segunda-feira, 28 de maio de 2012

143. Ismael (56) - Por fim, o final


Desta vez ela foi efusiva. Confesso que a um dado momento até fiquei encabulado. Eu estava na praia com um bloco de apontamentos, uma anemómetro, um papagaio de papel, um cronómetro e uma fita métrica. Nem sei porque é que vos estou a contar isto, ainda são capazes de pensar que me estou a passar. É verdade que já faltou mais, mas estava eu nas minhas experiências de caráter cientifico quando ela gritou de cima do paredão «senhor escritor, senhor escritor», enquanto acenava o braço com uma carcaça com fiambre na mão, à qual, ato contínuo, deu uma dentada. Acenei-lhe de volta com o caderno de apontamentos em riste, já que não me dava jeito nenhum acenar-lhe com o anemómetro, nem mesmo com o cronómetro. E antes que eu pudesse arrumar tudo na caixa de cartão canelado, que me sobrou de uma oferta de vinhos no Natal passado, já ela tinha entrado areal adentro e inclinado a cabeça para me cumprimentar com dois beijos. A rapariga da esplanada, fanática de sandes de fiambre com manteiga, amante de Luís Sepúlveda, que quase me havia tratado com indiferença no nosso último encontro em Sesimbra, aparece-me quase eufórica a correr em pleno areal da Costa da Caparica, quase tropeçando numa prancha de surf espetada na areia, indo de encontro a uma criancinha que caiu de cu e ficou a chorar, enquanto uma rapariguinha, talvez dos seus doze anos, talvez irmão da mais pequena, a comer um chupa de rebuçado cor-de-laranja e a segurar na outra mão um moinho feito de papel de lustro, se virou para ela e lhe chamou «estúpida!». Indiferente, sorriso de orelha a orelha, depois das tais duas beijocas, perguntou-me «novidades?», e eu «nada».

Subimos lado a lado a escada de acesso ao paredão, ela já tinha acabado de comer a sandes, ajudou-me na caixa, não que fosse pesada, mas apenas por gentileza, eu «não te incomodes», ela «ora essa», eu «mas o contrário é que normal», ela «deixe-se de machismo», eu «estás então a chamar-me velho», ela «novo, não estou, mas você vai aí ocupado com o seu caderninho, não para de tirar apontamentos» e eu «já acabei», ela «o livro?», eu «não, os apontamentos», ela «pode-se saber de quê?», eu «não tem nenhum interesse para o crime do número 43» e ela «a propósito, eu estive cá a pensar umas coisas…». Chegamos finalmente á esplanada de um conhecido restaurante, em que o seu dono usa uma barba muito comprida e é um fanático adepto do Glorioso e sentamo-nos. E foi aí, já com dois cafés à nossa frente, ela a fumar um cigarro e eu «ainda fumas?», ela «infelizmente», eu «não deixas porque não queres», ela «qualquer dia vai ter uma surpresa», eu «pensa nisso», que reiniciamos o diálogo.

- Pensaste em quê?
- No seu livro.
- Nem sei se alguma vez irá ser um livro…
- Tenho andado a segui-lo.
- Não me digas que também lês blogs…
- E quem é que não lê?
- Tens razão.
- Eu arranjava-lhe já um final.
- Não tenhas pressa.
- Mas os seus leitores estão impacientes.
- hum..
- Nunca se deu conta?
- Dei.
- E então?
- Acho que só ficam a ganhar se esperarem.
- Senhor escritor, não sei se o hei-de tratar assim ou por senhor Constantino…
- Fica à vontade, podes mesmo tirar o senhor.
- Estava eu a dizer-lhe que pensei num final surpreendente.
- Não me digas que não estás a achar surpreendente a maneira como eu estou a preparar o final.
- Não é isso…

Tenho de interromper aqui o diálogo para vos dizer que em todas as frases eu poderia ter escrito disse ela franzindo um sobrolho, disse eu encolhendo os ombros, disse ela com um sorriso nos lábios, disse eu com ar preocupado e outras coisas que se costumam escrever e até mesmo pôr aspas. Mas não o fiz, propositadamente para não quebrar o ritmo e a fluência. Creio que me entenderão e provavelmente até aprovarão, neste caso concreto, esta tomada de opção.

- Então é o quê?
- Um final sem final.
- O que é que queres dizer com isso?
- Senhor Constantino, podemos falar baixinho para ninguém nos ouvir?
- Podemos…
- Então seria assim, bzz bzz bzz.
- bzz, bzz, bzz?
- Sim, bzz bzz bzz e ainda bzz bzz bzz. O que é que acha?
- Olha eu até há uns quinze minutos atrás pensei que, a seguir a Francisca, eu era o mestre dos finais complicados, mas estou a ver que tu superas-me.
- Acha que é complicado este raciocínio?
- Não acho, nem deixo de achar, vai é contra tudo o que eu tinha pensado para terminar o crime da rua 43.
- Por falar nisso, Já tem título?
- Bom, um crime… é um «Crime …»
- Eu estou é a perguntar-lhe pelo tríptico Crime da rua 43 – Histórias de Constantino e Ismael – Conto das ilhas de lá.
-Tenho alguns nomes provisórios. Gostas de “Hoje há pezinhos de coentrada”?
- E eu tenho dúvidas se será suficientemente apelativo. Ainda vão pensar que é um livro de culinária.
- Lá isso não é, mas que não se safa de ser uma grande caldeirada, isso não!

Convidei-a para almoçar. Aceitou. Chamamos o empregado e pedimos caldeirada para dois. Enquanto degustávamos um branco da península de Setúbal, acordamos os detalhes para o final do crime que vitimou Isabella Vicentini. No fim, depois da sobremesa, ainda me disse que teve pena de nunca ter conhecido Ismael Gusmán. Com certeza que os petiscos dele dariam um bom livro de culinária. E eu respondi-lhe que não me meteria nisso. E enquanto dois tratores alisavam o areal da Caparica eu, decididamente, achei que seria muita areia para a minha camioneta.


12 comentários:

  1. Eu já estou a passar-me dos carretos!
    Quer dizer, anda uma pessoa a dar cabo dos olhos e dos miolos, durante meses a fio, para no fim vir uma serigaita bichanar-te ao ouvido e o fim desta trama, urdida e desurdida a teu bel-prazer, chegar ao fim sem um FIM??
    Nem penses!!

    QUEREMOS SABER QUEM MATOU ISABELLA VICENTINI!!!

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  2. Antigamente as musas, também apareciam junto ao mar, mas não comiam sandes de fiambre com manteiga...*

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  3. Ah, a fulana tem um final para o teu livro, ou conto, ou blogoconto e tu deixas que usurpe o teu? Tá mali... :)))

    Essa da receita dos pezinhos de coentrada era uma muito boa ideia. Com outras receitas a acompanhar, que podiam ser lá da tasca do Ismael... E não, não me parece que fosse areia demais para a tua camioneta, se era a isso que te estavas a referir! :D

    Beijocas!

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  4. Anda uma pessoa longe daqui por uns dias e de repente vê na lista de leitura um título que lhe acena irressitivelmente fazendo a sua curiosidade ficar ao rubro... e vai-se ver estava-lhe a acenar com uma sandes de fiambre! Hum... cheira-me que este final ainda nos vai desafiar por algum tempo. E nós impacientes. Ai, Ai... :)

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  5. Vitor, expus a capa do teu livro lá mo meu canto.
    Quando puderes vai ver. Se achares que hei-de acrescentar mais alguma coisa diz. Nunca é demais publicitar.:)
    Beijinhos

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  6. Vitor
    Estou a perceber uma ciumeira danada desse encontro no areal de Caparica( esse nome me lembra um certo amigo querido que falava muito nesse areal)rs também faça-me o favor, mais um crime sem solução só por conta de uma caldeirada a dois? rs
    Constantino agora falando sério rs deixei lá a flor que disse querer ver a cores.De verdade nao muda muito,porque é branca esverdeada e tem momentos que está mais pra branca mesmo,passa lá de novo ,publiquei pra voce, ok?
    abraços e se vira aí- nada de se'entreter' e dar um fim sem fim rs nesse mistério tipo Agatha Christie.
    meu abraço grande

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  7. Um final...ohhhhhhhhhhhh jáaaaaa? Ou será que será um livro invulgar em que não há o natural "FIM"? Será que aqui o Constantino nos vai propor que sejamos nós a engendrar a continuação da história? Eu cá para mim ficava-me pelos belos pitéus que se degustam na tasca do Ismael regados com um bom vinho do Douro...esquecia-se o crime porque já prescreveu, não é assim que acontece no país que temos?
    Fiquei intrigada com bzbzbzbzzb..que terão sussurado?

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  8. Bem, isso não se faz, Vítor! Então um policial sem descoberta do assassino? Cheira-me que isso traz água no bico...

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  9. É pá, não me leve a mal, mas tenho uma ideia ainda melhor para o final: Bzz bzzz bz bzz

    Cheguei atrasado? O livro já está fechado?

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  10. Aguardando o verdadeiro final do fim :)

    bjs Vitor
    cvb

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