(ou a santa paciência para ler textos de duas páginas A4 num blog)
Quando o inspetor Ismael Sacadura Flores começou a dissecar,
um a um, os personagens e o seu possível envolvimento no crime que vitimou
Isabella Vicentini, fê-lo na tasca do meu amigo Ismael Gusmán, como todos já
sabem e nem noutro local poderia ser, já que esta narrativa se passa fundamentalmente
à volta da taberna, à volta de Ismael e à volta da minha cabeça, deixando-me
por vezes com a dita às voltas. E a primeira referência que o Inspetor fez foi
à nossa bem conhecida Fernandinha, autora dos melhores pastéis de bacalhau que
já alguma vez alguém presente neste conjunto de contos saboreou. Disse-me
Fernandinha uma vez, que o segredo não estava apenas no bacalhau nem no modo
como se confecionam, mas essencialmente na qualidade da batata, sem nunca me
ter dito qual era a espécie de tubérculos que usava na sua (deles, pastéis)
elaboração. Todos sabemos que há pessoas que só passam segredos de pais para
filhos, por mania ou por tradição, vá-se lá saber porquê, mas que, para já, não
vem ao caso. Tudo o que agora vai ser escrito, não é imaginação do narrador,
antes porém fora argumentado por Ismael Sacadura Flores, que até ousou acender
um charuto que deixou roído de inveja o Dr. Ismael ben-Avraham, a quem teve o
descaramento de pedir lume. Com o seu porte altivo, o ar superior de quem
desvenda mistérios, nem que para isso lhe tenha servido de inspiração a alcova
da melhor escritora de manuscritos confusos de que há memória na história dos
romancistas e, diria mesmo, superiormente ajudado pelo cheiro do arroz de
grelos com pataniscas de pescada, que tão bem era servido naquela tasca do meu
amigo Ismael Gusmán, falou sem ser interrompido e, quando alguém fazia tenção
de o fazer, lá estava ele a esticar o braço, autoritário, com um só gesto mandando-o
(ou a) sentar ou calar, conforme a amplitude, direção, raio de ação e
verticalidade do movimento e a graciosidade do gesto, ouvindo-se então apenas um
abafado balbuciar. E continuava, altaneiro, com o seu discurso direto. Vamos
então, que já é tempo, ler o que ele, naquele dia, disse sobre Fernandinha.
Fernandinha foi-nos apresentada pelo nosso escritor do
romance policial e narrador dos contos à volta de um carapau de escabeche já os
anos setenta estavam nos seus meados. Nessa altura, Fernandinha era ainda uma
jovem e roliça beirã que, enganada por um conde francês na região de Marselha,
de quem foi criada de servir e a quem destruiu uma boa meia dúzia de garrafas
de vinho tinto, caríssimas por sinal e pertencentes à sua coleção particular,
se viu impelida a regressar a Portugal. Quis o destino que depois de acolhida
por uma amiga da família, moradora na Rua da Madalena, paredes meias com o
Largo do Caldas, também ela ex-emigrante e regressada a Portugal logo depois do
25 de Abril de 1974, cheia de esperanças num outro Portugal mas de que não vou
esmiuçar nesta análise, tivesse vindo a habitar, um anexo da moradia de uns
senhores que eram comerciantes de móveis, em plena Quinta do Conde, onde, todos
sabem, moram ou moraram muitos de vós aqui presentes e outros que não chamei,
mormente alguns amigos do narrador e um carpinteiro que lhe costuma fazer as
molduras para as suas telas a acrílico, já para não falar de primos, da
veterinária, de alguns amigos da infância e da adolescência, pois não fazem
parte desta história.
E continuou Ismael Sacadura Flores, o nosso inspetor,
empolgado com o seu discurso e deixando rostos de admiração à sua volta e
algumas vontades de interrupção de quantos o escutavam com suprema atenção e
sem perder o mínimo detalhe.
Por outro lado, Fernandinha dorme numa pensão de um
tradicional bairro de Lisboa, não só conhecido pelo fado, canção que virá a ser
daqui a muitos anos património imaterial da humanidade, que aí se canta, mas
também pelas costumeiras cenas de faca e alguidar, com um tipo rico da alta
finança, que como quase nenhum de vós imagina, viria, mais tarde, a ser
envolvido num escândalo de vidas depravadas e pedofilia, conhecido por ballet rose, prontamente abafado pelas
autoridades, exatamente na noite em que se veio a consomar o crime que, como é
do vosso conhecimento e também do conhecimento futuro de quem comprar este
livro ao nosso putativamente ilustre narrador, aqui nos trouxe, já que não é
minha intenção repetir que foi perpetrado na pessoa da malograda corista que
apanhou, sete facadas, quase sem saber ler nem escrever, pois eventualmente,
dir-nos-ão os relatórios da Medicina Legal, só terá sentido a primeira.
Neste momento o narrador abana a cabeça num gesto de desagrado
pois se não queria repetir, repetiu, o que, sabe o narrador de fonte segura,
maça de sobremaneira os seus leitores, enquanto Ismael Flores já se via com ar
triunfal a sentenciar e Fernandinha, de cabeça baixa, roía as unhas.
Pois minhas senhoras e meus senhores, deu uma gargalhada
quando disse isto, vá-se lá saber porque é que as pessoas quando se sentem
triunfantes, quiçá até de costas quentes, dão gargalhadas e, virando-se para
Francisca, exclamou, isto é tudo falso! Ou, se quiserem, sem tantas
considerações de permeio, com vírgulas e tudo, o que o inspetor Ismael S.
Flores disse foi o seguinte: «Pois minhas senhoras e meus senhores, isto é tudo
falso!». E então aqui que ele dá a tal gargalhada enquanto se voltava para
Francisca.
Ouviu-se um longo bruá na sala. Durante a pausa que concedeu
ao seu discurso, Ismael Sacadura Flores com o evidente intuito de saborear esta
sua pequena vitória, já que ao longo da tarde-noite outras estariam para vir,
foi intenso o burburinho e o sussurrar entre os presentes. Ismael Gusmán serviu
uma rodada de tintos aos homens e abriu uma garrafa de gasosa espanhola de litro
para servir às senhoras. Depois da pausa, continuou o nosso polícia mor, o
grande inspetor Ismael Sacadura Flores.
E a falsidade está na cronologia, que é como vocês também
sabem a sequência ordenada no tempo dos vários acontecimentos. Pois bem, já
perceberam que se em meados dos anos setenta Fernandinha era uma jovem e roliça
beirã, filha de emigrantes e também ela emigrante que cresceu em França para
onde foi levada em pequenina e a quem o narrador, também ele jovem
universitário, batia os olhos nos finais de tarde, quando passava para apanhar
o barco no Terreiro do Paço e que, por paixão de quem, ainda apanhou uma ou
outra piela, não acostumado que estava a beber e quando só o cheirinho do tinto
do Cartaxo já bastava para o inebriar, não poderia ser, ao mesmo tempo, vinte
anos antes, quando se deu o crime da Rua dos Correeiros, a bela jovem que se
encontrava enrolada em lençóis com um velho ricaço e porco fascista como se
veio a provar, a dormir ou a fingir que dormia numa pensão do Bairro Alto. E é
por isso que ilibo Fernandinha de ser autora ou coautora deste horrendo crime,
por aparentemente não passar de uma personagem de ficção, fruto não só da confusa
cabeça do narrador mas também das confusões temporais que surgem a quem escreve
para um blog, dia a dia, sem saber como é que isto poderá acabar. Mas há que
reconhecer, disse num aparte o inspetor, que assim, o autor encerra uma carga
dramática ao texto e testa também a atenção dos seus leitores. Posta que foi a
verdade sobre Fernandinha, ordeno-lhe que saia de imediato desta sala, que
regresse ao futuro, de novo aos anos setenta ma que, antes que saia, também lhe
ordeno que nos traga uma travessa dos seus deliciosos pastéis de bacalhau.
Confusos ficaram os presentes se o nosso inspetor gostava
mais de dar ordens em nome da lei ou de pastéis de bacalhau.
E no silêncio em que esta revelação os deixou só se ouviu na
sala o leve mastigar dos presentes e um estalo com a língua, que o inspetor deu,
depois de virar em jeito de penalti, o seu copo de três de vinho tinto.
Não tem razão o autor narrador quando duvida se o leitor o lê por favor e se tem a paciência devida para lhe engolir, de uma penada, tanta escrita.
ResponderEliminarTem sido leitura de agrado, pois acho que somos, mais ou menos todos, suficientemente masoquistas para o seguir, com atenção, suas escritas... Apenas uma coisa é intrigante: nunca faz notas, daquelas que esclarecem em pé de página uma ou outra passagem. Por exemplo fiquei mortinho por saber o que era lá isso de "pataniscas de pescada". Eu só conheço os filetes... mais nada.
(Ainda bem que a Fernandinha foi ilibada...)
Pela primeira vez virei um copo de três, na tasca do Ismael, tal como o Inspector o fez!
ResponderEliminarTal foi o meu alívio por ver a Fernandinha ilibada de crime tão horrendo e desumano.
Como sou uma mocinha cheia de paciência e muito curiosa, leio com prazer esta intrigante estória, mas não carece, por isso, o narrador/escritor de agradecer...isso faz parte das minhas diversões em tempo de lazer.
E eu que, ausente dos blogues, já não vinha cá há uns meses... Sempre um prazer lê-lo, independentemente das páginas que preenche!! Pena é que a acompanhar o divertido texto, não estejam também uns bolinhos de bacalhau (cá na minha zona, são bolinhos e não pastéis!) Não é que o texto servido não seja mais do que suficiente para nos saciar, mas porque fiquei com água na boca, rrsss Abraço
ResponderEliminarEu leio com imenso prazer e afinal tudo apontava para Fernandinha quando afinal "havia outros".
ResponderEliminarÉs fabuloso e continuo intrigada com várias coisas:):):)
Tudo o que tem sabor a bacalhau põe-me doidinho...cada um tem as suas taras. A minha confesso é o bacalhau. Cru, salgado, cozido, pataniscas, pasteis de bacalhau ou bacalhau de caldeirada...e o bacalhau assado na brasa com um molho especial de azeite quente e bastante alho a que se juntam dois pingos de vinagre e um ramo de salsa picada....
ResponderEliminarBom beber dispenso o álcool mas quando bebia haveria de saciar-me.
...E o crime...que importa lá isso...ele acontecem tantos e tantos... mais um ou menos um ...
Quando começaste a falar em dissecar, vi-me de novo nas aulas do Prof. Pinto da Costa (sim, o irmão do sabujo), mas trouxeste-me de novo para a cena do crime!
ResponderEliminarO crime, leia-se, foi quando a Fernandinha deixou de ser roliça!!
Isso é que foi um crime que devia ser investigado.
Um abraço amigo,
Pataniscas de polvo já comi, mas de pescada, não conheço. No entanto, com um penalty bem aviado, de certeza que deslizariam velozmente pela minha goela abaixo.
ResponderEliminarA sua excelente escrita, amigo, convida sempre a um belo acompanhamento. E até a Fernandinha, mesmo que muito roliça, seria certamente um belo digestivo.
Ai... e eu que tenho andado pouco pelas bandas da blogosfera, fiquei com tanta leitura em atraso... vou ter que voltar com calma para recuperar o tempo perdido...
ResponderEliminarjá tinha saudades de andar por aqui , mas o trabalho é o demonio que nao me deixa
ResponderEliminarkis .=)
Mas que machismo é esse? Vinho tinto para eles e GASOSA espanhola para elas?!? O Sacadura Flores que vá dar uma voltinha mais a sua gasosa, nem me faltava mais nada ser discriminada...
ResponderEliminarPor outro lado, normalmente nem é preciso o IML dizer que num crime, com várias facadas (ou balas), normalmente só se sente a primeira, talvez ainda a segunda... :)))
Quanto à reviravolta, pois, acontece quando se vai escrevendo histórias aos pedaços! ;)
Beijocas!
Pelo menos é boa cozinheira...*
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