terça-feira, 25 de dezembro de 2012

185. A consoada de D. Micá



As portas da sala de jantar de D. Micá raramente eram franqueadas aos seus convidados. O salão, o varandim, a copa de apoio e os WCs socias eram mais do que suficientes para se passarem serões agradáveis. Ali se tocava piano, ali se tocavam guitarras, ali, principalmente, se contavam histórias. Uma vez por outra, se falava de moda e, com menos frequência, se falava da vida alheia. A não ser que isso viesse a propósito. Quanto a religião, futebol e política eram quase temas tabú embora não fossem proibidos. Só que havia sempre alguém que, quando a conversa decaía para esses temas, se propunha a contar uma história e todos assumiam que os serões na D. Micá eram para isso mesmo. Mas naquela noite foi diferente.

A comprida mesa estava posta e o lugar de topo reservado para D. Ermelinda. À sua direita, a cadeira pertencia a sua filha D. Micá e os restantes lugares seriam ocupados por um protocolo muito pouco definido, mas que todos assumiam que os lugares mais próximos das anfitriãs seriam ocupados pelos amigos mais antigos. Eu, que por deferência de D. Ermelinda e por insistência de D. Micá, me viria a sentar no topo oposto da mesa, perdia assim a oportunidade de privar mais de perto com a mãe e a filha mas, em contrapartida, ficava num lugar privilegiado para tomar nota de todo e qualquer detalhe. E é por isso que vos digo que a mesa de consoada de D. Ermelinda, fazia juz à atual presidente, por inerência, da Fundação para a divulgação e incentivo ao consumo do leite magro com chocolate ou, abreviando, da FPADEIACDLMCC.

O serviço de copos era completo e estava quase completo na mesa. Só para que conste, o cristal era Atlantis de 24% de Pb3O4, isto é, de extrema pureza, constituído por um copo para água, dois copos para vinho, branco e tinto e ainda uma flute para os apreciadores de champanhe à refeição. Apenas os copos de licor se reservaram para a sobremesa. Um lindo serviço Vista Alegre, com prato de entrada, um prato de sopa e dois pratos de prato principal, pois, na noite da consoada, havia não só o tradicional bacalhau com couves, ovo cozido e batata, mas também o mais suculento peru assado em forno de lenha, que acabara de chegar diretamente da Arruda. Eram aliás dois perus e não apenas um, dado o número de convidados que se sentariam à mesa. No salão, uma grande mesa de vidro, ali colocada apenas para a época, estava recheada das mais apetitosas vitualhas, onde não faltavam as filhós, os sonhos e as azevias, as rabanadas, a aletria doce por cortesia ao Armindo e à Tansinha que são do Porto, os figos secos e as nozes, as amêndoas torradas e pinhões descascados, as frutas cristalizadas e as avelãs, a lampreia de ovos e o tronco de chocolate, ameixas secas, damascos, sultanas doiradas, passas de uvas sem grainha, já para não falar de uma taça com mousse de chocolate e um cesto de frutas frescas com líchias, romãs, ananás dos Açores, mamão do Brasil, mangas importadas via aérea, laranja do Algarve, uvas chilenas e uma enorme taça com cerejas compradas numa frutaria da baixa que as importa diretamente da África do Sul, especialmente para esta época festiva. Infelizmente, o Armindo não chegaria a tempo para jantar, pois uma tão arreliadora como inesperada avaria no seu novo automóvel, fê-lo ser anunciado pelo segurança Alfredo já passava das 23:00h. Ainda assim, na copa, a sempre diligente Estela, uma empregada que veio servir para Lisboa no século passado e que já passada dos cinquenta anos foi cooptada por D. Ermelinda, preparou-lhe uma sandes de peito de peru com maionese e uma folha de alface e um copo de vinho tinto. Depois juntou-se ao grupo para comer uma broa castelar já que os diabetes não lhe permitiam abusos de qualidade nenhuma.

Vieram o Pedro Rebocho e a Marta Caracinha, como não podia deixar de ser, ela de totós e ele com mais gel do que cabelo, mas ambos, desta vez, impecáveis no traje, se bem que eu não tenha gostado muito da bolsa da Marta. Havia ali qualquer coisa que não condizia, mas tenho de olhar com mais atenção para as fotos para o poder detalhar. Foram também convidadas a Geninha e a Luisinha Monteiro, que por pouco não virava, esta, uma garrafa de champanhe na antecâmara do jantar, enquanto a primeira, para não se ficar atrás, ia bebendo shots de vodka. Pelo que se me foi dado observar a Geninha já estava bêbada antes de ser servido o bacalhau, mas se, mesmo atendendo a este comportamento desviante e habitual da Geninha, a D. Micá a continua a convidar, é lá com ela que eu não tenho nada a ver com isso. O Fagundes também veio, trazia uma bonita gravata Hermès e um blaser muito fino comprado na Sacoor, azul-escuro com botões dourados. Segundo consta, depois do par de cornos que Graziela lhe tinha pespegado com o Faria, o professor do ensino secundário, andou um bocado abalado e um tanto ou quanto à deriva mas, parece-me (e também consta aqui nos bastidores dos soirées da D. Micá), que namora uma senhora fina, mais velha que ele uns catorze anos, viúva, com uma boa renda mensal, mas que, talvez por estratégia, ainda não contou nada aos seus parceiros das quintas-feiras à noite. Mas a D. Micá, inevitavelmente já conhece a história toda. Um dia contar-nos-á. O Pedro Pinto Aragão, primo do Eduardo, por se encontrar a usufruir dos quarenta graus do Rio de Janeiro mandou uma mensagem de Boas Festas para todos e claro está com os desejos de um Feliz e Santo Natal. O Justino Carlos veio com a mulher, ela toda espampanante, com uma gargantilha incrustada de brilhantes e uma pulseira a fazer pandan e o Justino com um alfinete de gravata, em ouro de lei de 24 quilates. No aperitivo, enquanto eu espetava um palito num camarão com alho e ervas provençais, segredou-me, «isto foi o corno», que era como ele designava o amante da mulher, «que pagou» e apontou para o alfinete. Jantaram também connosco o Ricardo e o Adriano, uma vez que a Rafaela iria consoar com os pais dela e que os pais do Ricardo estavam emigrados na Suíça. Já o Adriano, por questões relacionadas com a crise no seu emprego, não pode ir seque à terra e por isso também se juntou a nós. Felisberto Passinhas e Sebastião Jerónimo fizeram a noite de consoada com as respetivas famílias mas o Ezequiel Canário e o Julião Guedes vieram. este último muito mais atinado do que é habitual pois passou pela Luisinha Monteiro e não lhe apalpou o rabo. Com certeza que era por ser noite de Natal. Foi bonito ver Efigénia chegar com Henriqueta. Apesar da condição de prostituta da Henriqueta, D. Micá gostava dela. Só lhe pediu para desta vez não vir de minissaia cor-de-rosa por cima das leggings brancas, nem de casaquinha de pelúcia roxa, ao que Henriqueta deu uma gargalhada e segredou-lhe «Ó filha eu vou ser a gaja mais elegante da tua mesa de consoada». E só não o foi porque D. Micá nunca deixava os seus créditos por mãos alheias, ou seja, quero dizer exatamente o contrário, pois foi pelas mãos de Tenente que ela estava deslumbrante que nem uma princesa. E com um decote que, olalá, nem vos conto.

Pois eram mais os convidados, os vinte e quatro lugares estavam ocupados, até o otorrinolaringologista Luís Lopes Lacerda, o casal Carlota e Paciência Monteiro, o dr. Fabrício Páscoa e, claro está, o meu amigo Eduardo Aragão estiveram na nossa consoada. Hoje, Eduardo entrou discretamente, vinha acompanhado por uma senhora casada, sei-o eu porque a conheço de outras andanças e, quiçá, sabê-lo-á D. Micá, que ele apresentou como menina Lucinda, obrigando-me a disfarçadamente pigarrear e receber um olhar cúmplice da “menina”, cujo marido é oficial da marinha mercante e estaria nesta noite a consoar com uma turbina a vapor ou um motor a fuel . Trazia com ele um saco de grandes dimensões e, tendo segredado qualquer coisa a Estela, entregou-lhe o saco, sendo que, depois, mais descontraído serviu-se de um Chivas Regal de 18 anos, olhou para D. Micá e brindou à FPADEIACDLMCC.

Já vinte e três se tinham sentado à mesa, quando olhando uns para os outros, inquirimos a menina Lucinda sobre o paradeiro de Eduardo. Ela, corou, colocou a mão à frente dos lábios e sorriu. Eis se não quando, vindo do WC contíguo, logo atrás de Estela, que saía da copa com uma bandeja cheia de postas de bacalhau asa branca do Atlântico Nordeste e ornamentada com ovos cozidos, surge o nosso Eduardo Aragão, em traje de Pai Natal. Todos riram, só eu não achei qualquer piada porque uma rocambolesca história, com traje similar, em outro Natal fê-lo consoar nos calabouços da polícia, ainda por cima, podre de bêbado. Mas da vida de Eduardo Aragão falar-vos-ei quando for oportuno, que hoje é noite de Natal. E pode também trazer o peru, amiga Estela.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

184. D. Micá e a fruta do tempo (ou a história de D. Camelinha)



“Antonieta parecia calma. Uma calma fantasmagórica, na palidez do seu rosto. Fez que se sentou ficando a planar sobre o sofá, perna traçada, deixando cair o branco véu que, na posição em que ficou, se deixava embalar pela corrente de ar, aparentemente injustificada, já que a criadagem se encarregara de cerrar portas e janelas, deixando ambos trancafiados no vasto salão dos espelhos. Apenas Penafiel, o fiel cão de D. Bonifácio, um pastor belga de leonina juba e Gatófio, um gato magrelas que Antonieta tinha adotado antes de morrer, tinham sido autorizados a ficar. No momento em que a corrente de ar se acentuou, pondo a nu, as alvas coxas de Antonieta, não conseguindo D. Bonifácio, ou não tendo tempo para, desviar o olhar, o ribombar de um forte trovão fez estremecer todo o edifício. Instantaneamente, Penafiel começou a ladrar e Gatófio deu um fabuloso salto tentando anichar-se no regaço de Antonieta. Em vão esperneou pois que trespassou roupas e colo, tendo-se estatelado no chão, por falta de sustentáculo. Em boa verdade, dada a sua natureza felina, Gatófio caiu sobre as quatro patas mas, ato contínuo, desatou a correr de cauda eriçada pela estupefação, percorrendo os quatros cantos da sala à procura de um onde se escondesse. Não contente com tanta algazarra e ainda assustado com o estrondoso trovão, Penafiel dirigiu os seus latidos a Gatófio ao que este lhe fez “fuuuuummm”. Contado que foi os desatinos de gato e cão, deve dizer-se que Antonieta assistiu a toda esta balbúrdia como se nada se tivesse passado e que D. Bonifácio mostrou alguns sinais de nervosismo, pois por duas vezes deixou apagar o fósforo quando tentava acender um charuto. Ou então não. Ou então foi a brisa que lhe apagou os fósforos. Mas isso nunca se virá a saber porque que também não o sei”, concluiu D. Micá, visivelmente empolgada com o desenrolar da sua história.

Parou por aqui a sua narração, levantou os olhos com um olhar de preocupação e olhou em redor. Se bem que lhe era notório que hoje também não estaria nos seus melhores dias, tendo por mais do que uma vez puxado pelo lenço, por sinal da mais fina cambraia, magistralmente bordado por dona Camelinha, uma minhota que há muito se radicou nas avenidas novas, desde os tempos em que veio acompanhar um afilhado que cursou engenharia metalúrgica no Instituto Superior Técnico, acabando por cá se radicar, ao contrário do afilhado, que também era sobrinho, que regressou a Viana, mais propriamente a Afife de onde era natural, por mor de trabalhar nos estaleiros. Pudera que dona Camelinha não por cá se tivesse quedado pois, quando ainda nem os quarenta anos houvera feito, conheceu o senhor Policarpo Santana, um abastado comerciante de bacalhau da Rua do Arsenal e com ele se amantizou, até que o senhor Policarpo Santana se finou com um enfarte, pois ter relações sexuais tão intensas com uma mulher ainda no fogo da idade, ele que já tinha quase trinta e cinco em cada perna, como gostava de se gabar, não lhe era muito aconselhável e dizem as más-línguas que tão pouco era proficiente. Deixou-lhe um dinheirinho, coisa pouca, dizia dona Camelinha, mas não se sabe bem ao certo de quantos contos de reis se tratou, já que dois prédios, um dos quais no Areeiro, deixou ele a um sobrinho que era magarefe no matadouro dos Olivais e outras propriedades a uma afilhada, também ela sobrinha, que era beata e que vivia mais tempo entre paredes seculares do que em sua própria casa, se bem que toda a gente afirmasse que era uma santa mulher e que a ela nada se podia apontar nem com a cabeça do dedo mindinho que fosse. Pois o lenço de D. Micá já tinha todo bastante uso essa noite e o mesmo se pode dizer de Januário Pireza, que até tinha espirrado seis vezes consecutivas e do Carlinhos Epicurista, assim chamado desde que se formou em filosofia e defendia teorias bem próximas de Epicuro, que andava a tossir uma tosse cavada que o deixava quase sem ar. Já a Graciete Malheiro, colocou várias vezes as costas das mãos na testa, fazendo com esse gesto como que uma elegante vénia, uma vez que tirava sempre a luva arrendada da mão direita, dizendo, para que todos ouvissem, «parece-me que estou com febre». A um canto, D. Ermelinda, sua mãe, mãe de D. Micá está bem de ver, bebia um chá de limão bem quente, adoçado com mel e sorvia um cálice de uma boa aguardente de vinho verde que desde miúda o via fazer a seu falecido pai. É assim, neste clima de espirros, assoadelas e estados febris que, com ar preocupado, D. Micá se virou para mim e perguntou, afirmado ao mesmo tempo:

- E o Eduardo Aragão? Ainda não o vi por aqui hoje.

- Pois não - respondi. Telefonou-me a dizer que não viria. Parece que está com gripe.     


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

183. Micá e o chá de Eduardo



Quando o meu amigo Eduardo Aragão ouve falar em chá começa a ficar em transe. Nem por brincadeira, quando ele saboreia um puro malte, se lhe pode referir ao chá da Escócia e se, nalguma tertúlia, alguém se refresca na mousse de uma cerveja bem tirada, nenhum infeliz tente sequer insinuar a expressão plebeia do “chá” de Vialonga. Muitas das pessoas que frequentam os serões de D. Micá, a bem dizer a maioria, não conhece Eduardo Aragão tão bem como eu o conheço pelo que, a história de hoje foi contada por mim próprio e não, como habitualmente, pela nossa incontornável D. Micá. A propósito deste meu conhecimento profundo de Eduardo Aragão, talvez um dia, se se proporcionar, eu aqui vos conte detalhadamente a história da sua vida. Mas se o fizer será bem mais lá para a frente, já que a outras coisas mais importantes se deve dar prioridade.

- Conte-nos cá essa história, Constantino – pediu-me D. Micá depois de Eduardo ter dado as boas noites e, com o argumento de que teria uma viagem bem cansativa este fim de semana, colocara um boné de pura caxemira aos quadrados em dois tons de azul, um marinho, outro azul ultramarino, já que o frio se faz sentir, levantou a gola do sobretudo, atou ao pescoço um cachecol Pierre Cardin, e saíra. Poucos minutos passados, a dr.ª Gisela, esposa de um diplomata itinerante, saiu também.

- Com certeza, por quem é – respondi-lhe cordial e formalmente, como quase sempre é o nosso tratamento. E foi assim, que depois de ter aquecido as entranhas com uma chávena de cacau quente e fumado uma cigarrilha espanhola que me foi ofertada pelo Ezequiel Pintasilgo, um novo camarada destas tertúlias, figura caricata, com uma pequena barbicha a pender-lhe do queixo e um bigode tipo mosca não mais largo que as narinas que veste camisas com gola à padre e coletes de cores garridas e que só fuma cigarrilhas espanholas, pigarreei para aclarar a voz e comecei, mais do que a explicar a fobia de Eduardo Aragão ao chá, a contar a história que lhe deu origem.

Como já vos falei anteriormente, não que com isso queira falar da vida de Eduardo Aragão, este meu amigo sempre teve um fetiche, chamemos-lhe uma queda, para evitar estrangeirismos, por mulheres casadas. E, apesar da educação que os pais lhe deram, em bons colégios de base religiosa, Eduardo Aragão não conhecia por vezes os seus limites. Não foi portanto de estranhar que sempre que se cruzava com Carlota Monteiro, uma senhora a rondar os seus trinta e seis anos, bem empregadinhos, visto a correção do seu porte, as linhas definidas das suas ancas e a beleza das suas coxas, uma cintura quase que poderíamos dizer de vespa e um busto não demasiado farto mas que se realçava pela firmeza, fosse isso no restaurante que ambos frequentavam no intervalo para almoço, fosse na repartição de finanças onde a bela Carlota Monteiro trabalhava e que Eduardo frequentava sob qualquer pretexto, mesmo que não houvessem impostos para pagar, nem valores a declarar, fosse ainda no autocarro que, Eduardo Aragão, por mera “coincidência”, apanhava juntamente com Carlota Monteiro, nem que para isso fosse obrigado a regressar pela mesma via, para pegar o carro que entretanto estacionara num parque próximo da paragem, pois não havia ocasião que Eduardo não transmitisse a Carlota Monteiro o seu desejo de um dia tomar um chá com a senhora. Aqueles convites perturbavam Carlota. Se é verdade que a presença tão assídua de Eduardo na sua vida a começava a atrapalhar, não fossem as más-línguas começarem a fazer conotações erradas, não menos verdade é que a própria Carlota começou a sentir, ela própria um secreto desejo de tomar chá com o meu bom, mas um tanto ou quanto descabeçado amigo, Eduardo Aragão. Mas não. Ao invés do que os seus pecaminosos pensamentos tentados em desejos a invetivavam a fazer, Carlota introduziu cautelosamente o tema ao seu muito ciumento, quiçá por vezes colérico marido o senhor Paciência Monteiro, comerciante de prestígio, cujos armazéns importavam as mais belas e qualificadas sedas da Índia. Debalde toda a diplomacia e cautela de Carlota. Inesperadamente, o senhor Paciência Monteiro ordenou-lhe que ela aceitasse o convite mas na condição de o tomar em sua própria casa, a deles, a do casal Monteiro. E assim se decidiu, assim se fez, pois que Carlota Monteira, argumentando com Eduardo de que estava cansada de tanto assédio, se dispôs a aceitar o convite, mas fê-lo nas condições impostas pelo marido.

- E ele? - perguntou preocupado Eduardo Aragão.
- Não estará – respondeu, ligeiramente nervosa por estar a mentir, Carlota Monteiro.
- Não estará?! – perguntou exclamativamente Eduardo Aragão, parecendo incrédulo com a resposta, mas ao mesmo tempo denotando, para quem estuda essas coisas da expressão facial, um certo ar de satisfação. E ainda acrescentou, no mesmo tom: - Como não está?
- Este fim de semana, ele terá uma viagem de negócios pelo que se ausentará sábado de manhã e só regressará no domingo pela tardinha.

Para Eduardo, o meu bom amigo, mas um tanto ao quanto desbragado, outras coisas lhe começaram a passar pela ideia, visto tão prolongada ausência de Paciência Monteiro lhe poder proporcionar algo mais do que uma chávena de chá, quem sabe se acompanhada por algum biscoito caseiro, sim que Carlota, tinha ar de quem era mulher de perceber de pastelaria. E não lhe perguntem porquê que ele achou isso, que ele, com toda a certeza não responderá e já vão saber porquê.

Resumindo para que se não enfastiem, contar-vos-ei que, como era de esperar e com a desculpa de que o seu propósito, por motivos alheios à sua vontade fora adiado, Paciência Monteiro foi ele em pessoa quem veio à porta receber o meu amigo Eduardo que, com toda a educação que recebera em criança, não quis deixar as suas boas intenções a débito e aceitou entrar para tomar chá, desta vez, com o casal. Não se tocaria no assunto dos vários convites para um “chazinho” como o meu amigo se referia nas aproximações a Carlota, não fora o caso de depois de tomada a primeira chávena de chá e recusado que fora a degustação de um biscoito caseiro, Eduardo não tivesse resolvido que havia chegado a hora de agradecer tão amável receção e tenha decidido retirar-se.

- Ora essa – dizia Paciência Monteiro – não convidou Vossa Excelência por mais do que uma vez a minha esposa para um “chazinho”, como era sua a expressão? Pois se o fez não é agora que ainda mal começamos que já vai querer debandar de nossa casa.

E, ato contínuo, serviu-lhe mais uma chávena de chá e ainda outra, depois mais outra e tantas mais que Eduardo Aragão esteva à beira de uma congestão por excesso de líquido ingerido, tendo chegado a perder a consciência.

Vendo assim o convidado naquele despropósito, desmaiado sobre a carpete, uma chávena de porcelana inglesa decorada com motivos florais literalmente em cacos no meio do chão, pouco faltou para que o casal Monteiro entrasse em pânico. Mas, no meio da confusão e da aflição, sim da aflição, porque não dizê-lo, ainda houve o discernimento de Carlota para limpar os vestígios e levantar a mesa e para Paciência ligar para um amigo seu, o Dr. Fabrício Páscoa, que embora fosse médico veterinário, sempre saberia melhor do que eles resolver a situação. Sem explicar ao dr. o que exatamente se tinha passado, receberam o Dr. Fabrício como se fosse um Deus, deixaram que o médico mexesse e remexesse no corpo inanimado de Eduardo, apesar de tudo com uma respiração normal e sem sintomas de qualquer traumatismo, lhe abrisse a pestana para ver os olhos e até, talvez por deformação profissional, lhe abrisse a boca e desviasse a queixada, verificando-lhe assim língua e dentes. Com calma e usando uma solução que tresandava a amoníaco, fez o dr. Fabrício Páscoa com que o meu amigo retomasse os sentidos e, quando ele já parecia restabelecido, aconselhou-o:

- Agora vá para casa, descanse um pouco e antes de se deitar tome dois destes comprimidos – e passou-lhe para a mão um blister contendo quatro comprimidos brancos, pequeninos, acrescentado – e quando acordar tome os outros de dois. De preferência com uma chávena de chá.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

182. O colar de D. Micá



“Apenas uma mantilha, diáfana e branca, cobria o corpo de Antonieta. O clarão dos relâmpagos mostrava um corpo nu na translucidez do véu. Mas mais alvo que aquilo que a cobria era a sua pele. O seu rosto, de olhos encovados e debruados a preto, era como uma máscara veneziana. D. Bonifácio d’Assunção parou à sua frente. De repente não parecia ter-se impressionado. Apenas lhe perguntou:
- Que queres?
E lembrou-se da caixa que tinha recebido nessa tarde.
O fantasma de Antonieta girou sobre si próprio ficando de costas para D. Bonifácio. Deu alguns passos em frente e, ato contínuo, foi seguida pelo pastor belga que rosnou. D. Bonifácio fez um gesto e um dos empregados puxou a trela ao cão. Este sentou-se mas não parou de rosnar. Uma aura de luz circundava agora o fantasma. O criado da lanterna apagou-a e Aristides deu o braço a D. Bonifácio, apoiando-o”.

À entrada da porta do salão ouviu-se um estardalhaço inesperado. Parecia que a criada de servir estava possuída. Sem nada que o fizesse esperar, tropeçou num Arraiolos que uma amiga de D. Micá fez numas aulas de artesanato que frequenta num Centro Social, por acaso muito bonito e que nada fica a dever aos mais famosos processados na Igrejinha ou em qualquer outra localidade de Arraiolos, e estatelou-se no meio do chão entornando todas as canecas de cacau quente e os copos de leite magro com chocolate, pirogravados com as armas da Confraria, e o nome escrito em gótico ou em letra francesa, não sendo eu um especialista para o poder distinguir. Todos os copos se quebraram e apenas uma das canecas, de fina loiça da Vista Alegre, não se partiu, mas, infelizmente, ficou sem asa o que acabou por dar no mesmo. A moça, que D. Micá tinha empregado a pedido do senhor Hortênsio, que já tinha sido merceeiro na Lapa e era muito amigo da família, veio, depois de ter bebido um copo de água com açúcar e se ter abanado com se sofresse de afrontamentos, já sentada numa cadeira, a confessar que ao ouvir, assim por alto, a D. Micá falar em fantasmas, lhe tinha passado uma coisa pela cabeça e que uma tontura muito grande a tinha desequilibrado. Os convidados de D. Micá, olharam uns para os outros e assentaram com a cabeça que poderia, sim, ter sido muito bem isso, já que há muita gente que se impressiona com estas coisas.

Restabelecida que foi a situação, foi a vez da Carlinha Menezes comentar o vestido branco com que D. Micá os recebia hoje, e do lindo colar, naturalmente caríssimo, que enfeitava o seu pescoço. Eduardo Aragão, um amigo meu que frequenta amiúde estes serões, foi ele mesmo à copa que serve de apoio não só ao aposento onde se contam as histórias, mas também a uma pequena sala de repouso para os que se “excedem” no consumo de copos de leite magro com ou sem chocolate, buscar um copo de água com açúcar para se acalmar. O colar que D. Micá ostentava era exatamente igual a um que Eduardo oferecera a Antonieta, nos tempos em que foram amantes. Mas da vida de Eduardo Aragão falar-vos-ei, quando for oportuno.





sexta-feira, 30 de novembro de 2012

181. Tempos difíceis




Uma nuvem de cheiros atravessou a casa e penetrou-o no estremunhado sono que ainda lhe restava. Um agradável odor, misto de café e torradas, anunciava-lhe a presença de alguém na cozinha, onde um tiritar de colher beijando a chávena confirmava um leve receio. Estendeu o braço esquerdo perpendicularmente ao corpo e obteve a certeza da primeira desconfiança. Ela já lá não estava e um apenas quase vazio era preenchido por uma almofada. Do outro lado com uma ligeira apalpadela descobriu os óculos e colocou-os. Depois abriu os olhos e pestanejou várias vezes como que a dar os bons dias ao raio de luz que atravessava a frincha da janela mal fechada. Desceu cuidadosamente da cama (a malvada dor de coluna acompanhava-o há largos anos), mal acordado, olhou em volta e descobriu na cadeira onde tinha deixado de véspera o roupão em cetim azul-escuro que ela lhe tinha oferecido no início deste verão. Por uns momentos ficou a pensar na importância que tem uma cadeira de quarto, no seu papel de fiel depositária e da tranquilidade de um objeto que durante anos não sai do mesmo local. Palermices, pensou, será a idade… De repente alteraram-se-lhe os humores (terá descoberto que dia era hoje?). Arrastou os pés até estes se enfiarem nos chinelos, quase com uma precisão matemática. Pudera. Durante mais de quarenta anos colocava os chinelos de quarto sempre no mesmo sítio e sempre que se levantava era a segunda coisa que procurava. A primeira eram os óculos depositados sobre o livro da noite na mesa-de-cabeceira. Pegou no roupão, seguiu a trilha dos cheiros e observou-lhe a nuca prateada na entrada da porta da cozinha. «Bom dia!», disse-lhe ela, mal o pressentiu. «Bom dia», respondeu-lhe ele, acariciando-lhe o cabelo e debruçando-se para lhe beijar o pescoço. «Acho que adormeci», acrescentou, como que a desculpar-se. «Porque não me acordaste?», perguntou-lhe semicrítico mas com uma entoação carinhosa. «Hoje vou chegar atrasado», concluiu. Depois numa autocrítica pesarosa terminou murmurando «maldito vício de adormecer agarrado aos livros. Esta noite, juro, apagarei a luz mais cedo e serei eu quem fará amanhã o pequeno-almoço». Ela rodou a cabeça, olhou-o com ternura nos olhos, pediu-lhe que se sentasse no lugar em frente e relembrou-o «Agora já não precisas». Uma pequena lágrima correu-lhe, inevitável, pelo rosto. Pela primeira vez, desde os seus vinte anos de idade, que não tinha de ir trabalhar à segunda-feira. E vieram-lhe à memória, numa catadupa de imagens, os anos da fábrica que acabara de fechar. Como que um macaréu, uma ânsia subiu-lhe corpo acima num curto percurso do estômago ao peito. Baixou a cabeça, e começou a barrar o pão com doce de cereja. Uma segunda lágrima caiu-lhe na chávena de café.


Repost de http://predatado.blogspot.pt/2006_06_01_archive.html

domingo, 25 de novembro de 2012

180. A coleção de cromos da D. Micá




O que se passou esta semana em casa de D. Micá é absolutamente indescritível. E hesitei muito em vos contar. Conhecem aquele dilema do conta-não-conta? Pois foi, fiquei com uma enorme vontade de vos contar mas também com um desmedido receio de que não acreditem em nenhuma das palavras que vos escreverei aqui. Mas, como já puderam constatar ao longo destes meus relatos em casa da também indescritível, passe a repetição do vocábulo, D. Micá, tirando a história da vida de D. Bonifácio d’Assunção, que a própria conta, nada há aqui que possa ser considerado inverosímil. E por falar em indescritível (lá estou eu a dar-lhe), quase que tinha vontade, antes de contar o que me propus, de dizer como estava deslumbrante a D. Micá, nessa noite. Mas não mais vou adiantar pois senão perder-me-ei do essencial. Se depois surgir a oportunidade falarei do novo Ana Salazar com que nos recebeu e do solitário de Neil Cane que trazia no anelar da mão direita. Foi no entanto uma noite hilariante e simultaneamente muito constrangedora. Principalmente para uma pessoa como eu. Por mero acaso o meu amigo Eduardo Aragão, que tem uma história de vida interessantíssima e que um dia destes ainda a contarei por aqui, não estava presente, poi se estivesse imagino como reagiria.

Até agora tudo parece muito confuso mas eu tentarei esclarecer o melhor possível, se para isso tiver engenho. Apesar da situação hilariante que vos vou descrever eu disse que a coisa, também se tornou constrangedora. Agora, cabe-vos a vós inteirarem-se de porque é que eu assim a classifico.

Foi a primeira vez que os vi por lá e não os conheço. Quando o Columbano Queirós me foi apresentado, estendeu-me a mão e disse, o trivial nestas circunstâncias:

- ulumbano eirós, muito prazer.

Peço desculpa por o confessar, mas deu-me uma vontade tremenda de me rir. Não que uma pessoa não possa falar sem o C numa palavra. Ou o Q, naturalmente. Mas uma pessoa que foi batizada como Columbano e que ainda haveria de ter como apelido Queirós, é que logo no seu desenvolvimento oral lhe haveria de acontecer não pronunciar o C. Na verdade eu próprio tenho um familiar que não pronuncia esse som e que, por ironia do destino, se chama Carlos. Mas, do mal, o menos. O seu apelido é Fernandes e a questão atenua-se. Estava eu com estas considerações com D. Micá quando ela me disse que para cúmulo o Columbano, não só se chama Columbano, como também tem como apelidos Cortes Queirós. Não houve compostura que resistisse e desatei-me a rir, de tal maneira que me engasguei e quase sufoquei. Felizmente estava presente um outro amigo de D. Micá que logo ali me socorreu. Embora não fosse das minhas relações já tinha visto, salvo erro na Baixa, uma placa do seu consultório, talvez na Rua dos Douradores, Luís Lacerda – Otorrinolaringologista. Pois já sei o que estão a pensar. Devem estar neste momento a pensar se o Constantino não vai aqui dizer que o homem não pronuncia o L. Na mouche. Simpático e desinibido o dr. Luís Lacerda ordenou-me «uevante os braços, senão está uichado». Bom, só faltava mesmo que o dr. Luís Lacerda se chamasse Luís Lopes Lacerda. Já seria demais. E enquanto pensava nisto, a D. Micá, quis inteirar-se do meu estado de saúde, trouxe-me um copo de leite magro com chocolate e um cacauzinho quente, que o tempo já convida, perguntando-me qual preferiria mas, antes que eu respondesse, atirei:

- Não me vai dizer que o homem se chama Lopes. 

Pois, desta vez pude tomar o cacau à vontade. Ela disse-me que não sabia, mas que tudo levaria a crer que não. Seria uma grande coincidência e aí sim, ninguém iria acreditar em mim quando eu o contasse. E estávamos nós nisto quando um tipo de fato escuro e gravata berrante, com um bigode à Emiliano Zapata e brilhantina na cabeça (acho que exagero, seria talvez wet gel), ar de vendedor de automóveis, dá uma palmada nas costas do otorrinolaringologista, que mais me apeteceria dizer otorrinouaringuogista, e saúda-o em voz alta, para quem o quis ouvir:

- Estás pogueigo ó Lopes, ou não quegues dizêgue?

Ao que o nosso médico especialista retorquiu:

- Oha o Rui Guiuerme. Bons ohos te vejam!

Eu deixei cair o cacau em cheio em cima de um tapete novo, um persa genuíno, que D. Micá tinha adquirido numa bienal em S. Bartolomeu de Messines, ficando ainda mais constrangido com o que tinha acabado de acontecer do que com o facto de me querer rir e não poder, tão perto que estávamos dos protagonistas. Só fiquei mais descansado porque a D. Micá logo me disse «não se preocupe Constantino, não tem importância». Afastamo-nos os dois enquanto uma rapariga, loira e muito branquinha, que falava com sotaque ucraniano, ia limpando tapete e chão para onde também tinha espirrado o meu copo de cacau quente. O vendedor de automóveis chamava-se Rui Guilherme ou, na sua própria maneira de dizer, Gui Guilhégueme.

Tenho a certeza de que quando eu for contar isto ao meu amigo Eduardo Aragão, jocoso como ele é, não só me vai dizer que eu poderia ter arranjado melhor, que poderia ter arranjado um tipo que não falasse com nenhuma daquelas três letras, que se chamasse Rui Luís Columbano Guilherme de Lopes Lacerda e Cortes Queirós. E no fim ainda remataria: “E que fosse gago”.

domingo, 18 de novembro de 2012

179. Eu também era capaz de me arrepiar




Eduardo Aragão, o meu grande amigo de quem vos falarei um dia mal o tempo mo permita, teve alguns problemas na vida que o deixaram, como na gíria se poderia dizer, a bater mal da bola. Nessa época e apesar da crise porque passava, só lhe apetecia namorar. Infelizmente para a sua relação com Maria do Carmo Centelho de Albuquerque e Silva, uma moça da classe média alta, gerente de uma cadeia de distribuição de cosméticos, filha de um ex-secretário de Estado e neta de um maçon de grande nomeada na nossa praça, esta sua tendência para outras saias que não as da esposa e o pior, porque se enrabichava frequentemente com mulheres casadas, isto não eram comportamentos toleráveis. Mas de Eduardo Aragão, não vos falarei agora já que o que mesmo me interessa é contar-vos o que D. Micá nos narrou sobre aquela ida de D. Bonifácio d’Assunção à quinta, numa noite de tempestade, negra como breu e com Aristides a queixar-se do reumático. Então se o objetivo não era contar-vos a vida do meu amigo Eduardo, porque é que eu comecei este capítulo falando nele? A coisa é simples de explicar, mas terei de deixar um pouco mais para o fim, para manter o suspense.

Ora, D. Micá, empolgava-se sempre que falava de D. Bonifácio. Que se saiba nunca houve qualquer relação entre este fleumático senhor e o empreendedor Jovelino Azeredo, pai de D. Micá e comendador, ele mesmo o congregador da confraria do leite magro com chocolate. E se se empolgava, não se sabe porquê pois tudo leva a crer que, sendo D. Micá uma excelente contadora de histórias cor-de-rosa, episódios passados sob chuva torrencial, trovoada imensa e ensurdecedora, raios que riscam os céus, capazes de fazer em carvão qualquer sobreiro por mais altaneiro e produtivo que seja, ou qualquer gigantesca araucária por mais que o seu porte imponente tente dominar o parque, o jardim, a quinta ou o cerrado, ela não estaria na sua praia quando se tinha de referir a espíritos, fantasmas, almas passeantes, conversas com o além. E sobretudo, histórias que tenham velas que não sejam para alumiar o caminho de uma princesa ao altar, nunca foram ao que D. Micá mais se dedicou.

E foi, apesar do já referido supra, que D. Micá, hoje vestida com um par de calças branco, bem justo que não só lhe realçava os glúteos, mas também deixava transparecer os contornos de uma cueca em asa delta, deixando alguns dos paspalhões dos seus amigos com a água na boca, isto para não dizer que os whiskies ou os conhaques, tomados a certas horas, quando provavelmente já deveriam estar a preparar um copinho de leite magro e aquele comprimido para a enxaqueca, de roupão e chinelas, já com o pijama vestido, se toma nestas noites de outono, tem destas coisas e faz pensar em alcançar o inatingível, pois todos sabemos que D. Micá não é senhora dessas coisas.

«Sem receito, cabeça levantada, D. Bonifácio retomou o curto caminho. Agora a chuva intensificava-se e o pastor belga dava alguns sinais de inquietação. Começou a ladrar. Começou a ladrar forte. Um relâmpago iluminou todo o átrio em frente da ampla porta da mansão. Não havia dúvidas. Desta vez não havia dúvidas. O cão ladrou, o relâmpago deu luz aos céus, o trovão ecoou no cerro que de dia se vislumbra nas traseiras. Antonieta, a esbelta Antonieta, imota no cimo da escadaria. Serena, como serena foi levando a sua vida. Uma vida ceifada quando ainda não tinha completado trinta anos. Testemunhas, Ermelinda, Juvenália e Facinho. Ermelinda a parteira chamada às pressas por D. Bonifácio seu esposo. Juvenália a criada de quarto que foi também ama-de-leite da senhora e ali a viu desfalecer. Facinho que chorou quando nasceu. Chorou também a morte da mãe, a linda, a esbelta Antonieta».

Eduardo Aragão estava arrepiado. Puxou do lenço de seda amarelo com estampagens em azul, com certeza um Dior, que lhe pendia do bolso superior do casaco e limpou algumas gotas de suor que lhe surgiam na fronte. Virou de uma só vez o copo de Johnny Walker, black label, pediu licença para sair, despediu-se com um aceno. No hall de entrada, decorado com uma pequena escultura, em mármore, de Cutileiro ou imitação, chamou um táxi pelo celular. Antonieta era uma mulher casada, quando, ainda adolescente a namorou. Durante uns anos nada soube dela. No dia em que ela foi a enterrar, encostado a uma árvore, a muitos metros do jazigo dos D’Assunção, puxou por um cigarro e fumou.

domingo, 11 de novembro de 2012

178. A janela de Efigénia



Passou a correr Marieta, a chuva começava a cair. Molhou os sapatos numa poça de água à beira do passeio. Molhou os peúgos brancos que lhe chegavam ao joelho. Não molhou a saia, Marietta. Disse-lhe adeus através dos vidros fechados. Marieta sorriu e agitou o braço. Marieta ainda corria e desapareceu na esquina da rua. Pedalava lento o Pedrito saboreando a chuva miudinha que lhe salpicava as melenas. Sentiu água nas grandes pestanas e sorriu a pensar que se Idalisa ali estivesse lhe beijaria as pálpebras, saboreando o salobro da água da chuva nas suas pestanas reviradas. Idalisa não estava nem passou por ali. D. Leopoldina carregava dois sacos, um em cada mão. Em passo lento, curvada nos seus quase oitenta anos, não lhe incomodava a cacimba. Nos ombros o casaco de malha já pesava alguns gramas mais, mas isso era o menos. Tomara que Pedrito ou Idalisa por ela passassem e a ajudassem na carga. Pedrito já tinha passado. Idalisa não iria passar. Passou um cão branco de pelo encaracolado, pequeno e irrequieto, sem o dono. Passou um dono depois com calça de golfe, quadrados largos, de tecido escocês, usava um boné, fumava cachimbo, sem o cão. Cão e dono se encontrariam já depois da curva da rua que se fazia para a esquerda. Ele levantaria a patita de trás e mijaria contra um candeeiro. Ou contra uma árvore. O cão. À direita tinha uma esquina por onde se tinha deixado de ver Marieta. À esquerda tinha uma curva por onde se tinha deixado de ver o cão e o dono do cão. Antes da curva o dono voltou-se e olhou para cima. Estendeu o braço e virou a mão, primeiro a palma para cima depois virou-a de novo e as costas da mão ficaram viradas para as nuvens. Tirou o chapéu e coçou a cabeça. Assobiou duas vezes em silvos estridentes. O cão branco, de encaracolado pelo, não se lhe chegou. Limpou a água, que lhe tinha molhado as costas da mão, à perna da calça de lã escocesa, quadrados verde e pretos desenhados a linhas amarelas. Não o conhecia por isso não lhe acenou. Mas acenou a D. Leopoldina, que de curva nas costas e olhos no chão não lhe reparou no gesto. Não retribuiu o aceno D. Leopoldina, nem o Camilo da lambreta que hoje vinha a pé. Às quartas-feiras folga o Camilo da lambreta que trabalha na pastelaria do senhor Francisco Sebastião. O Camilo da lambreta vai e volta do emprego sempre de lambreta. Mora a oitenta metros da pastelaria e diz que é porque não quer que a lambreta se não habitue a não trabalhar. Também lhe chamam Camilo padeiro mas ele afina porque diz não ser padeiro, mas sim pasteleiro. Talvez por isso, para que não seja incomodado pelo caminho, se desloca de lambreta. Hoje vinha a pé porque era quarta-feira. Quando alguém, às quartas-feiras se lhe dirige, clamando-o como Camilo padeiro, ele não responde. À quarta-feira ele está totalmente de folga. Não é nem padeiro, nem pasteleiro, nem tem de se justificar. Passou um casal de namorados, já a chuva tinha parado. Ainda assim, enquanto ele segurava um guarda-chuva de cor grená, aberto por cima das suas cabeças, mas não necessário, pois já não chovia, ela abraçava-o pela cintura para que se não afastasse de modo que o guarda-chuva cumprisse a sua função quando fosse caso de ter função para cumprir. E como não era de facto necessário, aproveitaram para se beijarem. O guarda-chuva tapou-lhes a visão da vidraça da janela, onde entre vidros, que agora já podiam ser abertos, ela os observava e os cumprimentava. Por isso não lhes acenou e por isso eles não lhe acenaram. Abriu a janela. Chegou-se à sacada. Um gato miava na varanda da vizinha. A vizinha não estava, o gato estava. Só. A janela fechada, o gato na varanda. O gato queria saltar e a altura, tal como qualquer desmancha-prazeres a desmotivá-lo. A água da chuva, que lhe caíra no pelo, desconfortava-o. Ela teve pena do gato e mandou-lhe uma carícia verbal. Chamou-lhe Tareco e se assim lhe chamou é porque era Tareco. Para ela todos os gatos são Tarecos, todos os cães são Bobis. Um Bobi de pelo encaracolado branco regressava agora vindo da curva da estrada e atrás dele, também com as pontas dos cabelos encaracolados e ruivos, o dono com um cachimbo apagado no canto da boca, vestindo calças escocesas e assobiando Flower of Scotland. Um Bife. Para ela todos os estrangeiros são Bifes. Todos os cães são Bobis e todos os gatos, Tarecos. Passou um amola-tesouras com calças de bombazina e uma flauta de beiço. Reparava guarda-chuvas, pano e varetas e afiava facas. Punha rebites em tachos de alumínio. Ela recuou 30 anos. Há trinta anos, da mesma janela via a peixeira passar com a canastra à cabeça, apregoando sardinhas, carapaus e chaputas frescas. Via passar um chinês com uma corrente de couro ao pescoço onde se suspendia um suporte de gravatas. O chinês apregoava gravatas substituindo o erre pelo ele. Achava glaça ouvir o chinês. O ardina apregoava o Século pela manhã e voltava à tarde para vender o Lisboa e o Popular. Vendiam-se figos da capa-rota e passava todas as tardes o senhor Gervásio que já faleceu, para visitar a mãezinha dele que também já morreu. Hoje lembrou-se do senhor Gervásio quando viu a neta dele, a Henriqueta. Coitadinha, caiu na vida, mas é tão simpática. Disse-lhe adeus, como lhe diz todas as manhãs, bem junto ao meio-dia quando sai para tomar o pequeno almoço. De manhã não se aperalta, mas à tardinha sai sempre de minissaia e botas altas. Seja verão, seja inverno. Parara de chover e o passeio estava escorregadio. Passou o 42 que parou na paragem em frente ao consultório do dentista. Entraram duas pessoas que ela não reconheceu e saiu a D. Evita da veterinária. Pôs mal o pé, espalhou-se ao comprido. Ficou toda molhada e um pouco enlameada. Benfeita, pois tinha sido por culpa dela que passou uma tarde da semana passada a chorar. Não lhe salvou o Bobi, coitadinho, o seu melhor amigo.

D. Micá pediu a Efigénia que lhe ajudasse a animar o serão. Efigénia não era uma pessoa alegre. Ainda era relativamente jovem, não tinha sequer completado os cinquenta. Era solteirona e fazia garbo nisso. Dizia que não queria sentir a trela de um dono. Se nem o Bobi usou trela… Efigénia sempre disse que não sabia contar histórias que não tinha o dom de D. Micá, que a sua vida não daria um filme. «Ó, mulher, conte o que vê quando vai à janela», disse em voz alta o meu amigo Eduardo Aragão, de quem um dia vos falarei. E Efigénia contou.


domingo, 4 de novembro de 2012

177. Micá já sabia que ele gostava de bola




Eduardo Aragão entrou triunfante. Fato completo, príncipe de Gales, cor de mel e gravata vermelha, sobre camisa lisa bege, lenço no bolso superior a condizer, um sorriso rasgado nos lábios. Eduardo Aragão um amigo meu, creio que o sabem, falar-vos-ei do seu feitio um dia destes, estava eufórico. D. Micá que lhe conhece a pinta, quase que poderia adivinhar o que se passava, mas não se abriu, não deu a entender. Quem conhece D. Micá como eu a conheço, saberia que ela estava, na calada dos costumes, a gozar o pratinho. Passou por Felisberto Passinhas e piscou-lhe o olho. Passou por Sebastião Jerónimo e deu-lhe uma palmada nas costas. Passou por Ezequiel Canário e, agarrando-lhe um braço, puxou-o para se juntar ao grupo de comedores de tapas de atum com maionese e tostinhas com salmão e cebola, acompanhadas de espumante da Bairrada, apesar de Ezequiel Canário não ser um tão seu indefetível correligionário como o gesto de Eduardo, aparentemente, o deixaria antever. Quem não quis perder nada do que se ia passar foi D. Micá que, de vestido de seda vermelho, um xaile carmim e uma boquilha madrepérola, fumava um cigarro mentolado, quase que estabelecia o par perfeito com Eduardo, o meu amigo de quem se diz ser ainda aparentado com os Martins da Maia, uma família aristocrática da alta de Lisboa com apartamento nas Avenidas Novas e casa apalaçada, ou melhor dizendo, uma verdadeira mansão na Covilhã, brasonados, da tradicional e secular família Maia que deu, como um dos seus filhos maiores, D. Policarpo da Maia, insigne monge e erudito prosador e poeta. Eu que, desde que os tempos têm memória, o conheço como um pelintra, embora exímio nos expedientes e cujo bem-estar social, chamemos-lhe assim, advém de um casamento mal consumado com D. Hermengarda de Santo António e Pireza, mas que vos proponho contar mais tarde, não sou nenhum desmancha-prazeres, deixo-o vadiar na sua gabarolice, alinho no seu bom humor, rio com os seus devaneios, chego a arrepiar-me com a sua veia dramática de que não perco pitada, aproximei-me também do grupo e fui-lhe escutar a história que os seus brilhantes olhos nos teriam para contar.

De pouco nos serviu tanta importância dedicada à alegria de Eduardo Aragão. D. Micá, para seguir aquela euforia, tinha interrompido, uma vez mais, a história de de Bonifácio d’Assunção e, Graziela, a baixinha empregada dos Carocha & Co. que hoje tinham sido contratados para o catering do serão, onde não pode faltar o croquete e o rissol de camarão, não sabia para onde se havia de virar, estando mesmo quase a passar-se com o Julião Guedes que lhe apalpava o rabo sempre que ela passava. Cheguei mesmo a pensar sair deste episódio, debruçar-me sobre o varandim já que, embora todo o dia tenha chovido, a noite apresentava-se serena e ainda luminosa de luar e ficar por ali a saborear uma pequena cigarrilha que me havida sido ofertada pelo poeta Santa Rita de Azurara, só não o tendo feito por consideração  ao entusiasmo de D. Micá e à amizade que tenho por Eduardo, meu amigo de quem voltarei a falar.

Eduardo com a voz embargada falava da sua satisfação pela vitória por três a zero do seu Glorioso. E eu, encolhendo os ombros pensei, «olha que novidade». D. Micá, embora feliz com o desfecho, abandonou o grupo ao mesmo tempo que eu e disse-me ao ouvido: «e ainda nos  roubaram dois penalties».

domingo, 28 de outubro de 2012

176. A ovelha do Ricardo segundo D. Micá



Acordei com a fronha da almofada ligeiramente sangrada e a rir às gargalhadas. Gosto de acordar assim. Não, não gosto de acordar com a almofada suja mas gosto de acordar bem disposto. Às vezes até acabo, eu, por desatar a rir do pretenso disparate de acordar a rir. Parece confuso mas não é, só que agora não tenho tempo de vos desfazer este laço de risos e contra risos. Mas tenho para vos contar porque é que acordei a rir e também porque é que acordei com a fronha com uma mancha de sangue. Abro entretanto um parêntesis, para referir que a minha mulher me fez uma observação descabida. Dizia-me ela que sendo o conjunto de cama de fina cambraia branca de algodão, as rendas dos lençóis e das almofadas de bilros genuínos de Peniche e a cama feita de lavado, porque é que, tendo eu ido ao dentista na véspera, não protegera a almofada com uma fraldinha do meu neto? Claro que é descabida. A criança usa fraldas descartáveis. Mas, fraldas à parte era qui mesmo que eu queria chegar. Na véspera, uma desgraçada dor de dentes tinha-me mandado para o consultório do dentista. Como a coisa se precipitou e eu não tinha consulta marcada, o Dr. Eurípedes não teve compaixão. Mandou-me esperar, com uma gaze embebida em álcool etílico feita um pasto junto ao dente e um lenço de assoar de fino pano, que por sinal era ainda da minha toilette do casamento da minha filha, em verde-claro que condizia com a gravata e com o lenço de lapela que usei nesse dia, monografado, onde, do lado de fora da bochecha eu encostava a mão, de cabeça inclinada, num ar dramático e de sofrimento que quem por ali passasse saberia que estava a olhar para um coitadinho. E foi por causa deste episódio doloroso e sangrento, que cheguei atrasado ao serão na casa da D, Micá, a minha amiga contadora de histórias cor-de-rosa e órfã do magnata do leite com chocolate, à dimensão deste cantinho à beira mar plantado, como seria apanágio o poeta dizê-lo. O magnata, claro.

Quando entrei no majestoso salão de D. Micá, onde o chão de carvalho sueco tinha acabado de ser embelezado com uma maravilhosa carpete de Arraiolos, no canto onde o piano se situava, fazendo de chão ao mesmo, o que acabou por dar uma qualidade superior à já inconfundível vibração das cordas do Steinway, um magote de convivas, entre os quais o Ricardo, ria à gargalhada, O Ricardo era a exceção pois, ao redor de um tema que o embaraçava, D. Micá tinha acabado de contar a história dessa noite. Ainda muito desinsofrido do meu passado recente, que não contava mais de uma hora de antiguidade, protagonizado na cadeira do dentista e que não passou despercebido aos meus companheiros de serão, muito menos a D. Micá que, com um maternal «então senhor Constantino, o que é que lhe aconteceu?», sem que eu pudesse balbuciar mais do que uma ou duas palavras impercetíveis, resolveu contar, quase só para mim, o que tinha sido motivo de tanta risada naquele grupinho. O Ricardo, saiu de mansinho, disse-nos até já, foi para o varandim saborear um Glenlivet longe da chacota, acompanhado de Rafaela, que também tinha ido ao serão, a quem convidou a olhar para as estrelas e a identificarem as constelações. Lá dentro, D. Micá estava imparável e a história foi esta.

Ricardo saíra de um bar com alguns companheiros, numa das pausas de quinze dias para preparação de exames, que o curso de arquitetura, que frequentava em Lisboa, lhe concedia. O bar situava-se fora das paredes da cidade, numa região semirrural. Para lá irem, ter-se-iam de deslocar de carro. Ricardo conduziu o todo-o-terreno do tio Artur, que era o carro com que normalmente se deslocava nestes períodos de miniférias. Quando saíram do bar, onde duas brasileiras e uma ucraniana, dançavam e se despiam contra um varão de aço inoxidável e os shots de vodka e as cervejas importadas tomavam conta da cabeça dos clientes, eles que tinham começado brejeiramente a fazer trocadilhos com a palavra vaca, a propósito não se sabe de quê ou de quem, sem demora passaram a discutir chocas, cavalos, toiros e touradas, uns prós e outros contra, resolveram que estava na hora de fazerem uma pega de caras. É claro que nem Ricardo, nem os seus companheiros, tinham arcaboiço para pegar um boi, nem tão pouco um vitelo de dois meses, nada melhor do que pegarem de caras uma ovelha. E ainda com o álcool a falar mais alto do que eles, roubaram um borrego ao rebanho do ti Benevides, cujo dito rebanho bem berrou da invasão mas, de cujo facto, o ti Benevides nem deu conta, pois que era surdo que nem uma porta. Afastados que estavam do bar, do rebanho, com a vodka a tomar-lhes conta da lembrança, sem o borrego avançar, também ele um pouco amorfo, com sono e sem saber o que era investir contra uma t-shirt vermelha, apenas berrando uns estridentes més. Acabaram por meter o borrego no jeep. E pela manhã, sem saber mais o que fazer, Ricardo levou o borrego para casa com a promessa do Adriano de que iria lá resolver a situação. Na pior das hipóteses matavam o borrego, tiravam-lhe a lã para mandar fazer um casaquinho para a Rafaela e deliciar-se-iam com uns ensopados e umas costeletas grelhadas na brasa. A verdade é que o Adriano, nunca mais se lembrou da história, varreu-se-lhe da cabeça como se um tufão lhe tivesse soprado, naquela noite, o crânio, desatou a estudar para os exames, desligou o telemóvel e esteve quinze dias incontatável. Ricardo dormiu, dizem as más-línguas, quinze dias com o borrego, alimentou-o, deu-lhe carinhos. Maldizem outros que até Rafaela teve ciúmes. Eu, pessoalmente, tantas eram as dores na minha boca, não consegui nem rir nem desdenhar da sorte de Ricardo. Mas na manhã seguinte acordei a rir às gargalhadas. E não foi apenas da história. Foi por causa do agasalho que a Rafaela tinha vestido nessa noite. Parecia uma ovelhinha num casaco rústico de lã, comprado numa loja de artesanato da Serra da Estrela. A verdade é que segundo nos disse a própria D. Micá, assim trajada, ela sentia-se muito mais acarinhada por Ricardo, que até comidinha lhe dava à boca. E foi isso que me fez dar aquelas gargalhadas.   


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

175. D. Micá e uma história com chifres



Talvez há mais de um ano que não via o artista. Justino Carlos é um grande amigo meu. O que eu não sabia era que o Justino também era amigo dela. Foi com surpresa que o encontrei lá numa das nossas famosas soirées literárias onde pontuam os contos da D. Micá. Mas há quem, à sua revelia, vá também contando histórias, em pequenos grupos que se formam no salão e muitas vezes contadas na primeira pessoa pelos próprios protagonistas. Foi o que aconteceu esta noite em que, depois de ouvir esta delícia, decidi pedir licença à D. Micá, ausentei-me uns quinze minutos, fui ao carro, tirei o iPad do porta-luvas e escrevi-a todinha para não me esquecer de nada.

O Justino Carlos era o centro das atenções. Normalmente o Justino era um tipo discreto no vestir. A sua roupa mais usual era jeans e polo de três botões de marcas suspeitas, o crocodilo nunca parecia o original e outros símbolos que são as griffes mais conhecidas no mercado da moda eram produto de contrafação. Mas arreava bem. Não era nenhum borrabotas. Mesmo com esta casualidade ao vestir, o Justino nunca andava de sapatos de ténis e os sapatos, podiam não ser de grande qualidade mas andavam sempre limpos e tinham quase sempre um aspeto novo. Quando se apresentava em lugares em que o dress code fosse mais rigoroso, vestias blasers e calças finas, camisas de risca ou até mesmo fato completo, algumas vezes de três peças e bonitas gravatas. Admirei-me pois de o ver no serão da D. Micá, vestindo como se fosse um yuppie bem sucedido, a virar classe média alta e só não digo como é que se apresentou para que o Gaspar não lhe vá mais aos bolsos. À sua volta ria-se à gargalhada e quando me viu não só me deu um abraço que me ia esmagando as costelas, mas também me passou um copo de champanhe, convidou-me a juntar-me ao grupo e quando eu inquiri o motivo de tão boa disposição respondeu-me «ainda tu não ouviste nada».

Pedi-lhe apenas um momento, que não começasse sem eu voltar e, paulatinamente dirigi-me a D. Micá, segredei-lhe o que se estava a passar e aguçando-lhe o apetite trouxe-a pelo meu braço até ao grupo de quatro homens e três senhoras, uma das quais não conheço mas vim a saber que se trata da nova namorada do meu amigo Eduardo Aragão, de quem vos falarei oportunamente e provoquei-o «Então conta lá Justino. Quais são as novas?», perguntei-lhe, presumindo que ele as tinha na ponta da língua e que “morria e estalava” para no-las contar. E foi assim que o Justino Carlos contou a sua história recente:

«A semana passada surpreendi a minha mulher em casa na cama com outro... Devagar fui à sala buscar uma pistola que costumo ter escondida numa gaveta, com a intenção de matar os dois… parei para pensar e fui percebendo como a minha vida de casado tinha melhorado nos últimos tempos. A minha mulher já me não pedia dinheiro para comprar carne ou peixe, fruta e legumes, aliás, nem para comprar lingerie, vestidos, joias e sapatos, apesar de todos os dias aparecer com um vestido novo, uma sandalinha da moda, lindas e rendadas cuecas, fio dental que ela nunca tinha usado antes e uma vez por outra, um bonito anel, uma pulseira, uma gargantilha. Os meus filhos mudaram da escola oficial para o externato mais fino lá da zona. Só para verem, ela trocou um opel astra que tínhamos comprado a prestações por um audi a3, sem sequer me avisar e sem termos de fazer contas, se o podia fazer ou não, pois há quatro anos que estou sem aumento e termos decidido dar um corte radical na mesada que lhe costumava dar, já que sem subsídio de férias nem subsídio de Natal e com o IRS a subir não tinha maneira de a manter. Quanto à despensa recheada e ao frigorífico e arca congeladora, nem se fala. Lá em casa nunca tivemos tanta fartura quanto ultimamente. E as contas da luz, água, gás, telefone, internet, telemóvel e cartão de crédito, faz tempo que ela não me pede um tostão e quando vou para as pagar, está sempre tudo pago. Vocês ainda se lembram de como é jeitosa a Filomena, não se lembram? Pois agora ela está um autêntico avião, frequenta ginásio, faz depilação laser, tem sessões de yoga, a gaja nunca esteve tão boa nem tão apresentável em toda a vida dela. 

Resolvi guardar de novo a arma. Saí, pé ante pé para não incomodar nenhum deles e, escada abaixo, vim a pensar sozinho: O tipo paga o empréstimo da casa ao banco, o supermercado, a escola das crianças, as contas da casa, o carro, o shopping, todas as despesas e eu ainda vou para cama com ela todas as noites, o que é que eu quero mais?».

É evidente que à perplexidade que se seguiu e que foi generalizada, boquiabertos que estávamos com a história, pensando, alguns de nós se aquilo era verdade ou mentira pois nos pareceu muito efabulada, sem saber o que dizer, se assentar ou se criticar, não podíamos deixar de, em uníssono, presentearmos o nosso Justino Carlos com uma sonora gralhada e até com uma grande salva de palmas. Não é que Justino rematou a faena com esta pérola?

«Pois meus amigos, é que eu cheguei à brilhante conclusão de que afinal de contas quem é o corno é ele e não eu».



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

174. D. Bonifácio entrou no portão



Tenho muita vontade em vos falar do meu amigo Eduardo Aragão. E não podia escolher melhor época do que a estação da queda das folhas, a estação das chuvas. Mal os plátanos começam a encher o chão do jardim com folhas castanhas, Eduardo Sequeira Aragão, meu amigo de há muitos anos, começa a entrar em depressão. Mas não é o único da família pois o seu primo Pedro, o Pedro Pinto Aragão, tem o mesmo problema. Só que enquanto o Eduardo planta nos roupeiros, à espera que a primavera volte, os seus fatos de calça branca e blaser azul, de calça bege e polo Fred Perry azul claro, os lenços de seda de bolso ou os que lhe fazem gargantilha, as calças de caqui e camisas de meia manga aos quadrados e sapatos vela, que usa para, nos fins de tarde, dar um salto até ao bar do Quim Geraldes, um rapaz, também da nossa criação que sempre sonhou ter um bar de praia com karaoke e écrans gigantes a projetarem, em sessões contínuas, imagens de desportos náuticos, de quem vos terei ocasião de falar, eu ou a D. Micá, pois ele é, para ela, como o irmão que nunca teve e que, tirando aquelas tardes de canícula em que não dá para abandonar o barco, que é como quem diz, o balcão dos cocktails, não falta a um serão no salão mais famoso da Lapa, o Pedro há muitos anos que não sabe o que são, nem outonos nem invernos. Quando a temperatura do ar baixa dos vinte graus, uma pequena mala com alguns parcos haveres e produtos de higiene para as primeiras horas e ala que se faz tarde, já o Pedro está no aeroporto com bilhete para o Rio de Janeiro. Ele diz que é por causa das alergias, mas ninguém acredita nisso.

Pedro conhece perfeitamente o Rio. Viveu lá, em jovem, com os pais, quando o senhor Segismundo Aragão foi nomeado Encarregado de Negócios no Rio de Janeiro e São Paulo. Infelizmente para uma maior proximidade entre Eduardo e Pedro, D. Custódia, mãe deste, não tem afinidades com a tia Perpétua, a mãe do Eduardo, embora entre eles haja amizade e até algum companheirismo e cumplicidade, sempre que podem. E por falar em poder, algumas vezes planearam irem os dois passar o inverno europeu nos 40 graus do Leblon, nos chopes em Copacabana, assistir ao Carnaval mais quente do mundo, «em tudo» diz o Pedro e repete «em tudo, em tudo». Mas não, nunca se concretizou, a família Pinto e a família Sequeira já se conhecem há décadas e nunca se deram bem. Coisas de família, invejas, namoros cruzados, umas terras na Charneca da Caparica, uns pinheiros que eram de uma e afinal, vai-se a ver as cadernetas eram da outra, enfim uma trapalhada das antigas, que já contava duas, três gerações e com a agravante de Custódia e Perpétua terem acabado por casar com os irmãos Aragão, Segismundo e Alfredo. E como se não bastassem os problemas e conflitos antigos, trocaram-se namoros, primeiro a filha do Sequeira namorou com um, vindo depois a casar com o outro e vice-versa no que diz respeito à filha do Pinto, parece que calhando a fava aos coitados dos irmãos Aragão. Para agravar e complicar a coisa se o Pedro e o Eduardo não fossem primos, seriam praticamente gémeos, nasceram com três dias de diferença. Nos bastidores das famílias diz-se à boca pequena, que é como quem diz em surdina, que ninguém tem a certeza quem é o pai de quem, obviamente falamos de Pedro e Eduardo e isso, além de ter atiçado as desavenças entre os Pinto e os Sequeira, desde há mais de cinquenta anos que tem trazido as agora septuagenárias numa pilha de nervos e em mútuos ódios.

A esta hora, Pedro já viaja ou já estará instalado no Caesar Park de Ipanema ou no Pestana Atlântico só não se sabendo ao certo porque, é como D. Micá sempre diz, ele morre de amores tanto por Ipanema como por Copacabana e que nunca sabe onde há-de ficar, tendo por costume desempatar em Angra dos Reis. Ia eu a pensar nisto quando, ao sair de um cocktail bar ali para Santos e ao subir calmamente a Rua das Trinas para me desviar e me perder do Museu da Rádio, uma das minhas grandes paixões, fazendo tempo para me encontrar com Eduardo com quem iria jantar antes de nos dirigirmos ao palacete de D. Micá para o nosso serão das quintas-feiras, dou de caras com a própria Micá. Pedi-lhe imensa desculpa por na última noite ter tido de sair antes dela acabar o conto que estava contando, mas um desarranjo intestinal impedia-me de continuar no serão, sob pena da minha presença se tornar incomodativa para os restantes convidados. D. Micá riu-se, ou porque achou piada ao dichote ou porque se pôs a imaginar a cena e não se fazendo rogada acompanhou-me ao museu e recontou-me a história da semana anterior.

“D. Bonifácio saiu do carro depois de Aristides lhe ter aberto a porta. Não foi fácil para um homem, que embora não seja ainda um idoso, teve uma trombose que o deixou muto maltratado. Hoje desloca-se sempre com a ajuda de uma bengala, uma bengala personalizada, feita em amaranto com punho em osso de tartaruga das Seychelles, efetivamente muito bonita, com as suas iniciais incrustadas em bronze polido, fabricada por um famoso ebanista francês. O seu ar imponente, o chapéu alto, o sobretudo em pura lã, clássico, a bengala personalizada com as iniciais BA, faziam-no parecer um homem não de hoje, mas de meados do século passado. D. Bonifácio era um conservador, um homem de porte, uma pessoa elegante. O portão abriu-se e D. Bonifácio seguiu a pé, acompanhado pelos dois homens que traziam as lanternas na mão e um pastor belga, de pelo lindo bem tratado, altivo e dócil. Um dos homens segurou no guarda-chuva que entretanto Aristides lhe passara, protegendo o patrão, o outro foi alumiando o caminho. Desde que aquela herdade lhe pertencia, nunca D. Bonifácio transpusera o portão que não fosse a pé. Quando conduzia, deixava o carro na parte de fora e era um dos criados que o estacionava no parque da casa. Agora é Aristides quem o faz. Superstição, alguém comentava. Afinal são só trinta metros, sempre se desculpou. O vulto que o esperava na escadaria da porta principal intrigou-o. Fechou os olhos e parou. Teve uma vontade enorme de voltar para trás, mas hesitou. O pastor belga, parou e sentou-se ao seu lado e, com a língua de fora, olhava para onde D. Bonifácio olhava”.

Entramos no museu e visitámo-lo em silêncio. Isso faz com que não posso continuar a falar do meu amigo Eduardo. Fá-lo-ei, com certeza numa próxima oportunidade.


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

173. O Fagundes, um amigo de D. Micá.


Encontrei o Fagundes. Anda feito um maltrapilho. Ele que era todo cheio de nove horas andava no centro da cidade de calções velhos, chinelas havaianas, uma camiseta amarrotada e absolutamente despenteado. Pareceu-me ver até uma nódoa na t-shirt, mas podia não ser, podia ser reflexo das estampagens. Quem o viu e quem o vê. Por sinal eu ia acompanhado da Catarina que é toda avantgarde e que não liga nada ao como os outros se indumentam, pois, na verdade, a Catarina é um bocado narcisista e adora ser o centro das atenções e é com ela que se preocupa. Falarei mais da Catarina pois ela é muito boa moça e eu gosto de algumas das extravagâncias dela. Fiquei a cismar foi no que iria pensar a D. Micá se visse o Fagundes naqueles preparos. Cumprimentou-me com um aperto de mão pouco másculo, o que me deixa sempre a impressão de que estou a apertar um pedaço de plasticina, e perguntou-me «tens lá ido?». Pensei alguns segundo sobre a que é que ele se referia e percebi, então, que falava dos serões de D. Micá. «Tenho», respondi, «e tenho também estranhado a tua ausência».

D. Micá continuava, serena, a contar a sua história da noite e foi logo avisando que hoje, porque a história era comprida, iria fazer um intervalo na narrativa para bebermos um leitinho com chocolate, ao que foi saudada com um sorriso por todos os homens que lhe levantaram os seus copos de whisky e de vinho do Porto e alguns acentos de cabeça das senhoras presentes, até mesmo da sirigaita da Geninha que já tinha virado dois shots de vodka e da maravilhosa, ingénua e pura Luísinha Monteiro que só bebia champanhe, pois fora criada com a sua tia Natércia que viveu em França muitos anos, com o Conde Gerard Blanchet, da famosa família dos Blanchets, vinicultores em Reims. Fiz-lhe sinal que no intervalo do conto tinha urgência em falar-lhe e assim entre dentes fui avançando «… é o Fagundes».

«Aristides tinha sido um próspero industrial têxtil, mas desde que a globalização se tornou uma realidade, com os preços das confeções made in China ou made in Indonesia começaram a cair, que os seus negócios sofreram um forte abanão. Era coisa que ele nunca pensou que lhe pudesse acontecer, visto que o seu avô tinha investido em maquinaria de primeiríssima geração e construído um império. D. Bonifácio d’ Assunção conhecia-lhe bem a história de vida. Um estroina, o pai de Aristides, nunca ligou nenhuma importância ao negócio do velho, nem tão pouco à educação dos filhos. Uns emigraram e outros disseram adeus à indústria têxtil, já em decadência, sem dizer nem água vai, nem água vem, sem prestar mesmo nenhuma satisfação ao mano Aristides. Mas Aristides não. Lutou com quantas forças tinha, renovou stocks, contratou estilistas e entre lágrimas de sentimento, pois já estava acostumado aos barulhos que produziam, foi mandando, pouco a pouco, a velha maquinaria do avô para a sucata. Vieram até do Japão os engenheiros para montarem o equipamento todo novo. Era o orgulho de Aristides. Mas nem assim se aguentou. Os juros a pagar pelos empréstimos contraídos, a mercadoria a escoar cada vez menos devido ao enfraquecimento do dólar e de outras moedas dólar-dependentes, deitaram abaixo o bom do Aristides. Despediu o pessoal, vendeu as máquinas, fechou a fábrica. Pôs as contas em dia e fez alguns telefonemas. Hoje Aristides é o motorista de D. Bonifácio da Assunção, um velho amigo com quem fez o serviço militar. Aristides, travou lentamente e parou o Rolls Royce em frente ao portão. Ele conhecia-o bem, embora lá tivesse ido poucas vezes. Não se via o número, nem era preciso. Aproximaram-se algumas lanternas no escuro e ouviu-se o ladrar de cães. Ao longe, o eco ou outros cães respondiam à algazarra dos lebréus».

Não, não foi aqui que D. Micá fez intervalo mas como a história desta noite está para lavar e durar vou interromper a sua narrativa para vos contar o que falamos do Fagundes. Naquele dia não me pude alongar muito em conversas. A presença de Catarina foi um bloqueador e agora, posso dizer-vos que lhe estou agradecido. É que tudo isto contado por D. Micá tem muito mais sumo. Graziela, a mulher do Fagundes, a quem aliás todos davam os parabéns pelo casamento que fez, pois Graziela era tida como uma verdadeira rapariga de família, o pai era gerente bancário e a mãe solicitadora, classe média, remediada, sem propriedades de família mas com rendimentos que lhe puderam dar uma educação de que se orgulhavam, parece ter posto o pé na argola. E, segundo consta, foi lá em casa, na casa da D. Micá que tudo começou. Ela explicou-me assim: O Fagundes depois de acabar o curso de professor de Geografia e História teve a sorte de ser colocado numa escola secundária perto de casa. No primeiro ano correu tudo bem, mas no segundo ano de casados, o desgraçado fora deslocado para Santarém. Ao princípio ia e vinha todos os dias de carro, mas a despesa em combustível estava sempre a aumentar e ele acabou por alugar um quarto perto da escola. Um quarto exíguo, muito mal decorado, mal cabia uma cama de corpo e meio, umas cortinas escabrosas castanho-escuras, as janelas rangiam ao abrir e vedavam mal quando fechadas, um tapete nos pés da cama e uma cómoda que servia também de mesa-de-cabeceira, era tudo o que tinha de mobília. A casa de banho era partilhada com a idosa, dona da casa, que vivia só com um papagaio que se chamava Jacó. E ali passava as noites de segunda a sexta-feira o professor Fagundes, a preparar lições, a corrigir pontos de Geografia e de História, umas vezes a rir à gargalhada com certas respostas dos alunos, outras com uma raiva a que se somava a saudade por Graziela, a inquietude, a dúvida. Mas às sextas-feiras, mal o toque de saída soava às cinco e meia da tarde, metia-se no carro onde previamente já tinha arrumado a mala da roupa suja e corria para os braços de Graziela.
Fagundes não vinha aos serões de D. Micá. Os serões eram, e continuam a ser, às quintas-feiras e durante todo esse ano letivo era exatamente às quintas-feiras que mais lhe batia a nostalgia, saudades daquele salão do palacete da Lapa. Mas o Fagundes não era rapaz de muitas borgas pelo que, nesses dias de quase depressão, desligava o rádio a pilhas (Fagundes detestava a televisão), tapava a cabeça com o lençol ou com o cobertor conforme os caprichos atmosféricos e adormecia a sonhar com histórias cor-de-rosa, com leite com chocolate, com pianos brancos incrustados a Swarovsky, com a sua linda Graziela. Graziela, por sua vez tinha encontrado em Faria o consolo para as ausências do marido. Passava os serões de quinta-feira na conversa com o Faria, um estudante de engenharia aeroespacial, amigo do Eduardo Aragão, só interrompendo para aplaudir alguma peça ao piano ou algum trecho na guitarra portuguesa, quando o Bruninho, o garoto dos Mendonça nos fazia companhia ou, obviamente, durante as narrativas, intensas, emocionantes, de suspense ou de fazer chorar, contadas pela melhor contadora de histórias que alguma vez se ouviu em Lisboa. Quando Eduardo introduziu o Faria nas soirées culturais de D. Micá, todos ficavam espantados com a verve do estudante, projeto de expert na NASA, filho de famílias abastadas, eloquente no falar, D. Juan na arte de cativar o belo sexo. Quando pela primeira vez Graziela mostrou os seus seios nus ao Faria e mais que o pudor impediu D. Micá de me contar, verificou que o quarto onde este morava era ainda mais modesto do que o que Fagundes arrendara em Santarém. E se Fagundes tinha um apartamento agradável, a ser pago em prestações é verdade, ao Montepio, com máquinas de lavar loiça e roupa, frigorífico e micro-ondas, internet wireless, um dálmata de porcelana no hall de entrada que lhes ofereceu a sogra, um conjunto de sofás, uma estante de parede a parede e um candeeiro de pé, comprados no IKEA, um pequeno bar com algumas garrafas de bebidas espirituosas, uma varanda com vista para a baía do Seixal, uma cama em MDF lacado, duas mesas-de-cabeceira, um guarda-fato onde Graziela mantinha impecáveis os seus dois únicos fatos, alguns pares de calças, um blaser azul-escuro com botões de latão amarelo, com uma fateixa em relevo, dois pares de sapatos pretos de atacadores, exatamente iguais, uma dúzia de camisas, sendo algumas de manga curta e alguma roupa casual como várias camisetas, uma das quais oferecida pela organização da meia maratona de Lisboa e outra da Escola Básica 2 + 3 da Arrifana, onde um dia foi com uns alunos numa visita de estudo e onde lhe foi oferecida além da camiseta, também uma caneca de barro com a menção Recordação do Algarve, já o Faria não tinha nada de seu. Os fatos que costumava levar aos serões de D. Micá eram alugados a uma senhora que fazia arranjos e que depois dos alugar, à revelia dos seus verdadeiros donos, acendia uma velinha a Nossa Senhora para que fossem devolvidos em condições e a quem o Faria já devia mais de três alugueres, o rapaz não era estudante de coisa nenhuma, era trolha numas obras em Santo António dos Cavaleiros e o perfume que costumava usar, era dos frascos de exposição numa perfumaria de um centro comercial, próximo da loja da senhora dos arranjos. Mas Faria era um Adónis e cheirava bem. E, para quem era um simples alisador de massa de cimento contra tijolo, falava como um doutor, ou, para ser mais preciso, como um futuro engenheiro aeroespacial. Graziela fugiu com ele para parte incerta. O pior foi que, para comprarem os bilhetes de avião, tiveram de vender o recheio da casa e dos armários. Nem os dálmatas escaparam, disse-me a D. Micá. Deixaram uns calções, uma t-shirt e um par de chinelas havaianas. Eu acrescentaria que a blusa tinha uma nódoa.