Não sei se Isaurinha Bate-Sola matou ou não Isabella
Vicentini. Ainda não me decidi se a hei de crucificar em detrimento de outras
pessoas que já me passaram pela mente como presumíveis assassinos. Para dizer a
verdade, Isaurinha Bate-Sola não me é uma persona mui grata. Em primeiro lugar,
como todos sabem, por ter vivido com o meu amigo Ismael Gusmán, depois de este
ter ficado viúvo e, sem mais nem menos, bem calçada e bem vestida, se bem que
bem calçada não precisava que tivesse sido por obra do galego, pois lá em casa
o senhor Peres, o mais famoso sapateiro da Quinta do Conde, tratava ele próprio
disso, mas bem vestida sim, não lhe faltava nada, ia uma vez por semana ao coiffeur e à manicure, lavava, cortava ou fazia mises, era como ela quisesse, quis o cabelo à garçonne então cortou-o curto, quis vírgulas, então fê-las, quis
permanentes para ficar parecida com a Grace Kelly, ficou. A tudo o meu amigo
galelo dizia sim, e ela, coisa rara, tratava até das unhas dos pés, viram-nos
sair bastas vezes do Cineteatro Quinta-Condense e dizem, as alcoviteiras das
vizinhas, que numa noite ventosa de Outubro, chegou de táxi com Ismael Gusmán,
de vestido preto e sapatos de verniz e ostentando um bonito e caríssimo casaco
de peles, sendo que essas mesmas más línguas disseram que o «senhor espanhol,
estabelecido em Lisboa e com certeza bem na vida», a tinha levado ao Casino
Estoril. Pois se nada lhe faltava, de um dia para o outro pôr os cornos a «tão
boa pessoa», diz-se na vizinhança e eu corroboro, pois não deve haver no mundo
uma pérola de pessoa como era o meu amigo Ismael, ainda por cima um benfiquista
dos quatro costados, não pugnava nada pela sua, dela, reputação. Mas não foi só
por causa do que ela fez ao meu amigo Ismael que eu não topo, quero dizer não
gramo, aliás não curto, ou por outras palavras, deixando para trás o reles
calão empregado nos sinónimos, não vou muito à bola com a Isaurinha Bate-Sola. Foi,
principalmente, porque ela era uma verdadeira leviana. Porque é que ela, se
tinha deixado o Ismael porque, confessou até à Francisca, estava perdida de
amores pelo Sebastião e estar em casa, mais propriamente na cama com um homem
em cima, neste caso o Ismael e estar a pensar noutro, neste caso o Sebastião,
não era do seu feitio e que, portanto, o melhor era acabar de uma vez por todas
com o galego, retomo a pergunta, porque é que ela, se era assim como dizia,
enquanto catrapiscava o Sebastião, se deitava com o filho do Esteves? Pois é
uma pergunta a que não vou responder, se não tinha de perguntar e responder
também porque é que ela se deitava ainda com o Adalberto da pastelaria, com o
Quim da mula, com o Ferro-Velho e com, aqui já não garanto pois a vox populi é lixada, com o genro do Tio
Manel da retrosaria que, por acaso é muito bem casado com a filha deste, uma belíssima
costureira da Rua Direita. Pois, como disse no princípio, não gosto nada desta
Isaura Peres e se o seu percurso continuar a dar-me insónias, sem saber como
rematar o livro, uma vez que já tenho mais de cento oitenta páginas escritas e
quase prontas para edição, ponho a naifa na mão da Isaurinha, espeto no peito
da Isabella, uma duas ou três facadas fatais, pois a quarta já sabemos quem a
deu e arrumo logo a questão. Porque eu ainda tenho mais um motivo para dar como
assassina Isaurinha Bate-Sola. E esse motivo que se chama Sebastião, também se chama
ciúme. Tinha algum cabimento eu ter, ao mesmo tempo que arranjo namoradas atrás
de namoradas para Sebastião, posto mão com mão, mão com coxa, lábios com lábios
e outras coisas que aqui não se devem descrever, o Sebastião com a Isabella? Eu
já sabia que ia causar uma carga de ciúmes à Isaurinha e que isso podia dar
para o torto. Vamos lá a ver, a menos que entretanto me suja uma ideia melhor,
fica aqui a Isaurinha de reserva para matar a morta. Mas isto não acabou ainda.
Garanto-vos.
sexta-feira, 29 de junho de 2012
quarta-feira, 27 de junho de 2012
154. Ismael (67) - Uma questão de estilo
- Estou a gostar.
- Sério?
- Sério.
- Obrigado.
- De nada. Estou a ser sincera.
- Eu sei.
- Mas tenho uma crítica.
- Qual?
- A forma.
- A forma?
- Sim!
- E o conteúdo?
- Não. Para mim está bem assim. Está como combinámos.
- Mas há quem diga que estou a ser chato.
- Não está nada. Se já tivesse revelado o final também
não estaria mal, mas assim, como está a fazê-lo, parece-me bem.
- Então e a forma?
- É a escrita.
- O que é que tem a escrita?
- É simples demais.
- Achas?
- Acho.
- Mas é abrangente, ou para ti isso não importa.
- Não digo o contrário, mas a crítica…
- A crítica? A crítica literária, queres tu dizer…
- Sim, são muito exigentes, são a verdadeira ASAE da
escrita.
- Estás-me a querer dizer o quê? Que não posso usar
colheres de pau e tenho de forrar as cozinhas com azulejos?
- Exatamente.
- Palavras caras?
- Não só.
- Mais metáforas?
- Não propriamente.
- Intrigante…
- Nem por isso.
- Queres desembuchar?
- Alegorias.
- É uma falha, mas isto é só um policial igual a mais um
milhão e quatrocentos mil que já se escreveram.
- Não se minimize.
- Ok, um bocado enredado e que mais?
- Sinédoques, metonímias.
- Está bem, é verdade, mas ironia não falta, comparações,
eufemismos, imagens não faltam.
- E se bem que não descurou as exclamações nem as
perguntas de retórica, tem estado um bocado longe das apóstrofes e das
prosopopeias.
- Mas conseguiste descobrir zeugmas, anáforas,
hipérbatos, silepses?
- Nem por isso. Acho que trabalhou pouco as figuras de
construção.
- Posso dar a mão à palmatória mas não é nesta fase da
escrita que me vou empenhar mais.
. Nem eu lhe estou a sugerir isso, mas nunca se esqueça do
que dizia o Conde de Buffon.
- Mas eu não só não estou a lutar para a posteridade como
também, não escrevo tão mal como isso. Penso eu.
- Uma coisa lhe reconheço. Você tem o seu estilo e isso é
inegável.
- Le style c’est l’homme même.
- Nem
mais.
Retirou um cigarro da cigarreira que parece ser de prata.
Continuo sem saber bem quem é a “minha” rapariga da esplanada. Ela sabe mais do
que eu penso que sabe ou estará a armar-se?
Deu duas baforadas, levantou o indicador direito e chamou o garçon. Perguntou-lhe se o pão era
fresco e bem cozido. Perguntou-lhe se o fiambre era cortada da peça na altura
ou tirado às fatias do frigorífico onde estaria embrulhado em celofane. Quis
saber a origem da manteiga, ao que correspondi com uma gargalhada. E mais
admirada ficou do que o próprio empregado do bar quando eu disse «hoje não há
sandes de fiambre com manteiga para ninguém. Traga-nos uma travessa de
caracóis, se faz favor, e duas imperiais». Não me admira que ela, tivesse, em
pensamento, me chamado rústico. Mas como dizia Aquilino Ribeiro “Em literatura o estilo é como
o álcool para os corpos embalsamados: conserva-os” . Eu hoje fico pela cerveja.
domingo, 24 de junho de 2012
153. Ismael (66) - Limpeza de balneário
Quis o escritor que desta vez o narrador tomasse o
protagonismo e viesse aqui contar para todos vós o que se passou a seguir.
Considerou o escritor e com alguma razão que os seus leitores já devem estar
cansados de ler esta sequela sem fim à vista e que o melhor, para que
descansassem os olhos fosse o narrador a contar. Ora então, cabendo-me a mim
fazer esse papel de narrador, prestem atenção ao que vos tenho para dizer. No
entanto, se no final do que vos relatar não estiverem de acordo com o que aqui
foi dito devem reclamar com o escritor e não comigo porque sou apenas o
mensageiro. Oiçam então.
Cansado com a confusão de Ismaeis e com a presença de
pessoas que nada tinham a ver com o crime ou com o bom andamento do relato, já
há muito que o escritor tinha abandonado qualquer referência ao falecido Günter
Freitag , eis se não quando no último episódio o voltou a fazer, mas jurando que
não o repete e à velhinha que nos alpes possuía uma medalha em forma de coração
com uma nossa senhora e um número inscrito e que já nem o próprio escritor se
lembrava de o ter feito. Também o senhor Ismael da Ervanária que ainda era
qualquer coisa à moça da esplanada e que gosta, não só de sandes de fiambre com
manteiga, mas também de finais esquisitos para as novelas, só foi referido uma
vez, tendo em compensação sido chamado o senhor Ismael da Farmácia, por mor de
um filho que gostava de vir para Lisboa, ainda não se sabe bem, fazer o quê,
mas que era a grande preocupação daqueles pais, o senhor Ismael da Farmácia e a
sua esposa, a senhora dona Marcília, entrevada numa cama com enxergão de palha.
Já da Micas, secretária de Ismael Sacadura Flores, apenas se ouviu falar dela no
dia de Carnaval, não se sabendo se se baldou ou não para a Costa da Caparica
com algum brasileiro ou se tem uma vida pacata de dona de casa na Quinta do Conde.
Decidiu portanto o escritor e incumbiu-me de vos comunicar que fez uma limpeza
de balneário limpando todos estes nomes de episódios futuros. A eles,
juntou-lhe ainda Herr Jürgen Grass que cumprida que foi a sua missão junto à
Mossad mais nada tinha que fazer aqui, e cortou também Rafaello Vicentini, não
o declarando morto mas a quem lhe aconteceu qualquer coisa pela certa. Ora para
esta missão de limpeza, que poderia, sem dúvida, ter sido executada pelo
escritor, homem humilde, que não gosta de assumir protagonismos e que, por isso
mesmo, decidiu designar o inspetor Ismael Sacadura Flores como presidente da
comissão liquidatária de nomes da novela “Sete facadas à procura de um autor”,
título provisório, para que este pudesse pôr ordem nesta casa, já que polícia é
polícia e escritor é escritor, não vamos nós inverter os papéis, ao que aquele acedeu
e este sorriu e eu vos narrei.
Ismael Sacadura Flores agora empossado de novos poderes,
decidiu por sua vez que o senhor Ismael da Farmácia, a enfermeira feia e o
agente da Pide, não obstante a resistência deste e as chatices futuras que o
inspetor Sacadura veio a ter, não precisavam constar mais desta história,
embora ao senhor Ismael da Farmácia ainda se lhe possa fazer uma ou outra
nomeação mormente quando alguém se refira ao seu filho. Mas por causa de uma
amizade antiga entre o escritor e o taberneiro Ismael Gusmán, não esteve este muito
de acordo com esta ideia do homem da Judiciária e disso incumbiu-me também de
vos dizer que este descontentamento adiria da possibilidade dos proventos do
galego naturalmente diminuírem, já que menos três frequentadores da tasca lhe
dariam algum arrombo no orçamento porque se tinha que ter em conta que a
enfermeira feia comia que nem uma lontra, o senhor Ismael da Farmácia bebia
mais do que uma esponja natural e o agente da Pide, porque passava lá os dias
inteiros sempre ia consumindo a suas cervejinhas. O escritor que não tinha
nenhuma intenção de discutir com o polícia, nem tampouco ou, melhor dizendo,
ainda menos, de prejudicar o seu amigo galego, decidiu manter a enfermeira feia,
que provavelmente fará também um depoimento à margem do conhecimento de Ismael
Flores e o agente da Pide, tendo então eliminado de episódios futuros Ismael da
Farmácia. Posto isto pediu à comissária Xana que pusesse as algemas a Ishmail
Baruch que, se bem que não tivesse matado Isabella Vicentini, tinha dado a
quarta facada no peito da malograda corista, nesse momento já cadáver.
Temos
agora que aqui fazer um pequeno parêntesis, porque a Deus o que é de Deus e a
César o que é de César. Ficaria mal deixar passar em claro a discrição dos
leitores deste volumen ao ouvirem o
Inspetor referir que Ishmail Baruch pespegou a quarta facada no peito de
Isabella, que não balbuciaram uma única palavra sobre o caso do qual já tinham
conhecimento. talvez os leitores não quisessem efetivamente que o homem ficasse com gases por se ter
sentido ultrapassado. Como todos sabem, esses gases advêm do facto de que
quando o inspetor se sente ultrapassado, desatar a comer ensopado de borrego,
frango no forno com coentros, bifinhos de cebolada, beber vinho branco de
Almeirim com aspirinas, comer passas de uvas, azeitonas pretas, paté de atum,
arroz de lingueirão, melão com
presunto e café sem açúcar.
quarta-feira, 20 de junho de 2012
152. Ismael (65) - Depoimento ou despacha-te que se faz tarde
Olá, eu sou Ismael ben-Avraham. Sou um judeu, de uma família
tradicional, nascido nas montanhas da Áustria e que, graças a um esquiador
austríaco que, cheio de cerveja no bucho, resolveu esquecer-se do blusão numa
estância de esqui, consegui safar-me aos esbirros nazis e regressar à terra de
Davi. (O escritor reflete sobre a rima usada na frase. Quem sabe um dia se
dedique a histórias infantis onde o género tem mais impacto.) Curiosamente,
pertenço a um ramo de uma família que nos tempos da Inquisição em Portugal
fugiu para outros países da Europa, nomeadamente a Holanda e a Áustria. Nesse
tempo ainda era a família Oliveira que aos poucos foi perdendo a identidade
lusa, embora se encontrem todavia alguns עץ
שמן em Israel
e alguns olijfboom na Holanda, bem
como, pelo menos uma família Olivenbaum
na Áustria. Mas nunca fomos uma família muito unida pois consta dos anais e da
história da família, várias ofensas entre ramos, de tal modo que na Áustria
chamávamos aos Oliveira holandeses, os Oliveira da ganza e eles chamavam-nos, a
nós, os da montanha, os Oliveira da serra que era um eufemismo para não nos
chamarem azeiteiros. E eram muito invejosos. Quando eu me formei em medicina
chamavam-me o Oliveira do hospital para ver se eu me chateava, eles que, além
da ganza, sempre foram Oliveiras de piercings
com brilhantes, a lembrar certas ligações com o futebol. Mas adiante, porque
vários descendentes foram perdendo o Oliveira e eu, já sou um ben-Avraham da
parte do meu pai mas, quem sabe, algum tetravô se chamaria Ismael de Oliveira
ben-Avraham. Bom, mas isto que vos contei, das minhas ascendências, parece nada
ter a ver com a resolução do crime da Rua dos Correeiros, mas tem. Foi
exatamente por causa de eu ainda ter sangue português que a Mossad me mandou
para Portugal à procura da medalha que o fascista Rafaello Vicentini roubou a
Jürgen Grass, num comboio na Suíça, com o número da conta onde está guardada a
fortuna da família Schneider. Mas, antes de continuar tenho de vos pedir um
favor que, se calhar, nunca ninguém antes vos pediu. Eu vou fazer uma
revelação, mas não gostaria que, no final, quando o inspetor vos dissesse quem
matou a Isabella, a filha do ladrão e fascista Rafaello, coisa que naturalmente
fará no final da alocução que está em curso na tasca de Ismael Gusmán, não
desatassem todos a dizer, «eu já sabia, eu já sabia». Até porque o inspetor não
gosta de se sentir ultrapassado, mas que, para não me perder, já vos falarei
disso mais adiante. Pois a minha revelação é a seguinte. Eu não matei Isabella
Vicentini! Passavam poucos minutos das sete da manhã quando, no meio de uma
cirurgia de pequena importância, que os meus assistentes puderam facilmente terminar,
fui chamado ao telefone do Hospital. O senhor Ishmail Baruch, tinha conseguido
infiltrar-se em casa de Isabella, graças a uma gazua feita com um clip de aço
inoxidável, como ele tinha aprendido nas escolas da Mossad e em alguns filmes
em cinemascópio que começavam a passar nos écrans israelitas e, também, graças
ao estado de cansaço de Isabella, que descurou a tranca e o ferrolho,
deixando-os abertos. Isabella dormia, pois, segundo o senhor Baruch e tal como
o manuscrito de Francisca o confirma, teria chegado, naquela noite, bem mais
tarde do que o costume. Sem que ela o notasse, pois o sono era profundo,
começou o senhor Baruch a utilizar as técnicas de busca noturnas, típicas das
polícias políticas e serviços secretos sofisticados. Foi abrindo gavetas e
armários, apalpando sutiãs e cuecas de renda, camisas de dormir em algodão e em
cetim, meias de vidro, com e sem renda, com e sem costura, com e sem pé, tutus
em tule italiana, o que mostra que o senhor Baruch até pelo quarto de Ekatrina
se movimentou, sapatos de ballet, penaches de corista, batons, rouges, pós de
arroz, lápis de sobrancelhas e espelhos, pinceis de rimmel, saias e vestidos de
chita, aventais e panos de cozinha, botas de cano alto e sabrinas, toalhas
turcas e casacos de abafar, gabardinas, canadianas e camiseiras, cujas cores
não me pode referir, dado que toda a pesquisa se fez durante a noite. Teve
mesmo o cuidado de andar devagar para que o seu defeito na perna esquerda não o
traísse com o mancar descoordenado que poderia despertar a bela corista
adormecida. De nada lhe valeu toda aquela apalpação. Nem sinal de medalha, nem
de fio, nem de nada que interessasse a um espião, pelo que com a raiva que se
lhe acometeu, só lhe apeteceu mesmo foi pegar numa faca e matar logo ali aquela
filha de um fascista. Eis senão quando, um reboliço se ouve no corredor, por
onde alguém, aproveitando a porta, inadvertidamente deixada aberta, pelo senhor
Baruch tinha acabado de entrar. O individuo, sem experiência para se deslocar
no escuro, batera contra uma coluna e fez tombar um vaso de flores, onde
despontava uma chamaedora elegans que
se estatelou direta no chão, desfazendo-se numa dezena de fanicos. Isabella
assustou-se e deu um pulo da cama. O senhor Baruch, mais surpreendido do que
assustado, escondeu-se no guarda-fatos do quarto de Ekatrina. Isabela
precipitou-se para o corredor. O senhor Baruch colou o ouvido na porta do
roupeiro. Isabella deu um grito e depois outro. O senhor Baruch ouviu o barulho
seco como o de um corpo a cair no chão e saiu de imediato do armário. Correu
direito ao corredor no seu, apesar de tudo, engraçado mancar. Alguém no andar
de baixo, se lá estivesse, com certeza teria notado isso. Pela escada abaixo,
uma correria louca. Ao senhor Baruch seria impossível acompanhar. No chão jazia
e esvaía-se em sangue a corista Isabella Vicentina. Estava morta. No peito uma
faca. No corpo, três facadas.
Foi isto que escutei ao telefone. Pedi ao meu assistente principal
que tomasse conta da cirurgia. Segredei ao ouvido da enfermeira Helena que
teria de me ausentar com urgência. A enfermeira Helena, entendeu erradamente o
que eu queria dizer e saiu comigo. Quando me apercebi e vi que a enfermeira
feia, que me andava a perseguir já há algumas semanas, teria topado o meu
segredo, passei por ela, e disse-lhe «anote a hora e amanhã não se esqueça de
ir fazer queixa ao senhor Diretor». Pisquei-lhe o olho e olhei para o relógio.
Eram sete e meia da manhã. Disso, a enfermeira feia, deu conta ao inspetor
Ismael Sacadura Flores, pelo que, como irão ouvir na alocução do polícia, eu
estou inocente. Infelizmente, o senhor Baruch, numa crise de nervos, de raiva e
de frustração, desenterrou a faca do peito do cadáver e fez-lhe um quarto
golpe. Depois saiu.
Não quero terminar esta minha revelação sem acabar o que comecei.
E o que comecei foi por pedir-lhes que não dissessem nada ao inspetor Ismael
Flores de que já sabem que eu estou inocente. Ele vai sentir-se ultrapassado e
quando ele se sente ultrapassado, desata a comer berbigões abertos ao natural
com coentros picados e sumo de limão, requeijão com doce de abóbora,
profiteroles com molho de chocolate, a beber moscatel de Setúbal, a comer
pistachos da Pérsia e a cuspir as cascas, tremoço saloio com cerveja a copo,
caracóis refogados em tomatada e bocadinhos de chouriço, a beber vinho rosé bem
gelado, a comer choco frito à setubalense, a beber poncha da Madeira, a comer
alcagoitas torradas e a beber café sem açúcar. E depois não querem que o homem
fique com gases.
domingo, 17 de junho de 2012
151. Ismael (64) - Depoimento ou a história de uma prisão providencial
Olá, eu sou o doutor Castro Ribeiro e quero pedir-vos,
solenemente, um favor. Um daqueles favores que se fazem aos amigos e eu sei,
que entre vós, leitoras e leitores dos livros do senhor Constantino, posso
contar alguns amigos. Amigos que acreditam na justiça e nos seus agentes, tal
como eu o fui e ainda sou. Um homem que apesar do percalço que houve com a
minha Rachel nunca abandonou Sebastião, nem nunca desprotegeu Francisca. Se o
senhor Ishmail Baruch não percebe isto, é porque ou é burro, ou é um avarento
judeu que apenas se preocupa com o negócio dos charutos cubanos, Ou ainda,
talvez um pouco mais deprimente, talvez seja um agente secreto israelita à
procura de um número de uma conta na Suíça, que desde há muito se desconfia
estar inscrito numa medalha de ouro presa a um fino fio. A verdade é que eu,
ainda enquanto advogado, fui solicitado para um caso parecido, que envolvia
judeus de origem russa e uma velhinha que vendia arenque fumado numa aldeia
caucasiana, mas que, acabei por ter de desistir do caso por mor de ter começado
a exercer a minha profissão de juiz. Pois só vos quero dizer que tenho cá um feeling de que um caso não tem nada a
ver com o outro e que o escritor, que gosta de enigmas, introduziu-me, numa
certa fase da minha vida, na busca de um caso similar e que, graças a Deus,
apesar de eu nunca ter tido conhecimento do final, nunca se constou que tivesse
culminado numa morte e, muito menos, por esfaqueamento. E agora peço-vos
desculpa. Alonguei-me tanto que nem vos cheguei a pedir o favorzinho. Pois é o
seguinte, meus amigos. Não digam nada ao inspetor Ismael Sacadura Flores, que a
estas alturas da narrativa, pressuponho, esteja na tasca do amigo do senhor
Constantino, o nosso bem conhecido Ismael Gusmán e que é galego e que por isso
usa boina e fala com xizes, a fazer uma preleção dedutiva e lógica para chegar
à conclusão de quem é que vai para a prisão, sendo que eu também fui intimado a
comparecer, por via da minha ex, a Francisca, boa gente sim senhora, que vive
atualmente na Quinta do Conde que também é uma boa terra, sim senhora. Não
digam nada, pedia-vos eu, não lhe digam que eu me vou antecipar, pois vou,
desde já e para sempre, declarar pela minha honra, de que não matei a jovem
bailarina. E perguntam-me vocês, principalmente aqueles que são menos meus amigos,
que nunca me perdoaram eu ter feito um filho à peixeira judia, desconfiando
mesmo que eu tivesse alguma coisa a ver com a sua morte, e me ter apaixonado logo
a seguir pela Francisca, nunca me ter assumido como pai, ser putanheiro, beber
uns copos, enfim, um safado de primeira, se eu tenho provas do que afirmei. Também
foi bem perguntado, sim senhores mas até para vocês, amigos da onça, eu tenho
provas. Sei também que o senhor Constantino insinuou que poderia ter sido eu,
pois denunciou-me naquela noite em que eu saí aos gritos de «eu mato aquela
puta! Eu mato aquela puta!», do bar Barba Roxa, o bar do célebre Ismael Júlio
que tem espanholas por conta e vende whisky de contrabando. Mas olhem que para
vosso conhecimento é muito melhor o VAT 69 que ele vende, vindo por portas e
travessas parar ao seu alçapão, do que muita mixórdia de Sacavém que alguns já
beberam por aí. E quais são as provas? Bom, naquelas noites que antecederam a
morte da pobre catraia, que eu nem conhecia muito bem, embora já tivesse ouvido
falar dela várias vezes, até porque o Sebastião andava a bater-lhe os olhos e a
apalpar-lhe as coxas, eu parei muito por aqui por Lisboa. Estava a gozar os
primeiros dias da minha reforma, a minha vida é Vila Nova de Gaia, mas a carne
é fraca e um dia em que fui dar assistência jurídica a Francisca, por causa de
umas desavenças com uma vizinha que não a deixava pintar uma empena da moradia
que confinava com o quintal da outra, dei de caras com a filha do sapateiro da
Quinta do Conde, a vossa já bem conhecida Isaurinha. Ora eu, um homem livre,
não tendo que dar satisfações a ninguém, hospedei-me numa pensão lisboeta,
famosa pelo cozido à portuguesa que fazia à quinta feira, pelas favas com
entrecosto que confecionava às terças feiras, pela caldeirada à fragateiro que
servia às quartas feiras, pelo pargo no forno com batatinha nova, pelo cabrito à
padeiro e outras iguarias, infelizmente ao alcance de poucas bolsas, mas eu,
verdade seja dita, não tenho desses quiproquós.
E também sei, tenho a certeza disso, que não foi por causa do meu dinheiro, nem
da minha posição social, que a Isaurinha Bate-Sola se me vinha juntar nos
lavados e engomados lençóis da minha cama, no quarto 202 da referida pensão. E
se eu disse que matava aquela puta, só vos quero dizer que isso foi apenas um
desabafo de indignação por ter sabido que o meu próprio filho andava na
pouca-vergonha com aquela rapariga, a esbelta e sensual Isaurinha Bate-Sola.
Mas querem testemunhas, querem, não é verdade? Pois então vamos lá a ver se vos
consigo ditar uma a uma. O senhor Ismael Gusmán serviu-me o jantar perto das
oito da noite. Comi uma posta de bacalhau com batatas e grelos, por acaso muito
fresquinhos se não me falha a memória. «Então daqui é para a caminha, não é senhor
doutor?», perguntou-me depois de ter bebido o meu cafezinho e um bagaço, por
acaso coisa de estalo, que recomendo para quando lá passarem, e ter pago onze
escudos e trinta centavos pelo repasto. «Ainda não, senhor Ismael, ando cá com uns
pressentimentos, que isto não é coisa boa. Pode crer senhor Ismael que esta
noite vai haver coisa, lá isso vai. Por isso vou até ao Barba Roxa». Ora o
senhor Ismael que me deixou de ver pelas nove e meia da noite não pode ser
minha testemunha, mas pode conferir o que acabei de dizer. No Barba Roxa, onde
entrei por volta da uma da manhã, depois de ter ido jogar um pouco de bilhar na
Rua do Jardim do Regedor, encontrei o Sebastião, com cara de caso. Depois de
alguns VATs, contou-me a história da crioula e eu aconselhei-o a procurar um
lugar seguro para se esconder. Se o indígena do pai da mulata o apanhasse ainda
teríamos marinheiro às fatias. Foi então que ele me falou do caso dele com a
Isaurinha Bate-Sola, naquela ingenuidade de que poderia ir até à Quinta do
Conde mas que em vez de ir para casa da tia, iria dormir para casa de
Isaurinha. Assim, como assim, não seria a primeira vez e depois começou a
gabar-se e tal e coisa. Eu, no princípio, não disse nada porque o sangue
corre-lhe nas veias, tem a quem sair. Mas quase chegada a madrugada, desta vez
com o sangue bem carregado de álcool, saio do Barba Roxa e já com os olhos turvados
pois não voltei a ver o Sebastião, que segundo consta estaria já escondido num
alçapão com duas espanholas, o malandraço, a correr e aos gritos de que a matava.
«Eu mato aquela puta! Eu mato aquela puta!». Ai se apanhasse a jeito aquela
filha de um sapateiro, ai pressinto que perderia a cabeça. Mas não, quem
encontrei foi a comissária Xana, que já conhecem também e que, portanto, me
dispenso de fazer apresentações. Uma rapariguinha, por caso de boas famílias,
coitadita, que vinha também sair do bar até me perguntou «Ó doutor, vai preso?»
e eu, com a paciência esgotada, até fui mal-educado e peço-lhe daqui desculpa
por isso, respondi «não querida, vou dormir com a chefe». E foi assim que
passei essa noite nos calabouços da esquadra da Mouraria, eu um juiz jubilado
que só quase à hora de almoço do dia seguinte, quando a buba me passou é que me
pude identificar e sair em liberdade. E se o Ismael Júlio não pode ser
testemunha porque saí do seu bar antes de ter sido esfaqueada a italiana, já do
auto da ocorrência e da minha noite entre grades, ninguém pode duvidar.
Mas olhem que isso de não contarem nada ao inspetor de que
eu me antecipei é a sério. O homem, quando se sente ultrapassado, desata a
comer fofinhos de pescada panados em farinha de milho, folhadinhos de salsicha
tipo Francoforte, a beber vinho tinto do canjirão, a comer bolinhos de côco, pastéis
de feijão, dobradinha à moda do Porto, sandes de torresmos, queijo fresco da
Malveira, azeitonas de Elvas sem caroço, a beber ginjinha de Óbidos com e sem
elas, a comer chanfana de cabra e a beber café sem açúcar. Depois não querem
que o homem fique com gases.
quarta-feira, 13 de junho de 2012
150. Ismael (63). Depoimento ou a história da crioula
Olá, eu sou o Sebastião. Bem sei que o inspetor Ismael
Sacadura Flores não vai gostar nada que eu me antecipe à sua oratória na tasca
do famoso galego, amigo do escritor. Mas já não aguento mais. Tenho estado,
quase desde o dia em que fui referido pelo autor, creio que na mercearia do
senhor Ismael Rodrigues, na corda bamba desta novela. Ora se dá a entender que
eu não tive nada a ver com o crime, ora se insinua que talvez eu não estivesse
embarcado naquele fatídico dia, e que tudo era uma proteção maternal da minha tia
Francisca, que sempre de mim falava com muito carinho no seu manuscrito. Eu sei
que contar aqui a história da minha vida seria deveras maçador para quem está a
ler. Além disso, eu não tenho a verve do narrador, nem a capacidade de
efabulação do escritor, que me permita deixar-vos uma biografia. Mas tenho que
vos dizer, para que não restem dúvidas, que eu não matei a pobre da Isabella.
Bem sei que muitos de vocês, mas principalmente muitas de vocês, que ao longo
deste medley que o escritor decidiu
fazer no blog do senhor Constantino, misturando as histórias que têm como pano
de fundo a tasca do honesto galego, com o crime da rua dos Correeiros e com o
Conto que a minha pobre e frágil tia anda a escrever sobre umas ilhas, que por
acaso nunca visitei, dizia eu que, muitas de vós já sois grandes fãs deste
jovem marinheiro e que suspireis de alívio, ao lerdes esta minha afirmação. Mas
a verdade, verdadinha, relato-vos em duas ou três linhas, se para isso
conseguir beber a arte de narrar do famoso contador de histórias que tem estado
omnipresente desde o início do fascículo. Ora, se a minha tia deixou claro no
seu manuscrito que eu tinha embarcado para o Coraçau pouco tempo antes do
horripilante crime que mandou Isabella para junto do Criador, então é porque é
verdade. A minha tia não é mentirosa e até estou todo arrepiadinho só de o
estar a afirmar e duas lágrimas, aliás três, já me escorrem rosto abaixo. O que
aconteceu, porém, foi que tive uma daquelas crises de enjoo em alto-mar. Bem
que o enfermeiro me encheu de comprimidos, o meu chefe até bolachinhas e chá
mandou levar ao meu camarote, sabe Deus mais quantos mimos, mas nada. Levantava
a carola do travesseiro e parecia que o beliche se virava de pernas para o ar. Até
que ao fim de algumas horas fui encontrado verde, desbundado num mar de
vomitado. Não tiveram outro remédio senão desviar a rota e deixarem-me na ilha
de S. Vicente onde me apaixonei, como não podia deixar de ser, por uma crioula
com 16 anos. Passada uma semana já se faziam os preparativos para o casamento e
não fosse ter-me escondido num porão de um navio da Companhia Colonial de Navegação que
tinha feito escala para deportar uns revolucionários a mando do Salazar, nunca
eu teria feito parte da novela do escritor Constantino. É assim que na
véspera do sanguinário assassinato da minha querida bailarina, sou visto num
bar do Cais do Sodré, o Barba Roxa, onde me venho a encontrar com o meu antigo
protetor o Dr. Castro Ribeiro. Falamos de tudo e de mais um par de botas
enquanto virámos, a bem dizer, uma garrafa de VAT 69. Quando ele soube que a
Isaurinha Bate-Sola partilhava a cama comigo, para me poder esconder da minha
tia, a quem eu não queria atormentar com a minha repentina doença, saiu do bar
aos gritos de «Eu mato aquela puta! Eu mato aquela puta!», sendo que desde essa
data nunca mais o vi, até alguns dias depois de finada a pobre corista
italiana. Também estranhei a boa disposição de Isaurinha em todos aqueles dias,
quer antes, quer após o fatídico dia, mas sempre atribuí isso ao meu desempenho,
passe a imodéstia, só que vou deixar essa questão para outra ocasião. Por uma
mera coincidência, realmente divina, a noite em que foi vilmente assassinada
Isabella, posso prová-lo, tenho várias testemunhas disso, passei-a escondido
num alçapão do Barba Roxa, por conselho do Dr. Castro, que mesmo já com os
copitos teve um bom discernimento, onde o dono, o meu amigo Ismael Júlio, que
alguém confundia propositadamente com Ismael chulo, escondia as caixas de
whisky de contrabando e duas espanholas que ele trazia por conta, mas que
estavam por cá clandestinas. E indagam-se depois os leitores, que não percebem
porque é que eu passei essa noite escondido no alçapão do chulo, quer dizer do
Júlio e eu não tenho outro remédio senão explicar a minha cobardia, pois o pai
da jovem cabo-verdiana andava há três dias a percorrer tudo o que era cais, bar
ou casas de má-porte, já para não falar nas vigílias que fazia à porta da casa
da minha tia na Quinta do Conde, com uma catana na mão e a toda a gente dizia,
em viva voz e num misto de crioulo e de português «Eu faço aquele malandro em
fatias!». Portanto, peço-vos apenas uma coisa. Quando na sua preleção
determinante, o inspetor Ismael Sacadura Flores declarar que o marinheiro Sebastião
nada tem a ver com as facadas em Isabella, nem com as sete nem com nenhuma das
sete que a vitimaram, façam de conta que ainda não sabem. É que, quando o
inspetor se sente ultrapassado, desata a comer rissóis de berbigão, a beber copos
de branco saídos diretamente do barril, a comer croquetes de sangacho de atum,
salada de tomate com requeijão, a beber bagaços caseiros, a comer jaquinzinhos
fritos de um dia para o outro, sardinha de caldeirada à moda de Setúbal,
pasteis de Tentugal e queijadas de Sintra, ervilhas com ovos escalfados e
chouriço encarnado, feijão frade temperado com cebola, pimenta, azeite e
vinagre, a beber café sem açúcar, a comer sopa de feijão branco com couve
lombarda e chispe de porco, espetadas de asinhas de frango com pimentos e
toucinho e morango saloio com açúcar mascavado. E depois não querem que o homem
fique com gases.
segunda-feira, 11 de junho de 2012
149. Ismael (62) - Posfácio
Em primeiro lugar quero agradecer ao escritor desta coisa
ter-me convidado para escrever o posfácio da dita e em segundo quero agradecer
ao editor por ter permitido que o posfácio fosse inserido neste momento na
obra.
Mas se o posfácio é inserido neste momento na obra não é um
posfácio, poderão dizer, com muita propriedade, ou apenas pensar, obviamente,
alguns leitores mais atentos. Pois então, sem vos querer tirar nadinha da razão
que vos assiste, vamos cá por partes.
Agradeço ao Constantino que tanto se empenhou em escrever “Ismael um homem à margem de qualquer
facada”, título provisório, já que o autor parece ainda não se ter
decidido, ter-me escolhido a mim, um simples leitor de blogs, humilde até dizer
chega, e incapaz de criticar pela negativa qualquer escrito, seja ele um poema,
por mais satírico que seja, por tão épico que chegue a chatear, por tão lírico
que me deixe cor-de-rosa só de o cheirar, por tão narrativo que me canse só de
o ler, por tão dramático que não haja pedras de calçada onde não me ajoelhe e
chore perdidamente, por tão bucólico que me deixe a ver passarinhos voarem
sobre a minha cabeça enquanto navego em alvas nuvens à busca do meu éter, ou
água oxigenada, ou betadine, quer seja uma prosa, por mais biográfica que seja,
principalmente se autorizada, por mais ensaísta que seja, com cegueira ou sem
lucidez, por mais diarista que seja, que até nos apeteça dizer «Ana, francamente!», por mais histórica que seja,
que nos obrigue a reviver a batalha de Trafalgar ou o desembarque na Normandia pela
centésima vigésima sexta vez, por mais romanceada que seja, que faça ruborescer
uma jovem adolescente ao ler lençóis de linho, rendas de bilros ou pensos
diários, por mais infantil que seja, que adormeça belas moças ou faça subir em feijões
em escada com gatos e sem botas. E talvez fosse porque eu não sou capaz de
caraterizar negativamente nenhuma forma de escrita nem o seu conteúdo que
Constantino me tenha solicitado para que eu fizesse um posfácio.
Pois meus amigos, só vos tenho que dizer, sem esquecer
também as amigas, que gostei. Pois gostei. O rapaz escreve bem, é um pouco
confuso por vezes, lá isso é, mas coitado, não se pode ter tudo, isto é,
talento e uma mente clara. Ou se tem uma coisa ou se tem outra e não é por
acaso, ah pois não, que o Einstein às vezes ia dar aulas com um peúgo de cada
cor. E se calhar nem cuecas usava. Quando alguém lhe perguntava, «Sr. Einstein,
o senhor hoje trás cuecas?», ele deitava a língua de fora. E não era por uma
coisa nem outra que ele deixou de ser um génio. Portanto, para poder passar à
parte em que vou agradecer ao editor ter aderido à minha pretensão de colocar o
posfácio nesta parte do livro, tenho de repetir que gostei. Gostei, sim senhor
do senhor Constantino ter introduzido o conto da Francisca, coitadinha, uma
mulher que se esforçou tanto para que o crime das sete facadas se resolvesse mesmo
quando já estava fraquinha das pernas, disse-me o autor, devido a uma trombose
que lhe deixou os olhos roxinhos, roxinhos, como aquela couve que se come às
tirinhas nas saladas e que por pouco não a matava de vez. Também gostei do
autor a contar contos, se bem que pequenos, no meio da narrativa de suspense em
que se transformou o já terminado mas ainda não publicado na totalidade, crime
da rua dos Correeiros, onde se esfaqueou uma pobre jovem que se sabe ter sido
corista no Parque Mayer, pois é verdade. Apesar desta rapsódia, gostei. A
sério, pá. E o que se pode mais dizer num posfácio, se não que o livro ou o
quer que seja esta coisa, está bem escrito, tem ritmo, prende o leitor à trama
do crime, emociona o leitor com contos reais, como aquele em que os seus
colegas, bebiam sevenápes e bicas e tinham as partes à arder por causa do Sol,
o que eu me emocionei, leitores e até obriga o leitor a recorrer ao Houaiss ou
ao Priberam online para entender o que Francisca quis dizer com jacular, com
achapuçar ou, por exemplo, com galóli e, finalmente, dá ao leitor um sabor assim
a cocktail ou a macedónia. É verdade que por vezes o escritor passa-se, como
aquela vez em que fez um disclaimer a
meio da prosa quando o devia ter feito no início, mas se o Constantino me
escolheu para fazer o posfácio, não é exatamente aqui que o vou criticar.
Finalmente o editor. Bem-haja senhor editor. Vossa
excelência, permita-me que o trate assim, é um santo. É um santo até maior do
que o nosso primeiro-ministro e do que o nosso ministro das finanças que tanto
bem nos têm feito, subtraindo-nos os subsídios de férias e Natal para que a
gente não gaste em porcarias como sejam o autocarro para a Costa da Caparica,
ou mesmo para Fonte da Telha no verão, em que toda a gente vai poluir as
praias, aproveitando até para tomar banho e pôr cremes, que é cá uma despesona e
depois o nosso querido governo é que paga com a malta a gastar acima das suas
possibilidades, ou gastar em outras porcarias, como sejam as broas e as passas
e os brinquedos fabricados na China, pois por isso, por nos ensinarem a
pouparem também para vocês, ministros, o meu grande bem-haja. Mas ia eu a dizer
que o senhor editor nem sabe o bem que fez ao meu ego, principalmente ao meu,
já para não falar da alegria que deu ao senhor Constantino em deixar que o
posfácio aqui fosse publicado. É que como todos sabem, depois de lido um livro
ninguém lê posfácios. A malta acabou, volta para estante, tira-se-lhe o
marcador que serve para outro livro e siga a marinha.
Ai sim? Então siga a marinha que o próximo capítulo é que
vai ser bom.
sexta-feira, 8 de junho de 2012
148. Ismael (61) - Um Ismael para cada gosto
Se eu estivesse a escrever um livro policial não poderia
fazer tantas interrupções pelo meio do romance. Corria o risco de não se
perceber nada e de as pessoas acharem, com alguma razão, que todas as regras da
literatura romanesca estavam a ser cilindradas. Os críticos literários cair-me-iam
em cima e, se calhar, diriam «bela merda» com ponto de exclamação à frente. Os
editores, perguntar-me-iam «afinal que brincadeira vem a ser esta», mas com
ponto de interrogação. Os leitores andariam para trás e para a frente com as
páginas e acabariam pensando ou desabafando «mal empregadinho dinheiro» e, até
eu ,escritor do texto, quando o faço na terceira pessoa e narrador do dito na
primeira ou então vice-versa, me sentiria envergonhado por não saber estruturar
uma coisa com principio meio e fim e, no fim, claro está, acabar com isto de
uma vez por todas. Mas, felizmente para todos, críticos, editores, escritor,
narrador e leitores por esta ou por qualquer outra ordem, nomeadamente a
inversa, isto não é um livro policial, isto não é um romance, isto não é uma
novela, isto não é um ensaio, isto não é um diário, isto não é uma biografia.
Isto é um entretém e como entretém que é, não só já me fizeram chegar aos
ouvidos que está muito bem assim, mas também me incentivaram a colocar no
contexto palavras cruzadas e puzzles
do sodoku. Eu é que não vou nessa
porque para confusão já basta assim. Mas se isto fosse mesmo um romance
policial, o inspetor Ismael Sacadura Flores estaria neste momento da sua
preleção a referir-se ao velho Ishmail Baruch, quiçá (eu já escrevi quiçá
mais de uma dezena de vezes desde que comecei a escrever esta sequência, quiçá
mais de duas dezenas), nos termos em que os parágrafos seguintes o fazem.
«E», continuava o Inspetor Ismael Sacadura Flores, «não
pense que me esqueci de si, meu caro senhor Baruch», virando-se para o senhor
Ishmail Baruch a contas com uma gripe, já no limite da broncopneumonia, débil
de pernas, pois só uma cadeira de rodas o fez movimentar até à taberna onde
decorria a preleção de Sacadura, «não me esqueci, não senhor, e a prova disso é
que agora, neste momento, neste preciso momento», referiu com enfâse Ismael
Sacadura Flores, «me virei para si». Pigarreou, bebeu um gole de tinto,
assoou-se com algum estrondo, desconfiando os presentes que a gripe do senhor
Ishmail Baruch se poderia estar a propagar. «Despache-se que eu tenho mais que
fazer», disse em surdina a Isaurinha Bate-Sola, mas que foi ouvido pela
comissária Xana que a cotocou duas vezes e também por Sebastião que pôs a mão
em frente da boca e sussurrou «cala-te, minha grande vaca», o que fez com que
Ismael Gusmán passasse por ele e lhe deixasse cair um café quente em cima dos
músculos tatuados do braço direito. Afinal de contas, mesmo com um par de
chifres, Ismael nunca deixou de nutrir alguns sentimentos por Isaurinha. «O
senhor Ishmail Baruch, tanto quanto se percebe pelo manuscrito de Francisca»,
esta sorriu, «e pela investigação pericial feita pelos meus chefes de brigada»,
olhou para Ismael de Almeida e para Ismaelix, tendo estes baixado ligeiramente
a cabeça em sinal de respeito e veneração, «não está em Portugal apenas por
causa de sua sobrinha Rachel, nem do seu sobrinho-neto Sebastião, aqui presente
e, até prova em contrário, eventual suspeito da morte de uma jovem italiana,
nesta mesma rua, porém no número 43». O escritor sente-se na obrigação de
alertar os seus leitores que o uso amiúde de quiçá e de porém nada tem de
fetiche mas, porque não conhece muitas palavras caras, assim como os bons
escritores e os poetas, palavras do tipo haurir, diatónico ou invetivo, vai
usando estas que são mais de uso comum. Continuando com as palavras de Ismael
Sacadura Flores, «o senhor Ishmail Baruch, é um espião ao serviço da Mossad,
bem como o seu dito sobrinho, que sabemos agora não o ser, Ismael ben-Avhraam!».
Disse-o com tanta eloquência que todos desviaram os olhos de Ishmail Baruch, concentrando-os
com tanta energia em Ismael ben-Avrhaam que, se não tivéssemos visto um
isqueiro de torcida enrolado na sua mão direita, também conhecido por isca, afirmaríamos,
por ventura erradamente, que esses olhares fulminantes lhe teriam acendido um
charuto cubano. E continuou o inspetor, «é certo que o senhor tem de
propriedade a havanesa da Rua do Alecrim, paredes meias com o Cais do Sodré,
pelo que uns lhe chamam Havanesa do Alecrim e outros Havanesa do Cais (*), o
que para o caso nem sequer importa. Mas isso é negócio de fachada para esconder
as suas atividades ilícitas que apenas a PIDE tolera mas que nós, na
Judiciária, custe o que custar, não temos por hábito dar cobertura.
Principalmente quando está em causa um crime de sangue, e de muito sangue, que
o diga Ismael Pião, o nosso ex-fotógrafo, que ainda hoje anda às voltas com o
vómito». Ishmail Baruch permaneceu impávido e sereno ou não fosse a sua
formação militar, de alta patente no exército do país do Rei David, o ter
treinado para todas as circunstâncias.
Neste momento, o escritor interroga-se se há de dar
continuidade ao discurso do inspetor Ismael Sacadura Flores ou se há de ele
próprio fazer um resumo, chamando à liça o narrador. Mas como tem dúvidas que
matéria tão importante para a resolução desta trapalhada possa ser imputada a
um mero contador de histórias, acaba por dar resposta às suas próprias
interrogações e decide ser ele a escrever o que o inspetor da Judiciária disse,
mesmo correndo o risco de maçar os seus leitores. Mas, assim como assim, já que
ainda devemos estar a umas boas trinta e oito páginas do final, mais vale ser
agora do que mais tarde.
«Tem portanto, como é bom de ver, mesmo que aqui nada tenha
sido dito que conduza a isso» e querendo fazer algum suspense, não só nas
palavras mas também nos atos, virou-se o inspetor para o galego Ismael Gusmán e
pediu-lhe que se ele não se importasse, lhe trouxesse dois naquitos de
torresmos, pois estava a sentir alguma fraqueza. Ismael Gusmán limpou as mãos
ao avental azul-escuro e cortou de uma peça grande que tinha em cima do balcão
várias fatias de torresmos com que agraciou o inspetor, continuando este,
«fortes probabilidades de ter esfaqueado Isabella. Mas porquê, perguntarão
alguns de vós, atónitos com esta minha afirmação», considerou o inspetor sem
ter tido o cuidado de verificar se todos ou só alguns teriam ficado efetivamente
atónitos e, assim mesmo, foi continuando, «pois eu respondo-vos. Um espião, vem
à procura de uma medalha. Uma medalha tem um número. O número é de uma conta. A
conta está na Suíça. O seu valor quase só Ishmail Baruch e Ismael ben-Avrhaam o
sabem. O seu valor também o poderá saber Ekatrina Smirnova, esta linda jovem
por quem o nosso chefe de brigada Ismaelix se apaixonou e cujo desfecho desta
paixão, ninguém sabe ao certo no que vai dar. O valor dessa conta na Suíça, interrogo-me
se o saberá o senhor Vicentini ou não, mas que hoje já saberá por certo da
morte de sua filha e que nunca se dignou aparecer, quiçá ele também morto
algures numa valeta duma rua de Lugano ou numa viela de Alfama, onde um rufia
terá decidido defender a honra de sua dama. O valor dessa medalha talvez não o
soubesse a pobre, a infeliz, nunca é de mais repetir, a inocente menina que
mostrava as pernas como mais nenhuma corista o sabia fazer na nossa Revista à Portuguesa,
apesar de usar uma imitação ao pescoço. Portanto, temos presentes as três
pessoas que poderiam ter morto Isabella, mas que, por motivos que mais tarde
explicarei, há mais quem o pudesse fazer». Naquele momento ouviu-se a voz do
senhor Ismael da farmácia que não se sabe por que razão lhe foi franqueada a porta,
dizer que «bom, a esta hora eu deveria estar a encerrar a minha farmácia lá na
Quinta do Conde e a bem dizer, não sei porque é que estou aqui. Mas disseram-me
que fazia falta mais um Ismael neste capítulo e portanto cá estou eu, às ordens
de vossas excelências».
quarta-feira, 6 de junho de 2012
147. Ismael (60) - Misteriosa
Em Trás-os-Montes e no Canadá não se falava noutra coisa. O
borburinho era tamanho que até levou o escritor a afirmar uma coisa destas,
sabendo-se de antemão a dimensão de Trás-os-Montes, a dimensão incomparável do
Canadá e até a dimensão que viria a atingir a Quinta do Conde, onde também não
se falava de outra coisa. Exageros poéticos à parte, a Lua beijava já o Atlântico
Norte e o Sol despontava nos raianos montes. Toronto ainda dormia, enquanto a
Quinta do Conde esfregava as remelas de uma noite bem sonhada. Na Rua dos Correeiros,
uma italiana, que poucas horas antes acabava de chegar a casa, vinda de mais
uma noite árdua de trabalho e de um frugal jantar numa cervejaria de esquina,
iria ser assassinada. Uma misteriosa senhora quis ser testemunha de um crime e
afirma nada ter visto. Sentado, num disfarce indelével, de nutridor de pombos,
um tal chefe de brigada de sua graça Ismael de Almeida, constituir-se-ia fiel
depositário de testemunho e emoção. E enquanto a Ginjinha do Rossio abria as
suas portas e os primeiros pedintes se colocavam estrategicamente nas portas da
Igreja de S. Domingos, as fontes da Praça de D. Pedro IV não paravam de brotar
água. Na Praça da Figueira ouviam-se os primeiros pregões do dia, o peixe
chegava em carroças vindas do cais de Santos e do Cais do Sodré, Rachel já era
morta havia tempos, a Quinta do Conde preparava-se para rumar a Cacilhas onde
um vapor a esperava para a levar a trabalhar em Lisboa, Toronto dormia o sono
dos justos. E, no entanto, naquela aldeia raiana de Trás-os-Montes, naquele
bairro de Toronto onde as línguas latinas eram lei e um italiano vendia móveis
num pavilhão envidraçado, naquela quinta onde clandestinamente se erigiam
vivendas sem água canalizada, nem luz elétrica, paredes meias com Sesimbra e com
a Serra da Arrábida, não se falava noutra coisa. As sobrinhas juravam que se a
tia rumasse aos calabouços, elas viriam em seu auxilio e testemunhariam que uma
pessoa de bem, que cuidou desde pequenino de Ismaelzinho Gusman, neto do amigo
do escritor desde quando, fatidicamente, o seu pai, sendo que o escritor
promete ainda vir a contar esta história, se finou, uma mulher que não
aguentava o frio de paragens tão distantes, rumando seis meses em cada ano ao
seu país natal, uma mulher que apenas ouviu os passos de alguém que lhe parecia
coxo no andar de cima, não poderia nunca, mas nunca por nunca ser, ser autora
de um tão hediondo crime que já todos conhecemos e que não vale a pena repetir,
apenas registando que sete facadas não se dão a ninguém, muito menos no peito e
ainda menos a uma pobre corista, cujo pecado foi ter uma medalha de Nossa
Senhora num fio de ouro.
O inspetor Ismael Sacadura Flores, pôs os pontos nos is.
Aquela era a sessão final. Depois dela, mais nada. Ou melhor. Depois dela os
calabouços. Depois deles o julgamento. Depois dele a condenação. Depois dela,
de novo, os calabouços. Depois deles o recurso. Quiçá, depois dele, os
calabouços. O inspetor Sacadura não tinha a menor dúvida. A misteriosa senhora
de Trás-os-Montes ouviu passos. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não
mentiu ao disfarçado homem que alimenta pombos nas galerias exteriores do
Teatro Nacional. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não foi para a sua casa
da Quinta do Conde, onde luzes foram vistas acesas e, se não escapa à memória
do escritor, se viram vultos passeando no primeiro andar, preferindo ficar no
apartamento da Rua dos Correeiros, por uma inesperada coincidência como são
inesperadas todas as coincidências da vida. A misteriosa senhora de
Trás-os-Montes sofria de insónias. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não
matou Isabella Vicentini é o que conclui
o relatório de Ismael Sacadura Flores. Ninguém entendeu esta conclusão do
inspetor. O escritor está com dificuldades em explicá-la. O inspetor olha para
Espinheira. Espinheira, por sua vez, olha para Francisca. As sobrinhas da
misteriosa senhora não estavam presentes, não faria, como não fez aliás, falta
nenhuma o seu testemunho. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes e idosa
também, como sabemos de episódios anteriores ouviu passos. “Isso chega?”,
perguntarão os leitores. Não, isso não chega, responderá o escritor. E se o
engenho permitir ainda vos demonstrará porque é que o inspetor chegou à
conclusão que a misteriosa e idosa, agora sim, está bem adjetivada, senhora de
Trás-os-Montes não matou Isabella Vicentini. E para comemorar o evento, a
misteriosa e idosa senhora levantou-se do seu banco, pois já estava aflita das
cruzes, e mandou Ismael Gusmán servir uma rodada para todos, enquanto foi fazer
um chichi.
Quem nunca se conformou com este desfecho foi uma pequena
aldeia trasmontana, foi um bairro de Toronto e foi uma ruela da Quinta do
Conde. A inveja do mundo é uma coisa muito feia.
segunda-feira, 4 de junho de 2012
146. Ismael (59) - Não morras ainda, Francisca
Tive um medo terrível. Francisca apareceu-me lá em casa com
umas olheiras que me arrepiaram. Se Francisca não fosse um personagem vivo
deste romance, desta novela, deste, enfim, qualquer coisa, eu diria que
Francisca tinha-me entrado morta, porta adentro. Francisca vinha branca, a tez,
o rosto, as mãos, o colo, do pouco que se via do pescoço. A blusa quase
apertada até ao cimo e a saia comprida, as meias de mousse pretas, não deram
para ver nenhuma outra parte do seu, ainda esbelto, embora dos quarenta quase
terminados, longe assim dos doirados anos de Balzac, corpo de mulher. Vinha
branca, não de branco, pois a cor das meias já o sabemos, eram pretas, onde
apenas destoava a cor dos olhos. Não àquela cor que lhe conhecíamos desde
menina, desde muito jovem, quando se embeiçou por Castro Ribeiro, mas aquela
cor roxa de olhos doentios, mal dormidos e como, nem com o seu quê de violento,
putanheiro, homem de muitas mulheres, notívago profissional, a que se veio a
transformar o seu ex-marido, o aposentado juiz do Porto, o Dr. Castro Ribeiro,
a tinha deixado. Não, aquilo não foi pancada, não foi queda. Francisca estava
doente. E tive medo. Por ela senti pena. Uma pena que se sente quando se gosta
de alguém. Não uma pena caritativa, mas um projeto de saudade. Poderia
Francisca morrer e ainda viva já me estar a deixar saudade? Poderia sim. E tive
medo, medo que Francisca não pudesse terminar o seu “Conto das ilhas de lá”.
Medo por ela, pois se preciso for o publicarei a título póstumo. E se a sua
obra ficar inacabada, poderei sempre, a meu jeito, se assim o entender e se
para isso for solicitado pelo amor à pena, terminar a sua obra. Mas tenho pena,
muita pena, por Francisca. Ela que foi a chave perfeita para a descoberta do
crime da Rua dos Correeiros, ela que sem o seu manuscrito nunca teríamos
conhecido o jovem Espinheira, ela que sem a sua envolvência teria banalizado a
uma qualquer figura o figurão do Castro Ribeiro, ela que sem manuscrito também
reduziria a uma inutilidade para a história, o, nos dias de hoje, já aposentado
inspetor, aquele que na tasca do meu amigo Ismael pôs tudo a nu e mandou para
os calabouços da esquadra da Mouraria, acompanhados pela bela Xana, a
comissária, quem devia mandar, ela sem a qual a Quinta do Conde não teria tido
nem metade do protagonismo que tem tido nesta história, ela entra-me porta
adentro escaveirada, branca, sem cor, sem batom, só branca e roxa, sem cor, com
o roxo dos olhos mais escaveirado do que a caveira em que se tinha transformado
o seu rosto sem cor.
Cheguei-lhe uma cadeira, ofereci-lhe um copo de água,
perguntamos um ao outro como é que cada um ia, como se isso fosse preciso, nela
tudo se via, tudo era transparente, em mim tudo era cinzento, opaco. Francisca
transparente, Francisca de olhos roxos, de um roxo transparente. E eu, cabisbaixo,
retrospetivo, emimesmado, triste, fechado, eu que apenas tinha a frincha da
janela aberta por onde uma ténue luz agora rasgava o cortinado, mas que
iluminava na perfeição o rosto branco e roxo refletido de Francisca no cinzento
dos meus pensamentos, tentei despreocupá-la mais do que me despreocupei a mim.
«Vou-lhe publicar o capítulo oito». E como se fosse membro de uma rara tribo,
sorriu um sorriso roxo. E pude verificar-lhe que os lábios também eram roxos.
Sem cor.
“O nubente assistiu macambúzio ao ritual que se
seguiu. De facto não era espetável que, após uma tão excitante cerimónia de
iniciação, a passagem seguinte assumisse um tão maçadiço teor. Assim para vos
poupar a uma macarrónea crónica, apenas refiro que a jovem foi conduzida numa
maca, acompanhada por duas anciãs, para uma tenda isolada, colocada nas
cercanias da aldeia. Mal acabou de entrar, o futuro noivo estendeu-me a mão, no
que foi retribuído. E sem a largar conduziu-me ao meu lugar, previamente reservado
na mesa principal, precisamente do lado direito do chefe. Ele sentar-se-ia à
esquerda. Os pratos exóticos de jamantes e jeticas, de miolos de macaco
servidos na própria cabeça, de língua de jacaré numa espécie de estufado, que
ia chegando em grandes travessa de barro cru, de espetos de láparos apenas
separados por folhas de urtiga fresca, de jambé, de rabo de boi com natas de
leite de morcega, misturavam-se com alguns dos mais conhecidos pratos
ocidentais, como o javali assado em forno de lenha, estaladiço, rodeado de
laranja e maçarocas de mabalemade cozido, macedónia de frutas, lulas (embora de
um tamanho inusitado) recheadas com linguiça, nêsperas em calda de açúcar,
muito marisco de casca e pardais nidífugos fritos em óleo de nicori. E foi com
este repasto, de que não hesitei em provar todas as iguarias, que me saciei de
uma fome de três dias. Adormeci bebendo um chimarrão, não de erva-mate como
seria de esperar, mas de uma mistura de gengibre e macela”.
E se lhe prometi, também o cumpri porque sou um escritor de
palavra.
sábado, 2 de junho de 2012
145. Ismael (58) - Época balnear
Nem sei como é que, no meio do tabu que está subjacente à
revelação do autor ou dos autores do crime da rua dos Correeiros que vos tenho
vindo a contar, numa novela de faca e alguidar e alguma comida de fazer crescer
água na boca a mim próprio, se bem que alguns leitores também confessem que não
são avessos aos prazeres da mesa e de alguns vinhos de estalo, desde os brancos
alentejanos e da península de Setúbal ou mesmo da região oeste, até aos tintos
mais apreciados por este escriba que passam pela Granja da Amareleja, por
Monsaraz ou por Borba, não descurando os de Pegões, os de Alcoentre e um ou
outro Douro reserva ou garrafeira, passando pelos verdes da sub-região do Lima,
onde pontificam Alvarinhos e Loureiros brancos e o belíssimo vinhão de Aguiã,
me fui lembrar de uma conversa entre os jovens que nós éramos, naquela época
ainda sem os nossos vinte anos feitos, mas que gostávamos de, com uma bica na mesa,
duas baforadas de cigarro, alguns copos de água e muitas sebentas em cima da
mesa, aproveitar as horas mortas da taberna do meu amigo Ismael para estudarmos
um bocado e, as mais das vezes, para ficarmos realmente à conversa.
Calculo que, para quem segue novela que se intitulará
provisoriamente “O inexplicável crime à beira de uma travessa de carapaus
alimados” e pouco ligados ao “Conto das ilhas de lá”, apesar da sua carga
erótica, misteriosas e polvilhada de vocábulos que não dispensam a presença de
Houaiss a mostrarem que o autor, perdão a autora, a nossa bem conhecida
Francisca, é uma pessoa erudita que, se escreve um ou outro vocábulo a roçar o
calão, isso é apenas porque os personagens não passam de uns sem-vergonhas,
pode-se mesmo dizer de uns pelintras de conhecimento linguístico que a riqueza
do luso idioma enclausura, pouco se lhe importa que no meio de tudo isto,
Constantino continue a contar histórias que se passaram na taberna de um amigo
seu, galego de nascimento, lisboeta por opção, benfiquista de coração, um amigo
também ao vosso dispor, Ismael de sua graça. Mas tenham paciência, bem sei que
sem sangue não se faz arroz de cabidela, mas contos menos dramáticos,
acompanhados a café e a bolos de arroz, vá lá, a queques de laranja, também têm
o seu lugar, mesmo que seja na mesma mesa onde já se comeu o belo paio de porco
preto, umas amêijoas à Bulhão Pato, um bacalhau à Zé do Pipo ou um queijo de
Serpa, DOP com pão de forno de lenha.
Pois para que não se perca mais tempo, vou já direto ao
assunto, repitam comigo pois já o sabem de cor, como é apanágio aqui do vosso
amigo Constantino. As férias de alguns de nós, eu excluído, pois nesse tempo
andava a vender livros pelos refeitórios das empresas, durante as minhas férias
de verão, mas é história para vos contar noutra altura, tinham sido no Algarve,
alguns dos quais na região de Lagos. Lagos é e continua a ser um destino de
férias muito bonito, um destino balnear de excelência e, pena é, que muitos de
nós não tenha subsídio de férias para gastar. Lagos tem praias típicas, todas
rodeadas de rochas mas, naquele tempo,
algumas só acessíveis através de escadarias escavadas na falésia que se
permitiam descer ou escalar agarrados a cabos de aço forrados a borracha. Estas
eram as praias-tipo para a proibidíssima prática de nudismo mas que dava muito
trabalho aos cabos de mar, descer e subir aquelas escarpas só para irem
pespegar multas aos naturistas, ainda por cima fardados a rigor. Ora, na nossa
idade, a curiosidade alia-se à aventura e houve quem de nós se dedicasse também
a tão pura, quanto saudável, prática. Saudável pensávamos nós sem a devida
proteção e se o Paiva se queixava que tinha os genitais a arder, que lhe doía
tudo, em linguagem mais vernácula própria da irreverência juvenil se dizia por
claro o “coiso” e se chamavam tomates aos testículos, já o Oliveira, sem saber
do que se falava na tertúlia, irrompe porta dentro, perna aberta quase sem
poder andar, dirige-se à mesa onde nos encontrávamos uns seis ou sete curiosos,
ávidos daquelas histórias para nós surpreendentes ou surreais, a desabafar alto
e bom som «porra que estou à rasca do cú!». Claro que ele veio depois a saber
porque é que em uníssono desatamos todos à gargalhada.
Subscrever:
Mensagens (Atom)