«Ó homem, deixe-se disso», vociferou Isaurinha Bate-Sola.
«Isso agora não interessa para nada», rematou. Afinal a célebre frase da
televisiva Teresa Guilherme não passa, aparentemente, de um plágio. Decorria o
ano de 1956 e, reunidos na tasca de Ismael Gusmán, na Rua dos Correeiros em
Lisboa, os suspeitos e não suspeitos, os inspetores da polícia e até o
taberneiro, ouviam a preleção de Ismael Sacadura Flores. Afinal quem teria
matado com sete facadas uma pobre, infeliz, desgraçada, desditosa,
desventurada, infortunada, malfadada corista italiana que ganhava, parece que
honestamente, o pão, mostrando as pernas e fazendo realçar as nádegas, sobre
sapatos de salto muito alto, num teatro de revista no Parque Mayer, em Lisboa,
era o que se pretendia saber e vinha agora o jovem Espinheira ainda imberbe,
quiçá eivado de pensamentos malinos que à época eram deveras, feroz, assanhada
e diga-se que, para bem da moral e dos costumes, justamente censuráveis, propor
à assembleia que se fizesse uma pausa para que ele pudesse ler mais um capítulo,
mais propriamente o VII, do conto de Francisca, apelidado com algum a
propósito, diria o narrador, quiçá porque adora a palavra quiçá, quiçá
desanuviador do pesado ambiente que entretanto se gerara, apelidado, dizia o
narrador, como um conto de perdição. «Isso agora não interessa para nada» é
pois a frase chave deste intermédio que surgiu no referido meeting, frase que hoje estamos a ver terá sido proferida pela
primeira vez por Isaurinha Bate-Sola. O escritor ainda pesquisou alguma
literatura antiga desde Estrabão até Sófocles, passando por Platão e Aristóteles,
lendo minuciosamente o antigo testamento, procurando em Émile Zola e Eça de
Queiroz, em Camões e Cervantes, em Jean-Paulo Sartre e António Damásio, de
Pessoa e Álvaro de Campos a Drummond de Andrade, de Jorge Amado a Erico
Veríssimo, de Descartes a Lavoisier, de Martinho Lutero a João XXIII, não se
encontrou elocução similar, pelo que «Isso agora não interessa para nada», à
falta de melhor, vai ser atribuída a Isaurinha Bate-Sola, já que neste
relambório ainda não teve qualquer mérito, tendo encornado até, passe o calão
de circunstância para dizer o mesmo que colocar um par de chifres, o meu amigo
Ismael Gusmán, o que para o escritor é imperdoável e procedido, em várias ocasiões
e situações, como uma puta, que é o que ela era na verdade, coitado do pai, um
honesto sapateiro. Quem não gostou muito disto tudo foi, claro está, a nossa
romancista surpresa, a nossa contista de eleição, a nossa anotadora de serviço,
a inesperada amante de Ismael Sacadura Flores, a parte-corações, pois até o
Rogério ficou dececionado, a tia, talvez emprestada, de um marinheiro sem
sextante nem rumo, mas acima de tudo a grande inspiradora do escritor que aqui
modestamente se apresenta, como Constantino Guardador de Vacas, já que não tem
mais idade para sonhar, a nossa bem conhecida Francisca. E se não chegaram a
vias de facto foi por causa de Ismael Gusmán.
Ismael Gusmán era uma boa pessoa. Disso creio que o narrador
já conseguiu levar a mensagem aos leitores deste conto de Constantino, cuja
biografia já teve ocasião de ser publicada. O narrador, neste momento e uma vez
já conhecem detalhadamente o escritor, apenas pode acrescentar que ele é benfiquista
e que isso não foi incluído na biografia para não criar divisões entre os seus
leitores, pois consta que há pelo menos dois que são do Atlético e um que é adepto
do Carrazeda Futebol Clube, uns seis que torcem pelo Sesimbra e, ainda outro,
pelo Quarteirense. Ismael Gusmán era um homem pacífico, apaziguador e
absolutamente nada presunçoso. Quando soube que o escritor iria referir estas
suas caraterísticas de homem comedido, desempoado, simples, humilde,
encabulado, recatado, falou ao ouvido do escritor para que ele não gastasse
todos os sinónimos num só texto ao que o narrador acedeu e nem vai aqui
reproduzir o que mais sobre Ismael Guzmán o escritor se espraiou. Pois Ismael
Gusmán, apagou a luz e no silêncio repentino que se instalou, o jovem, o
imberbe, o mancebo, fez ouvir a sua voz e leu para quem quis ouvir, que foram
todos menos Isaurinha Bate-Sola, o sétimo capítulo de “Contos da ilha de lá” de cuja autora, Francisca, só não se notou que
estava ruborizada porque as luzes continuavam apagadas.
“Os membros da tribo só saíam da
aldeia por dois motivos. Caçar e, quando se tornava necessário, iniciar o
ritual do casamento. Era da tradição que qualquer jovem da tribo, antes de casar,
fosse desvirginada por um ‘estrangeiro’. Por um lado, a jovem nunca seria
acusada pelo futuro marido de que tivera tido um romance antes com alguém do
mesmo grupo. Isso diminuía drasticamente as relações de desconfiança. Por outro
lado, uma vez que a cerimónia era pública, haveria a certeza que a jovem era
virgem antes do casamento. Desta vez, o estrangeiro escolhido fora eu. Quando a
jovem parou de lacrimejar, respirei fundo. Abstraí-me da plateia e fiz amor com
ela. Para ser preciso, o ato durou apenas o tempo de a desflorar. Uma ladainha
ecoou em todo o anfiteatro e como que por magia, as nuvens, que desde há horas
cobriam os céus, desapareceram e o luarejar misturou-se com a luz dos archotes.
Foi um ato lancinante. Para mim, por me ter prestado a tão lapuz ritual. Para a
implume jovem, porque o seu rosto se contorceu de dor no momento da penetração.
Quando a ladainha que as anciãs entoavam em uníssono terminou, o chefe ergueu
alto o lábaro com as armas da tribo - um falcão com focinho de jacaré. Numa
lemniscata desenhada no chão, onde num dos círculos me sentei e, no outro, se
sentou o futuro noivo, o tratado que antes haveria assinado com sangue, foi-nos
lido em voz alta, por uma espécie de feiticeiro. Teria de ficar na aldeia até
que a gravidez da jovem se consumasse”.
E depois
de lido mais um capítulo do conto de Francisca, Ismael Sacadura Flores recomeçou
a sua preleção tendo-se vindo a saber no final da mesma quem teria morto
Isabella Vicentini. E correndo o risco de que algum dos meus leitores me ameace
a mim, Constantino, com sete facadas por não revelar o autor material de tão
horrendo e indescritível crime pede o escritor ao narrador que vos comunique
que isso fica para mais tarde. Na sua incomensurável bondade trouxe Ismael
Gusmán ao escritor duas bolachas torradas e um copo de leite. E assim continuou
este a escutar atentamente o inspetor Ismael Sacadura Flores até que adormeceu de
cansaço.
É sempre tempo para sonhar...
ResponderEliminarEu torço pela Académica...
O Ismael Gusman é mesmo boa pessoa. Só uma boa pessoa levava duas bolachas e um copo de leite ao autor que nos mantém à semanas em suspenso...*
Cá para mim o mistério vai ser como o de Fátima... guardadinho durante uma pipa de anos para aguçar o apetite dos crentes!!
ResponderEliminarSó te falta dizer depois que estava tudo escrito nas estrelas!!
Ehehehehe...
De regresso a Lisboa -e ainda envergonhado com o espectáculo degradante do Pingo Doce que me deixou em estado de choque- as leituras atrasadas do Ismael reconfortaram-me bastante, caro Vítor.
ResponderEliminarObrigado.
Abraço
Bem me parecia que aquela magana da Teresa Guilherme não teria inventado uma frase tão pertinente, sem a plagiar de alguém! E agora, o que vai a Isaurinha Bate-Sola fazer? Processá-la judicialmente? :D
ResponderEliminarNão percebi lá muito bem o que é que os rituais tribais tinham a ver com a Isabela, aquela das 7 facadas (lembras-te?), mas pronto, o defeito deve ser meu. Que não leio vários livros ao mesmo tempo, mas muitos blogues de seguida, de certeza... :)))
Beijocas!
Reconheço que é difícil seguir os "Contos na tasca do Ismael", "O crime do carapau de escabeche" e o "Conto das ilhas de lá" ao mesmo tempo, mas tu vais lá...
EliminarBeijocas.
Não se preocupe o narrador em revelar o nome do autor do crime que vitimou a bela Isabella.
ResponderEliminarEu já estou conformada em ser este mais um mistério que ficará por desvendar.
Isso agora também já não interessa nada, ou quiçá - também adoro esta palavra - o meu interesse se tenha virado inteirinho para os "Contos da ilha de lá". Deixa lá a autora ruborizar-se. Ela tem de se convencer que sensualidade não tem nada a ver com despudor. Parolices dessas já nem constam nos anais romanescos...
Sabes Constantino? Acho que me estou a apaixonar pelo Ismael Gúsman. Precisava tanto de alguém com a sua incomensurável paciência e bondade que me trouxesse umas bolachinhas torradas e um copinho de leite à cama, em dias de preguicite.
Quando voltar aí à tasca, vou tentar uma aproximação.
Pensas que ele já esqueceu a Fernandinha?
Beijinhos.
Quem ficou ruborizada fui eu ao ler os rituais da "Ilha de lá", não que seja púdica ou ignorante àcerca dessas práticas, só que julgava que o autor não era pessoa para andar metido nessas andanças, mas pronto salva-se a situação com as bolachinhas que parecendo que não adoçam sempre o ambiente.
ResponderEliminarBeijos
Manu
Narrador Vitor
ResponderEliminarpor acaso a investigação sobre Lavoisier tem a ver com a impulsão dada ao texto? Se o texto fosse escrito à mão sobre o papel pardo da tasca dos Correeiros não havia crayon que chegasse...