente. Continuarei a editar os meus textos segundo o mais recente Acordo Ortográfico.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

97. Ismael (22) - Vamos ilibar o Sebastião?


Sebastião era daqueles marinheiros que fazia jus ao ditado, uma namorada em cada porto. Desde novo que parava no cabo Espichel a olhar para o horizonte, a olhar para o imenso mar azul e salgado e a sonhar com viagens, quando era criança com Guliveres e mais tarde com Vascos da Gama. Quando chegou a hora, decidiu apresentar-se como voluntário na Marinha. Apanhou o autocarro na Quinta do Conde e só parou no Alfeite. Regressado a casa, sem carta de embarque, o seu mar era de lágrimas. Os pés chatos e dois centímetros a menos na perna direita tinham-no traído e a Marinha tinha recusado a seu alistamento. Recomposto, decidiu tirar um curso de hotelaria e facilmente a Companhia Nacional de Navegação o contratou. Mulherengo como era, não foi difícil vir a ser despedido da Companhia. No dia em que um oficial de pilotagem o apanhou durante o quarto de serviço, do dito, em menos propósitos com a sua esposa, de novo do dito, claro, no cavalo do seu camarote, foi obrigado a mudar de mares, não antes de uma valente e cinematográfica cena de pancadaria que, se tiver arte, vos contarei noutra oportunidade. Mudou-se depois para a Sociedade Geral até que uns anos mais tarde uma companhia estrangeira o engajou. Em meados dos anos cinquenta do século passado a guerra colonial ainda não tinha eclodido e, por isso, não havia dificuldade de Sebastião andar num constante vaivém trágico-marítimo. E é assim que lhe adjetivamos a vida porque quis a esta vida de marinheiro que a morte lhe apanhasse a namorada em terra. (Este bocadinho foi bonito, foi poético, não foi?)

O inspetor Ismael Sacadura Flores, com a ajuda do Espinheira, não conseguiu encontrar nenhuma referência no manuscrito de sua tia Francisca que lhe fosse negativa. Pudera! Tratava-se do seu sobrinho querido, ajudado a criar desde a morte da sua irmã mais nova em circunstâncias nunca bem esclarecidas. Quando a mãe de Sebastião apareceu morta numa viela da Madragoa, onde de manhã, de canastra na cabeça, apregoava a bela sardinha viva da costa e à noite cantava o fado, Sebastião tinha cinco anos de idade. Nem dela mais se lembrava e se a carência de mãe não pode ser substituída pela presença de outras mulheres, então Sebastião era uma exceção à regra. Mas nem pelo facto da sua tia Francisca não o mencionar como suspeito no seu manuscrito, nem pelo facto de Sebastião ter passado por um crime de sangue similar no seio da sua família, o inspetor desistiu de interrogá-lo. Ah isso não. Mais cedo ou mais tarde teria de dar o seu depoimento. Na pura das verdades, Sebastião, neste porto que é o de Lisboa, não tinha apenas uma namorada. Esta cidade de cabarets logo à saída de onde os navios atracam, esta cidade de teatros com bailarinas estrangeiras muito bonitas, esta cidade de tascas com cozinheiras roliças e provincianas, esta cidade era ela toda uma casa de perdição, onde cenas de faca e de alguidar se cantavam acompanhadas à guitarra e à viola. E se não nos falham as contas, só por defeito e nunca por excesso, contamos pelo menos três namoradas simultâneas deste nosso Poppey luso, deste nosso Bartolomeu Dias sem caravela, deste marinheiro sem farda, deste Corto Maltese de mares já por outros navegados. (Mais uma grande frase!) A Fernandinha, a quem não era de estranhar os raspanetes de Ismael Gúsman, ora porque o bacalhau com grão do Sr. Rogério não fora servido com alho, cebola e salsa picada, ora porque, às escondidas, se roçava no filho do Sr. Januário que tinha uma loja de fazendas na Rua Augusta, ora porque isto e porque aquilo e principalmente porque isso seria faltar ao respeito ao jovem Sebastião. A Isaurinha Bate-Sola, que sabemos se perdeu de amores pelo nosso homem de blusa azul e branca às riscas e calça à boca-de-sino, D. Juan das ruas lisboetas, marinheiro em paquetes estrangeiros, coxo de nascimento, pois fazia bem dois centímetros de diferença entre a perna direita e a perna esquerda, depois de ter pespegado um valente par de chifres ao meu amigo galego e taberneiro Ismael Gúsman que, mesmo assim, tal era a sua bondade, nunca teve raiva do marinheiro seu vizinho na Quinta do Conde e nem tão pouco da depravada filha do sapateiro, ela sim merecedora do mais vil e puro desprezo. Pois que se saiba, Isaurinha não lhe pôs apenas o referido par de chavelhos como ainda se abotoou com trinta e seis contos de reis, de um pequeno cofre que Ismael tinha escondido na tasca, por detrás de um grande quadro com o emblema do Glorioso SLB, bordado a ponto cruz. Isto só mais tarde é que se veio a saber pelo que, talvez, não venha a fazer parte das narrativas deste romance. E daí, talvez sim. E finalmente, Isabella, a bela e malograda corista italiana do Parque Mayer, filha sabemos agora de um fascista italiano chamado Rafaello Vicentini, com muito boas relações na nossa polícia política portuguesa, mas sabe-se lá porquê, sempre muito mal visto do, também sabemos de algumas páginas atrás, chefe de brigada da Polícia Judiciária, o afrancesado Ismaelix, que usava um grande bigode à Chalana, porém e este porém terá ainda muito que se lhe diga nesta história, porém, narrava eu, já branco. Pois se Isaurinha Peres, filha de sapateiro e puta já se vê, tinha sido já chão que dera uvas, pois nunca lhe perdoou tê-la apanhado em atos menos próprios com o filho do falecido vizinho Esteves, Deus tenha a sua alma em descanso, bom homem por sinal, já o mesmo não se pode dizer da roliça e de linguajar estranho, um misto de beirão com francês do sul, especialista em pastéis de bacalhau e sandes de sangacho de atum, a nossa bem conhecida Fernandinha e da tristemente morta à facada, logo sete, algumas das quais no peito, a malograda e bonita italiana Isabella Vicentini. Acho que foi a primeira vez que lhe enunciei o apelido, embora já o conhecêssemos dada a sua paternidade, mas fica bem, não fica?

Sebastião não era suspeito do crime, embora coxo e isso se pudesse relacionar com as descrições da misteriosa senhora de Trás-os-Montes. Pelo menos como executor. Abro aqui um parêntesis para que reparem bem na falta de imaginação do escritor que já tem dois coxos na novela, o tio Ishmail Baruch e o nosso Sebastião e não sabemos, nem sequer podemos conjeturar, se para baralhar mais as coisas ou para se baralhar mais a ele, não virá a pôr uma perna de pau a um qualquer outro personagem. O inspetor Ismael Sacadura, por aquilo que conheço dele, se ele me tivesse conhecido a mim, teria com certeza perguntado, Olha lá Constantino, e o rapaz não pode ter sido o mandante? Ao que eu responderia evasivamente, pois nesta fase não iria querer retirar o suspense aos meus leitores. Pelo menos como executor, não, isso temos a certeza, já que Francisca dizia no seu manuscrito na página 46, escrita na margem direita perpendicularmente às linhas pautadas que, no dia 14 de fevereiro de 1956, Sebastião havia partido para o Coraçau e por lá tinha permanecido, só regressando após o horrível, indescritível e sanguinário crime. E Fernandinha? Teria ela alibi? Todos sabemos ou julgamos saber, que me desculpem as minhas leitoras, daquilo que uma mulher eivada de ciúmes, sim eivada é a palavra própria, é capaz de fazer. E Isaurinha Bate-Sola, ela uma filha de sapateiro, profissão de pouco rendimento mas muita procura, de um pai que todos conheciam e respeitavam na Quinta do Conde, que usava brilhantina no cabelo e cuspia na escova de lustro para abrilhantar o verniz dos sapatos do senhor prior, sim ela Isaurinha Peres, apesar de todos os defeitos entre os quais o de ser apelidada de puta pelo escritor deste que nunca será um livro impresso, e se o for não se venderá, algumas linhas acima, apesar de se dar de corpo, já que de alma não sabemos, ao filho do falecido vizinho Esteves, mas que bem o sabemos só por carência, já que o pujante Sebastião, coxo e de pés chatos e que ela, estupida ou apaixonadamente nunca tinha reparado, passava semanas e semanas sem dar à costa, poderia lá ser trocada por uma libertina que mostra as pernas acima do joelho em palcos de perdição (se alguém se perdeu no tamanho do parágrafo, isso foi por nunca leu os Lusíadas).

Estava a começar a juntar as peças enquanto subia a Rua dos Correeiros, o inspetor Ismael Sacadura Flores quando, distraidamente, bateu com a cabeça no espanta espíritos da tasca de Ismael. Entrou, mastigou uma bolacha Maria e bebeu um bagaço. Depois disse boa noite e voltou para a esquadra. Mais tarde regressaria à Quinta do Conde.


domingo, 5 de fevereiro de 2012

96. Ismael (21) - O que diz Francisca?


Quando entrei na tasca do meu amigo Ismael, acompanhado do senhor Espinheira acabamos por nos sentar os três num insuspeito canto da taberna, como insuspeitos são todos os cantos da tasca da Rua dos Correeiros. Numa mesa ao lado, com um livro na mão, se não estou em erro de autor quase desconhecido, que mais tarde viria a ser prémio Nobel, Rogério bebia um tintinho, mas fiquei com a impressão de que terá ficado de ouvido alerta ao que se passava na nossa mesa.

Mas diga lá então, releia por favor, Espinheira, para que o meu amigo Ismael também fique a saber, pedi eu com alguma impaciência. Uns bons anos atrás, antes de se ter descoberto o autor do crime que vitimou Isabella, o inspetor Ismael Sacadura Flores, por um erro processual, não conseguiu ficar na posse do manuscrito que mais tarde me veio parar às mãos. E, de novo, recorri ao Espinheira para me ajudar a lê-lo, tal e qual como o inspetor Ismael o tinha feito talvez uns vinte anos antes. Mas havia ali elementos que eu achava muito atrativos e mostravam bem como Francisca era genial e como o seu manuscrito trouxe muita informação ao processo, sendo até pedra basilar para a confissão. De facto, Francisca era um prodígio. E então, Espinheira abriu o manuscrito de Francisca a páginas catorze, “Raffaelo Vicentini, então membro das camicie nere, foi discretamente recebido na sede da PIDE quase no final de 1945.” E fazia reparos a quão difícil era a caligrafia de Francisca para poder estar a ler com a devida pontuação. Não se preocupe amigo Espinheira, continue, continue – pondo-o assim à vontade, Ismael, que no trato era de uma grande elegância. Diz, então, Francisca, continuou Espinheira, “ A única coisa que pedia era proteção para a sua filha, Isabella de apenas doze anos de idade”. Espinheira parou de ler. Não compreendia agora, como nunca compreendeu antes, algumas das palavras e achava que estar ali, naquele momento, a dissecar o manuscrito, ainda por cima com um tipo numa mesa ao lado que ele não sabia quem era, não lhe parecia muito produtivo, nem tão pouco, ético. Senhor Espinheira então salte para a página quarenta e oito e leia-nos lá o que me leu há pouco, pedi-lhe apenas para desanuviar. A custo e só para me fazer a vontade, Espinheira puxou por um cigarro e ofereceu outro ao Ismael. Recusou, por não ser o seu tipo de tabaco, enquanto uma ponta de Português Suave meio apagada lhe pendia do canto da boca. Eu que não fumo, apenas demonstrava expectativa no olhar. Pois a páginas quarenta e oito diz Francisca – continuou Espinheira “O médico judeu, Ismael ben-Avraham entrava em casa de Isabella, mas pouca importância dava ao estado de saúde da menina que, talvez por saudade, de anafada e bem coradinha, fazendo juz à sua natureza Alpina começava agora a definhar. Ou então seria era aquela ideia fixa de vir a ser bailarina.”

Rogério, levantou-se da mesa, deixou dois escudos em cima do balcão para pagar o tinto e as azeitonas,  saudou os presentes e saiu. Espinheira respirou de alívio e, eu próprio, porque conheço o desfecho da tragédia, acabei por anuir que a página quarenta e oito talvez não interessasse muito. Afinal Isabella fora assassinada em 1956 e os idos de 1945 seriam, quase de certeza, conjeturas de Francisca. Anos mais tarde Francisca teria um grande desgosto pelo que aconteceu a Isabella já que o seu sobrinho Sebastião, um marinheiro que gostava mais dos portos do que das ondas do mar se embeiçou pela bailarina. Mas o que realmente aconteceu não se poderá saber antes da página trezentos e quarenta e três. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

95. Ismael (20) - Parabéns


O tempo passa e só damos por isso quando olhamos para o espelho e ele nos retribuiu com uns pezinhos de galinha nos cantos dos olhos. O tempo passa e só damos por isso quando olhamos para aquele blaser, que é como quem diz paletó, azul-escuro, que tudo denuncia e vemos ali pregados dois cabelos brancos que, por estranha coincidência, são nossos. O tempo passa e nós só damos por isso quando os garotos no outro lado da rua deixam fugir a bola, no jogo da rabia e nós tentamos dar uma corrida para a devolver e não lhe chegamos a tempo. O tempo passa e nós só damos por isso quando vamos a subir os degraus do autocarro e ouvimos ranger o que primeiro pensamos ser os degraus de um velho machibombo, mas rapidamente nos apercebemos que são as articulações dos nossos joelhos. O tempo passa e nós só damos por isso quando nestes dias frios que se avizinham, tomamos extrema atenção aos cuidados que é preciso ter com os idosos e preparamos as mantinhas, a botija de água quente e verificamos se há lenha suficiente para não deixar morrer a lareira.

Era uma manhã de um sábado frio, embora solarengo, de inverno. Ela saiu de casa braço dado com Constantino. Os passos dela eram curtos, não se podia mexer com a mesma agilidade de uns meses atrás, mas decididos e ela, sem receios, determinada e, sobretudo, muito feliz. Ele levou-a a tomar o pequeno-almoço e depois deixou-a no hospital. Nesse dia ele precisava ir trabalhar, ela teria os seus trabalhos umas horas mais tarde. Juntou-se a ele na mesa do almoço, mas não comeu. Não devia, não podia. Quando se deixaram, ela regressou ao hospital pelo seu próprio pé e ele voltou para o escritório. Constantino olhou para o relógio, estava na hora. Desligou o computador, fechou a pasta de documentos, colocou a máquina fotográfica à tiracolo, fechou as luzes, desceu à garagem, levou o carro, foi ele próprio para o hospital. Ela aparentava uma inusitada calma. Ele aparentava um, mais que justificado, nervoso miudinho. Entraram juntos na sala de partos e enquanto ela trabalhou, ele acarinhou-a. E fotografou.

Ao fim da tarde, quando chegou a hora de os deixar descansar, tão lindos que estavam lado a lado, mãe e filho, Constantino beijou-os e saiu. Quando entrou na tasca do Ismael, em plena Rua dos Correeiros, eufórico, gritou uma rodada para todos; hoje pago eu! Fui há vinte e sete anos quando nasceu o João. Eu sei que tu sabes mas nunca me canso de te dizer que te amo, meu filho. O tempo passa e uma pessoa nem dá por isso quando no aconchego da sua intimidade se vira para ela, com a mesma verdade, com o mesmo carinho e com a mesma vontade e lhe diz eu amo-te meu amor!