Quando hoje acordei senti uma vontade inexpugnável de
escrever. Por outro lado, o narrador que há em mim, divertia-se com este
impulso e saía de mansinho para se assomar à janela. Lá fora chovia e fazia um
vento pré-ciclónico. Eu, escritor, queria dizer que as gotas que me cobriam,
como se de uma diáfana cortina se tratasse, os vidros da minha janela, auguravam
que lá fora chovia. Eu, escritor, queria escrever que o zumbido que pelas
frinchas das janelas e das portas me penetrava os tímpanos, sugeria-me que lá
fora o vento enrolava nuvens, transportava pólenes, beijava gaivotas e
acariciava os ramos do meu plátano. Eu, narrador, abri um pouco a janela e fechei-a
de seguida. Constatei e transmiti ao escritor, como se lhe fizesse um favor, que
lá fora chovia a cântaros e que um vendaval arrasava árvores e telhas. Sem
querer, estive quase a deixar escapar um palavrão, mas o escritor reprimiu-o. Eu,
escritor, que hoje pela manhã acordei cedo com uma inexpugnável vontade de
escrever, terrível vontade essa, obsessiva compulsão para o papel e a caneta,
reprimi o palavrão do narrador e não o escrevi. Com palavrões não se faz poesia
e a chuva que bate em pancadas no zinco do telhado da garagem em frente à minha
janela, umas vezes fortes, outras irregulares, mas suaves, pode não ser poesia
mas escreve pautas de fás sustenidos e bemóis de sol e de dó, em compasso
ordenado numa sinfonia concorrente com a do cantar do rouxinol. Eu, narrador,
preocupei-me em contar ao escritor que hoje os pássaros não saíram dos ninhos,
não abandonaram o resguardo das folhagens, não espreitaram para fora das
chaminés, não colocaram asas fora dos telheiros. Eu, escritor, depressa
compreendi que o pica-pau não sairia do buraco da sua árvore para acompanhar a
sinfonia das águas cadentes no telhado de zinco da garagem em frente à minha janela,
nem o silvar da flauta de vento que me entrava pela frincha da janela do quarto
de dormir. Eu, narrador, quis que o escritor soubesse e disse-o em voz alta,
que aquela frincha precisava de conserto e não de concerto e que existiam fitas
isoladoras apropriadas. Talvez que hoje fosse um dia bom para os arranjos,
talvez que hoje fosse o dia certo para que saísse à rua e na loja de ferragens procurar remédio para as frinchas da minha janela do quarto de dormir. Eu,
escritor, pensei que isso não seria muito conveniente se bátegas de água
fustigavam campos e estradas, enchiam represas e barragens, lavavam almas
empoeiradas, molhavam mais a imensidão do mar, se o vento sacudia para-chuvas.
Eu, escritor, olhei-me de pantufas e de pijama de cetim, acendi o cachimbo, dei
duas baforadas e preparei-me para descrever o pequeno-almoço, que em breve
Genoveva me serviria, de crepes de centeio com doce de mirtilo e amoras, de
leite de cabra em jarro da Companha das Índias, de café quente de São Tomé (que
Genoveva preparava primorosamente), cujos aromas se misturavam com âmbares do
perfume de Genoveva, com as rosas do seu odor a sabonete e com os pólenes
transportados pela brisa que, agora sim, amainara o vento, prendera-o com
amarras feitas com fios dos cabelos loiros de Genoveva e beijava o fumo exalado
da minha pipa de antigo marinheiro. E a tosta morna já aguardava o foie-gras, a melancia e o ananás, descascados
pelas finas e brancas mãos de Genoveva, cobriam por completo um desenhado prato
de porcelana, o sumo de ancoras silvestres resplandecia nos resplandecentes
cristais que a cristalina Genoveva parecia beijar quando lhe tocava com os
veludos. Eu, narrador, gritei para mim próprio, escritor, que as torradas já se
estavam prontas na torradeira, que o copo de leite tinha de ir de imediato para
o micro-ondas de forma a evitar as torradas, acabadas de sair, não viessem a
arrefecer. Eu, escritor cheguei à cozinha, não sem antes ouvir a crítica do
narrador que me censurou do meu aspeto desgrenhado, com a barba por fazer,
embora de cara lavada, olhei para o leite no pacote tetra-pak brotei-o alvo para um copo de vidro, olhei para a amarela
cor de margarina que a manteigueira de plástico continha, dei de caras com azul
anil da toalha de mesa que tinha deixado de véspera, reparei no cor-de-laranja
dominante que emanava da fruteira repleta de laranjas e tangerinas, tomei nota
do vermelho doce de morangos ainda no frasco de supermercado e deslumbrei-me
coma o roxo das glicínias que da floreira me trepavam o candeeiro de jardim.
Eu, escritor, sabia que aquela seria uma manhã de arco-íris. Eu, narrador,
tomei o pequeno-almoço, vesti uma inenarrável gabardina, penteei os cabelos,
fixei-os com brilhantina e saí para comprar o isolamento para as frinchas da
janela. E se vos narrei, narrado está.
Meu querido amigo
ResponderEliminarNarrou e está narrado...e por sinal muito bem, quase que nos faz entrar na cena.
Deixo um beijinho
Sonhadora
E bem narrado... por sinal! : )
ResponderEliminarOi Vitor
ResponderEliminarMe vi nessa janela,nesse temporal.
E quase ouço o zumbido do vento nesse aguaceiro que caiu assim "a cântaros"!
e olhe só,o pequeno-almoço da Genoveva me abriu o apetite logo agora que não é hora...e era tudo que precisava pra amenizar a raiva de ter a compulsão da caneta mas nao ter o talento descrito nessas linhas .Ah se tivesse! saberia dizer que o friozinho dessa noite e o vento balançando as cortinas, também me faz dormir de pijama e meias soquete...rs
e preciso terminar imaginando que quem sabe amanha posso tentar quem faça pra mim crepe de centeio, doce de amoras porque mirtilo eu nao conheço e uma xicara de leite da vaca porque cabra nao tem por aqui rs
e claro talvez não glicinías porque do lado de cá do atlântico é dificil achar ,mas umas margaridas colocadas encima da mesa do café da manhã talvez pudesse fazer jus a esse conto fabuloso que acabo de ler.
Parabéns Vitor, nao é atoa que coloquei esse nome no meu filho caçula, o meu Vitor.Quem sabe ele será um escritor/narrador.Tomara.
Adorei ,
deixo um abraço e desculpe os devaneios, é culpa da madrugada e do Outono com suas manhãs radiosas( quase arco-iris) e suas noites friinhas.
Fique bem e volto depois atrás de mais narrações.
Corajoso este escritor que apesar do temporal não se coibiu de provodenciar as ditas fitinha para que amortizar o som do temporal.
ResponderEliminarE amanhã? teremos o narrador a descrever o som do silêncio depois das fitas postas?
Fico à espera.
Beijos
Manu
A eterna luta entre escritor e narrador, Vítor. Quando o primeiro se deixa aprisionar pelo segundo, umas vezes dá borrasca,outras traz a bonança.
ResponderEliminarComo foi este caso supimpamente descrito.
Narraste e escreveste muito bem, e assim ficou narrado e escrito que escritor e narrador, entre porcela da Companhia das Índias e manteigueira de plástico, conseguem coabitar e coexistir lindamente. É bonito!
ResponderEliminarLindo, também, é termos a certeza que depois da tempestade vem sempre a bonança, não é verdade, Constantino?
Beijocas.
O narrador, criatura de papel, que luta com o autor - identidade...mas o que será a identidade!?
ResponderEliminarAinda bem que o narrador se impõe.
Beijo
Grande algazarra que foi nessa casa, imagino a próxima reunião de condomínio...
ResponderEliminarQue pequeno almoço mais delicioso...
ResponderEliminarHá muito que não sentia um assim... tão...tão... apetitoso!
Ainda bem que contastes ao escritor o que se passava em teu dia dia, assim fizestes uma poesia e nos impulsionou a fazer a nossa própria, e eu desenhei em minha mente, um dia cinza com cheiro de romance e canção de passarinhos assustados...
ResponderEliminarVotarei para seguir o teu blog, estou na tentativa, mas está dando erro...
Esse embate entre narrador e escritor tão bem descrito prendeu a atenção do começo ao fim do leitor!
ResponderEliminarBeijo
Um duo que narraste na perfeição.
ResponderEliminarO pequeno almoço... crepes de centeio com doce de mirtilo e amoras, do café pude sentir os aromas... magnifico!
Beijos amigo, é um prazer ler-te!
cvb
Ui, quando o narrador que há em nós entra em conflito com o escritor que somos...a coisa complicasse.
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