segunda-feira, 29 de agosto de 2011

61. Prevenido




Assisti, emocionado, ao despiste fatal que culminaria na morte de Airton Senna, tal como, uns anos mais tarde, não menos emocionado, veria as imagens do fatal acidente que levou a princesa Diana do mundo dos vivos. Se disseram algo antes de morrerem desconheço. É provável que Airton, tenho ainda conseguido dizer algo para a box da equipa ou que Diana tenha dado algum grito de desespero quando pressentiu que o carro onde seguia seria levado a embater contra a parede, pelo motorista belga do seu Mercedes topo de gama.

Quem tem a certeza do que se passou com um tio meu já em segundo grau, foi o meu pai e seu sobrinho direito. Esse nosso tio, ainda os automóveis estavam a léguas de terem as performances dos dois malogrados acima referidos e tempos eram que os limites de velocidade eram cumpridos pela generalidade dos automobilistas, já ele gostava de meter o pé no acelerador qual Fangio, em corridas de fórmula 1 transmitidas a preto e branco pela RTP. Pois o nosso tio Anastácio viria a acabar os seus dias, numa curva da estrada, de tal modo inesperada, que morreu sem dizer piu.

Não admira pois, que este medricas que aqui vos escreve, que até a andar de elétrico tremia e chorava de cada vez que era obrigado a entrar num transporte publico, não admira pois, dizia, que o pai dele quando entraram no táxi no Cais do Sodré para os conduzir à Rua Marquês de Ponte Lima onde morava o seu tio António, depois de uma monumental birra de choro no cacilheiro, só se tenha calado quando o pai dele o mandou dizer piu em cada curva das ruas Lisboetas. A admiração do chaufeur de praça só foi possível porque não conhecia a história do tio Anastácio.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

60. Figos



No quintal dos meus vizinhos há uma enorme figueira. Tão grande ela é que, enquanto do outro lado da rua já se fazem sentir os vinte e sete graus desta manhã de pico de verão, aqui no alpendre do meu quintal, a doçura dos vinte graus e onde não se descortina nem uma brisa, permite-me escrever-vos esta história. Eu percebo muito pouco de figueiras e não faço ideia se é pelo facto do quintal dos meus vizinhos ser um pedaço de terreno mais ou menos abandonado, determinado pela idade dos donos e pelo desinteresse dos herdeiros, o que fez com que a figueira há muitos anos não seja limpa, a verdade é que este ano quase não tem figos e os que estão mais apetecíveis se encontram nos ramos mais altos, apenas ao alcance de pardais, melros e rabilongos.

O mesmo não se poderia dizer das figueiras do campo dos parrecos. Ai não se podia não. Que o diga o Carlitos e o seu gordo amigo Eduardo. Aquilo é que eram figueiras, todos os anos carregadinhas, umas de figos de São João, grandes e negros por fora, porque por dentro eram de um cor de rosa mel, se é que esta cor existe, mas a cor e o sabor confundem-se algumas vezes. Outras, com o belo figo da capa rota e ainda algumas de figo moscatel que se comiam já o Agosto ia largo. O pior é que este maná ficava no campo dos parrecos. E o campo dos parrecos ficava longe de casa, uns bons quinhentos metros, por veredas e no meio de quintas. Se a eira que ali se fazia era excelente para jogar à bola, a verdade verdadinha, é que a mãe não queria os filhos tão longe, queria-os bem à vista e se hoje se fala em malandragem e criminalidade, nesses tempos já se falava dos teddyboys, não sei se se escrevia assim, que raptavam criancinhas. Mas, e os figos?

Quando o pai chegou a casa, depois de mais um árduo dia de trabalho, o Carlitos não estava em casa. A mãe, impotente para fazer mais do que isso, queixou-se ao pai. O pai saiu disparado direito ao campo dos parrecos e, do alto de uma imponente figueira ouviu primeiro o Eduardo dizer, uns ramos mais abaixo, que por ser gordo não podia mais subir, olha aquele ali tão madurinho e o Carlitos, esse sim bem lá no topo, responder, deixa estar que eu apanho. Não sei se ele pulou ou se voou, o Carlitos deixou de ser visto no cimo da figueira, ouviram-se os passos rápidos de uma criança de sete anos correrem entre o rastolho do trigo já ceifado, o Carlitos entrou esbaforido em casa e foi esconder-se debaixo da cama. Ele nem viu o pai. Apenas ouviu uma voz grossa, cem por cento familiar, dizer cá de baixo. Ai apanhas, apanhas.


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

59. Um dia diferente dos outros



É sempre assim todas as manhãs. Enquanto ainda está estremunhado, esfrega os olhos, levanta a cabeça para olhar o mostrador digital do despertador, solta um palavrão porque é sempre mais tarde do que pensa ser, levanta-se num ápice, dirige-se à cozinha para ligar a máquina do café, espreita o estado do tempo pela janela semi-aberta e vai à casa de banho. Como ainda não acordou, lava a cara com água fria, muitas e muitas vezes seguidas e depois conversa um pouco com o espelho. Escanhoa-se sempre de gilette - há muito que abandonou a máquina de barbear cujo zumbido era como que uma canção de nanar – normalmente prolongando por mais uns minutos a conversa com a sua imagem, coloca o dentífrico na escova, molha a escova na torneira, o dentífrico cai na bacia (porque é que ele repete um gesto que ele próprio considera estúpido e que tem tantas vezes a mesma consequência, não o sabe explicar), repete a operação, lava os dentes, desta vez sem olhar o espelho, pudera, não quer ser criticado. Volta à cozinha, prepara a bica matinal, come uma bolacha de cereais integrais sem açúcar, mastiga devagar apesar de se ter levantado tarde, liga o computador com a chávena do café na mão, bebe-o devagar, saboreando-o enquanto o Windows se inicia. Abre as primeiras páginas dos jornais, principalmente os desportivos, quer ver o que é o que dizem do seu Benfica. Vai ver se os gatos gastaram as munições todas durante a noite, nutre-os e põe-lhes água fresca nos bebedouros. Toma um banho de água tépida, limpa-se cuidadosamente, veste uma camisa branca sem gravata e as suas melhores calças jeans, sapatos de ténis azuis, come uma maçã descascada e um iogurte, coloca um boné de basebol, verifica se desligou o esquentador, a máquina de café, o computador, as luzes e se fechou as torneiras. Volta à cozinha de onde pega no saco plástico preto que tinha preparado previamente, sai e dá quatro voltas à chave. Dirige-se à paragem do autocarro que deve estar a chegar. Faz sinal de paragem com uma mão enquanto a outra segura o saco de plástico preto, mostra o passe e senta-se. Tira do bolso um pequeno rádio transístor com um auscultador mono que enfia no ouvido esquerdo e bate com o pé direito no chão como que a marcar o compasso. Sai na paragem mais próxima do jardim para onde se encaminha ainda de transístor ligado. Quando os primeiros pássaros se aproximam desliga o rádio, tira do saco o pão desfeito e o milho partido. Aos poucos, sente-se rodeado por dezenas de pombos, pardais, patos, gansos, cisnes e outras espécies que ele saberia nomear. Quando se lhe acabou a ração, pediu desculpa às aves porque essa tarde não poderia voltar ao jardim. Era o dia do seu aniversário. Nessa tarde iria à pastelaria, comeria um bolo com muito creme e beberia um copo de café com leite e nem pensaria no colesterol. Se sobrassem migalhas trá-las-ia no dia seguinte.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

58. O Athaíde


Não me lembro de ter tido um amigo tão pouco eclético. Aliás a palavra eclético fazia-o mesmo suar, de odiosa que era para ele. Por exemplo o Paiva. O Paiva não. O Paiva vai para o trabalho, impecável no seu BMW série 5 e vestido quase sempre por George Armani, mas quando chega a hora do almoço, corre em calções e t-shirt pela marginal ou, nos fins de semana, está nas escaladas e no rafting. Ou o Gonçalves, sim o Gonçalves, aquele meu amigo que tem imensas caraterísticas de intelectual anos sessenta, não é raro vê-lo percorrer dedo após dedo os vinis que cuida religiosamente para ouvir um trecho dos Procol Harum ou mesmo a passear Jean-Paul Sartre pelo Magestic e, no entanto, cede facilmente aos caprichos da Rita, com quem casou por amor, claro, e aguenta-se desde manhã cedinho na fila da FNAC para comprar, com três meses de antecedência, bilhetes para o concerto de Toni Carreira no pavilhão Atlântico.

Quando pediu ao Tomás que parasse o Mercedes na estação de serviço de Grândola, o motorista pensou que o Athaíde (a quem sempre chamei Pedrito) fosse fumar o seu Montecristo número 3, já que nunca o faz no carro, ou que fosse apenas sair com a senhora D. Helena (como o Tomás sempre se refere à patroa) que, desde nova, sofre de claustrofobia. Afinal foram à loja de conveniência comprar qualquer coisa que o Tomás não se apercebeu, mas que seria para fazer uma surpresa ao Constantino (ele sempre me chamou assim).

O Athaíde era o menos versátil de todos os meus amigos. Não emprego aqui de novo a palavra eclético para que ele, lá onde Deus o tem após o fulminante enfarte que o levou, o ano passado, da nossa companhia, dizia, para que ele se não arrepie. O senhor Pedro de Athaíde, sua excelência, só ouvia música clássica fosse no carro ou fosse em casa, ou então ópera da qual era um amante incondicional. A abertura das temporadas no S. Carlos ou na Gulbenkian, onde era mais conhecido do que Mahler ou Stravinsky, nunca foram perdidas nos últimos vinte anos antes de falecer. Porque controlava totalmente os seus horários, assistia à abertura da época no La Scalla em Milão, onde, não sei como nem por que por artes, tinha como que lugar cativo. Mas nem só de música se alimentava Pedrito. Aliás o Pedro de Athaíde foi o maior gourmet que alguma vez tive como amigo, comia nos melhores restaurantes de Portugal – ele dizia e do mundo – era amigo pessoal de Ferran Adriá e de René Redzepi, presença assídua no Valle Flores e no Tavares e quando lhe dava na real gana, pegava em Leninha e viajava propositadamente a Copenhaga só para jantar no Noma. Pedro nunca entrou numa tasca e até o cheiro das iscas com elas ele abominava.

Pedrito olhou para a mesa de plástico, posta no alpendre do quintal. No grelhador já se aloiravam sardinhas do Algarve e os canjerões de tinto brilhavam no seu barro vidrado. Os pratos que ornamentavam a mesa eram de barro pintado e decorado, tipicamente alentejanos, comprados em S. Pedro do Corval, e os copos eram pequenos e finos trazidos do Cartaxo. Apesar dos trinta e dois graus centígrados, o Athaíde não desapertou o nó da gravata. Perguntou onde é que nos sentamos e antes de tirar o casaco, piscou o olho a Leninha e pediu ao Tomás o envelope que lhe tinha dado a guardar na estação de serviço. Entregou-me um CD de Quim Barreiros e disse-me que nem admitia comer sardinha assada sem uma música de fundo.  


sábado, 13 de agosto de 2011

57. Slogans


Ah, ah, é um Grundig e, nova não, foi lavada com Extra, são frases publicitárias. Estas, por acaso são da minha juventude e de vez em quando ainda as uso. Sejam deste tipo ou ditas por humoristas na televisão, acabam por nos acompanhar toda a vida. Quando vejo uma moça em t-shirt ou em biquíni, vem-me logo à memória o anúncio de um aquecedor SuperCer, a menina não tem frio? ou, quando vou ao telefone e alguém passa a minha chamada eu, se não o digo, pelo menos penso, muito “agardecido”, como dizia o grande Raul Solnado. Pensarão vocês que isto só me acontece por motivos, como o comediante José Raposo tentou introduzir e que não sei se vai pegar mas, dir-vos-ei que, se não é por motivos, é mesmo porque para o meu bem estar isto é Bosch, é bom!

Eu e o meu mano éramos os putos mais requisitados para casamentos. Chegamos mesmo a ser os únicos miúdos no casamento de uns amigos dos meus pais. Casou a Tiginha, estávamos lá. Casou a Franquelina, estávamos lá. Casou a Mariana, estávamos lá. Casou a Bolívia, estávamos lá. Quase sempre os dois, de fatinho branco a entregarmos o ramo à noiva. Às noivas! Mais crescidos, casaram os tios mais novos e nós lá. Casaram os primos, as primas e até os filhos dos primos e nós lá. Casaram amigos e nós lá. Escusado será dizer que também estive presente no meu próprio casamento.

Pois, assim sendo, seria impossível não estar presente no casamento da Rosa Grande. A Rosa tinha quase um metro e oitenta o que, na época em que as portuguesas eram conhecidas por serem pequeninas, era uma gigante. Quis o destino que a Rosa Grande se apaixonasse pelo Filipinho, cujo nome na conservatória era Filipe Carlos da Anunciação de Maria e Silva, nome inversamente proporcional à sua altura. Nos seus (dele) um metro e cinquenta e sete, a Rosa Grande cada vez que saía de mão dada com o namorado parecia que ia a passear o filho. No altar e esta ninguém me contou, pois papei os casamentos daquela gente toda, quando o padre perguntou à Rosa se aceitaria Filipe Carlos para seu noivo, ela disse que sim e acrescentou é tão giro ter um mini.


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

56. Meu querido mês de Agosto



As raízes que ele tinha com a terra foram criadas no mês de Agosto. Os pais, ainda novos, emigraram para a Alemanha fugindo à fome e à miséria que grassava pelos confins do Alentejo nos tempos em que Salazar apregoava a paz e a prosperidade do seu país. E foi na Alemanha que nasceu e cresceu. Quando fez dez anos de idade, já com o antigo regime deposto, veio pela primeira vez a Portugal. Estavamos no mês de Agosto.

A dificuldade na aprendizagem da língua e não qualquer outro sentimento de preservação cultural da identidade, coitados nem sabiam o que isso era, fez com que em casa só se falasse português. É assim que Mikael Romão, nascido e criado em Dortmund, mas de cor tigenada e olhos castanhos, aparece na aldeia a falar um português, não perfeito como não poderia deixar de ser, mas com o sotaque das suas gentes, com o carregado do Baixo Alentejo, com algumas das expressões idiomáticas e tudo isso apurado por cada mês de Agosto que aqui passava, na modesta casa de telha lusa e tetos de caniço da sua avó paterna. E se não fosse por outra coisa, as moças de ar trigueiro e face rosada, que ”ballhavam” ao som da concertina, em frente à Casa do Povo, todos os anos pela festa da aldeia, obrigavam-no a contar os meses e os dias para cada regresso às berças.

Carlota tinha crescido, desde a primeira vez que o seu coração tinha palpitado por ela. Ele não se lembra se foi aos treze ou se foi aos catorze anos que reparou nela pela primeira vez. Carlota vivia na aldeia, era filha de pais remediados que tinham qualquer coisa de seu, umas rendas de umas casitas que os avós lhe deixaram. De uma máquina ceifeira debulhadora, que comprara com a ajuda dos pais e de um fundo agrícola, e que ela manobrava tão bem como qualquer homem, fez o seu ganha pão diário, trabalhando sol a sol para os fazendeiros. Isso tudo junto permitiu a Carlota, agora na casa dos vinte e um anos, nunca sair da aldeia. E como Carlota bailava bem! Um dia, mais afoito, com o seu grande amigo Zé Simão, enquanto no palco os Tubarões do Ritmo ensaiavam uma moda brejeira de Artur Gonçalves e Carlota dançava com Januária, aproximaram-se das duas e, com olhar matreiro, ele perguntou-lhes, as meninas apartam? Estavamos em pleno mês de Agosto.

PS. De hoje em diante, o autor assina os textos e as fotos com o seu próprio nome. Quem se acostumou a chamar-me Constantino (e os mais antigos Pre) pode continuar, obviamente, a fazê-lo.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

55. Noites de lua cheia



Luís Gustavo não se conformava. A sua infância tinha sido passada na casa da avó em Borba numa quintinha com muitos pássaros e pinheiros. Mais tarde, quando os pais adquiriram dois lotes de terreno na Verdizela e mandaram construir uma vivenda de quatrocentos e cinquenta metros quadrados e deixaram o outro tanto para o livre arbítrio da utilização dos filhos, ele e o irmão quase que chegaram a vias de facto. Um a querer um court de ténis, o outro, um campo de futebol. Salomonicamente os pais mandaram fazer uma piscina e rodearam de verde a anil fonte de húmidos mergulhos.

Luís Gustavo casou com Camila, uma citadina, e foram morar num apartamento em Telheiras. Os acabamentos eram de primeira categoria, a casa tinha madeiras exóticas no soalho, a cozinha era ampla, muito bem equipada e com uma ilha para os mais requintados cozinhados. No quarto um Led TV na parede, e espaço para ensaiarem uma salsa ou um tango figurado. A sala de estar era digna dos príncipes de Gales e Camila não trocaria assistir a um concerto para violoncelo e piano naquele salão, em detrimento de qualquer convite para Buckingham. Todavia, as reuniões de condomínio, que abominava, e o barulho do elevador pela manhã ou às sete da tarde, quando chegava a casa, perturbavam-lhe o sistema nervoso. Luís Gustavo não hesitou. Quando viu aquele anúncio de mansão na Ericeira, à venda no Diário de Notícias, precipitou-se. Seria a sua nova casa.

Na vila, quando Luís Gustavo perguntou pela propriedade o ar tornou-se denso. Num ambiente pesado todos olhavam uns para os outros. A casa assombrada ia finalmente ter dono. É verdade que a mansão precisava de obras, mas Luís Gustavo já se via como produtor de peras e ameixas, tal era a extensão do terreno, o velho tanque seria recuperado em piscina para os netos e a casa, mais cedo ou mais tarde, seria o orgulho dos Lencastres ou não fosse ele um Luís Gustavo de Borba e Lencastre, parente em quarto grau do Visconde do Alandroal. O que mais o incomodava era a assombração de que todos falavam. Foi num dos momentos de visita à propriedade que interrogou o velho caseiro, com quem já tinha assumido o compromisso de que o deixaria viver até ao fim dos seus dias no velho casarão, que era também serviço de cavalos e outros equídeos, sobre a existência de fantasmas na mansão da vila. O velho não só negou que lá existisse semelhante coisa como pensou com os seus botões, que nos quatrocentos anos que ali viveu, nunca viu nenhum fantasma.

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domingo, 7 de agosto de 2011

54. Couratos



O Manel Francisco andava mostrando, pelas mesas dos mais conhecidos, a saia com forro de cetim e sobressaia em renda tipo cortinado, com rosas brancas aplicadas, de certeza made in China e ainda um par de sabrinas brancas com apliques verde alface com solas brancas e salto verde da mesma cor dos apliques, que lhe tinham saído nas rifas da quermesse. Mais tarde vi o Zé da Isaura do Cabeço, já cambaleando dos púcaros de tinto que tinha bebido ao balcão, exibir uma caneca de loiça das Caldas com brinde e tudo, quer dizer, completa com o respetivo pai da humanidade a florescer do seu interior e uma moldura em madeira de pinho, com um recorte de revista, a servir de modelo, de uma fotografia anos 60 de Brigitte Bardot. As quermesses na minha terra servem para angariar fundos para a Comissão de Festas, porque o aluguer dos conjuntos de baile não é barato. Os prémios que saem nas rifas são iguais em todas as quermesses de todas as festas de todas as aldeias, mais pénis, menos pénis.

O pai de Fábio Lagarto leiloava, numa pausa da música, uma garrafa de whisky e um bolo. Pelo aspeto, dizia ele, aquilo valia muito mais de vinte euros. O lote foi arrematado por dezasseis a um emigrante em França depois de um gajo do Benfica ter chegado até aos quinze. E não há aí ninguém do Sporting para dar mais? perguntava o pai do Fábio que se confessou benfiquista, pois embora Lagarto ele era um lagarto vermelho e ele há lagartos de muitas cores, palavras do pai do Fábio. Este, o filho, continuava com o órgão e o sintetizador a dar-nos kizomba, a mamar nas tetas da cabritinha e a perguntar quem é que era o pai da criança. Um par, de certeza que não ensaiado nos Alunos de Apolo, mas talvez em casa em frente ao espelho, não deixava os seus créditos por mãos alheias, quero dizer pernas alheias e dava um show de rock ‘n roll ao som dos acordes de uma salsa. Os outros dançaram, alguns muito bem, boleros, valsas e até o cheira bem, cheira a Lisboa, durante a noite inteira.

No bar, alguém perguntou ao Joaquim Branco se ainda havia bifanas. Que pena, tinham acabado, hoje as bifanas saíram muito bem, mas olhe que ainda temos couratos e entremeadas. A freguesa torceu o nariz, era algo que não lhe estava a agradar. E sandes? Têm sandes? Sim, amiga (com sotaque), temos sim senhora, respondeu o Joaquim Branco. Temos sandes de couratos e de entremeada, disse sem hesitar o Quim, um empregado ao vosso dispor.

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