domingo, 6 de maio de 2012

135. Ismael (50) - Estes não são os suspeitos do costume



Com apenas dois toques, nem um, nem três, mas realmente com apenas dois toques, se bateu à porta fechada, naquele fim de tarde, da tasca do galego Ismael Gusmán. Se Fernandinha não tivesse sido mandada embora daquele período histórico e apenas autorizada a voltar à novela lá para meados dos anos setenta do século XX, sob pena de graves consequências para a sua integridade física e, principalmente, para a integridade mental do narrador e dos leitores desta trapalhada, teria sido ela e levantar-se prontamente daquele banco de pernas altas, em que se costumava sentar por detrás do balcão, onde assentava um cotovelo e, de palma da mão em concha virada para cima, pousava o queixo nas horas mortas e espreitava de viés para a televisão a preto e branco, colocada numa prateleira por cima de um quadro com a fotografia de D. Ismael de Gusmán y Toledo, o falecido pai do meu amigo Ismael. Teria sido ela a levantar-se, como dizia, a encaminhar-se célere para a porta, para, corrido que fosse o ferrolho e entreaberta a dita, espreitar no lusco-fusco que àquela hora já era, sim porque a reunião se estava a alongar e a perguntar quem seria que tão despropositadamente batia assim na porta de uma taberna, sem usar a aldraba para o fazer. Teria sido, portanto e volto a repetir, Fernandinha que se iria inteirar do motivo de tão inesperada, para ela, quanto inoportuna visita, principalmente sendo aquela uma reunião da iniciativa de um inspetor muito conceituado da nossa polícia Judiciária. Muitos anos se haveriam de passar para que a eficaz e necessária polícia de investigação criminal viesse a ter um outro Flores, tão proeminente como o nosso Ismael Sacadura Flores, esse que um dia ainda presidiria a uma Câmara Municipal, quem haveria de dizer, deixando mais pobre a produção telenovelesca. Mas isso são coisas do futuro e nós cá continuamos em 1956 que foi quando Isabella Vicentini foi, efetivamente e, nunca é demais repetir, barbaramente assassinada. Com Fernandinha, coisa que muitas leitoras e principalmente leitores ainda hoje não perdoam ao escritor, fora de cena, quem teve que ir abrir a porta foi o nosso anfitrião, Ismael Gusmán, caramba que o narrador é chato, já lhe conhecemos o nome. Mais chato é o escritor ripostaria o narrador, sabendo de antemão que os outros também o sabem. Ora quem bate apenas duas vezes, nem uma, nem três, apenas duas, querendo com a sua presença inteirar-se de tudo e dos porquês das coisas, fazendo toc  toc em todas as portas, não poderia deixar de ser outra senão a comissária de polícia Alexandra Semião, mais conhecida nos meios policiais por Xana, só não podendo ser chamada de Xana Toc Toc porque essa já é uma marca registada, que os miúdos, vá-se lá saber porquê, gostam de ver no Canal Panda.

Apresentada que foi a comissária Alexandra Semião aos presentes, que ficaram a saber por quem seriam depois acompanhados à Esquadra da Mouraria e já com a porta da taberna novamente fechada, serviu à senhora, o nosso Ismael, o Gusmán, porque o outro é polícia, um café em chávena de vidro de onde exalava um cheirinho a bagaço mas que, por mor da senhora comissária Xana estar de serviço, todos comeram e calaram, não fosse o diabo tecê-las. E continuou então o inspetor Ismael Sacadura Flores, a quem Xana tratava por, «Ó Sacadura isto», «Ó Sacadura aquilo», só faltando mesmo tratá-lo por Sacadura filho, Sacadura amor ou Sacadura querido, tal era a intimidade que aparentava ter com o, efetivamente chamado, Sacadura, que com a sua dedução racional e linear, que como sabem, leitoras e leitores, já vos tive ocasião de dizer antes, conduziu à descoberta da careca do pilantra, que é como quem diz, conduziu a quem cometeu tão horrendo crime e que, se não fosse aviltante para a própria natureza do crime, dir-se-ia, quem molhou a sopa no peito da bela, elegante, simpática e também sexualmente poderosa, bailarina italiana, só que isso do sexualmente poderosa não está nas cogitações do escritor revelar neste livro. E é neste contexto que, virando-se para o Dr. Castro Ribeiro lhe perguntou se este não teria nada a dizer aos presentes sobre a sua relação familiar com o marinheiro Sebastião, não tendo contudo a intenção de deixar o juiz de direito jubilado, Castro Ribeiro, falar, já que aquilo não era um interrogatório, mas sim uma preleção.

E abrindo um caderninho pouco maior do que um bloco de apontar números de telefone, leu em voz baixa num murmúrio que nem um tísico conseguiria apanhar uma só palavra, duas ou três linhas, tendo-o voltado a fechar, guardando-o de seguida no bolso do lado direito do casaco. E continuou agora em discurso direto, apenas para deixar descansar o narrador, que já lhe dói a garganta de tanto narrar, dando, por sua vez, a vez ao escritor, que está folgado das pontas dos dedos, de continuar a escrever, pois que ainda é jovem, apresentável e de boas famílias. Só que por causa das tosses e talvez fazendo birra por causa desta inesperada atitude do narrador, isto hoje está bonito, está, resolveu o escritor dar um salto no discurso e passar quase para os finalmente.

«… E é assim, que vamos encontrar Francisca, a tratar como irmã a pobre Raquel Baruch, a quem chamavam Rosa da Madragoa, pois todas as manhãs saía do cais de Santos com uma canastra à cabeça a apregoar sardinha viva da costa. Nunca o senhor Ishmail perdoou ao Nuno, que era assim, por Nuno, que a sua sobrinha se referia a ele quando escrevia em cartas de papel fininho e, não menos de baixa gramagem, envelopes circundados com as cores nacionais, vermelho e verde e que traziam já pré impressos a menção “por avião” quando escrevia para seu tio Ishmail Baruch, que na época ainda vivia na Áustria». Neste momento Castro Ribeiro baixou a cabeça e olhou para o chão, que é para onde olham as pessoas que baixam  a cabeça, desde que não estejam de olhos fechados. Continuou Sacadura ou seja, mais formalmente como o momento exige, Ismael Sacadura Flores: «Quando o jovem Sebastião nasceu, ainda não se notava que iria ser coxo como o seu tio-avô Ishmail, mas via-se logo que era a cara chapada de Castro Ribeiro, seu pai. Nuno Castro Ribeiro vinha com alguma frequência a Lisboa por mor da sua paixão por Raquel, que conheceu um dia que teve de escolher um rodovalho para grelhar numa paródia de comes e bebes com outros colegas advogados num congresso em Lisboa, deixando vazios, por dois ou três dias por semana, os seus aposentos em Vila Nova de Gaia onde em tempos teve um escritório de advogados, mas isso foi antes de se ter tornado juiz, mas nunca foi capaz de assumir a paternidade do futuro marinheiro». O narrador ousa interromper o escritor para informar que naquele dia, não só o rodovalho era fresquíssimo mas também a salada mista estava magnífica, com tudo o que tinha direito, incluindo os pimentos assados e para perguntar aos leitores se isto não está a ficar romântico, digno de uma novela radiofónica, onde um juiz de direito, ex-advogado de nome e créditos firmados na praça nortenha, que até come rodovalho que é um peixe fino e caro, se apaixona por uma simples peixeira, vendedora de carapaus e de sardinhas, vá lá de chicharros também e, uma vez por outra, rodovalhos. Voltando de novo ao escritor e ao discurso direto do inspetor Sacadura:  «Quando Raquel morreu, após ter escorregado numa rampa de acesso ao Mercado da Ribeira e batido com a canastra numa montra e com a cabeça no chão, pensa-se mesmo que a canastra só serviu para a desequilibrar ainda mais, Nuno veio a conhecer Francisca que era como que uma perceptora de Raquel e foi amor à primeira vista». Cá está mais uma cena romântica, tão linda, que faz até chorar, ousa interromper de novo, o narrador. E continua o inspetor da polícia: «Casaram pouco tempo depois e Castro Ribeiro pode assim ajudar a criar o filho, a quem tratava carinhosamente por Sebas, este que sempre tratou afetuosamente Francisca por tia e esta, por sua vez, que sempre tratou, carinhosa e afetuosamente, para poder usar os mesmos adjetivos, Sebastião, como um filho. E porque é que o senhor Ishmail Baruch, nunca perdoou o Dr. Nuno Castro Ribeiro?» perguntou o inspetor Ismael à assistência, ciente que, apesar do discurso um bocado enrolado do polícia, não se tinham esquecido ainda de que foi praticamente assim que o inspetor, pela mão do escritor, já que o narrador nem se quer meter nisso, começou este pedaço de texto. Pois continuou então o reputado Ismael Sacadura: «Nunca lhe perdoou porque não gostou nada, ouso até dizer, não gostou mesmo nada, mas mesmo nada, friso, repito e acrescento que poderá ter sido ou terá mesmo sido a gota de água que fez transbordar o copo, ou seja, o que conduziu ao corte de relações entre os dois homens, de saber que um homem de tantos recursos, como era e ainda é o Dr. Castro Ribeiro, e com aquela afinidade familiar, ex-namorado da sua sobrinha, que sabe-se lá por que razão teria escolhido Portugal para viver, sem se saber ainda se naquele tempo, em meados dos anos trinta do século passado, Portugal iria entrar ou não na Segunda Grande Guerra e também não se saber ainda se viria a haver alguma Segunda Grande Guerra e se o Hitler iria perseguir ou não os judeus ou quiçá outro povo, pai, embora não oficialmente assumido do seu sobrinho-neto, se abastecia de charutos marados num quiosque rasca do Cais do Sodré em vez de os comprar na sua loja, a genuína casa havanesa, a única importadora autorizada dos mais puros charutos cubanos. E se Castro Ribeiro tinha recursos para os comprar! E se eles eram de primeira qualidade! Primeiríssima! E se quisessem uma testemunha, não do crime, mas sim da qualidade dos seus puros, era chamarem o Dr. Ismael ben-Avraham, o seu mais conhecido consumidor».

Aqui chegados, o escritor começa a entrar com as ideias em parafuso, quer continuar a escrever um livro mas está a sair-lhe uma coisa embrulhada em folha de tabaco e, por isso, pede ao narrador para tomar ele as rédeas do texto antes que ninguém fique a não perceber patavina da história. E é assim que Constantino, outra vez no comando da narrativa, se vê obrigado, para rematar, a dizer que isto que acabamos de ler explica muita coisa.


16 comentários:

  1. Obrigada pelo comentário tão simpático.

    Beijos.

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  2. E eu, que lá pelos meados deste episódio já preparava mentalmente o comentário, fiquei desarmada. É que isto, nem por ter dois especialistas na arte de bem narrar e escrever, avança na direcção pretendida, ou seja, não ata nem desata e cada vez a meada está mais enleada.
    Gostei da Rosa Madragoa, mas o mesmo não direi dessa inspectora Xana. Tanta intimidade com o competentíssimo, eloquentíssimo e sagaz Sacadura Flores deixou-me com o pé atrás.

    Isto que acabamos de ler explica muita coisa?
    Explica pois! Eu diria que explica tudo.

    Vou mas é provar a salada mista, que tem um óptimo aspecto...

    Fica bem, Constantino!

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    1. Minha querida Janita
      É para dar suspense. O escritor já sabe quem matou a Isabella. Um dia destes ele conta ao narrador e este chiba-se.
      A Xana entrou para prender alguém. vamos lá ver quem é que ela vai levar para a pildra.

      Beijinho.

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  3. Se não fosse o desabafo final
    Pensava que meus carretos é que funcionavam mal...

    Valeu
    porque Francisca apareceu
    mesmo sem ter aparecido

    Percebido?

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    1. Rogério, grande poeta e comentador sempre a rimar.
      Um abraço.

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  4. Já imprimi desde "biografias" e vou levar daqui a nada para a consulta que tenho no Centro de Saúde...onde por vezes a minha médica faz-nos esperar horas, já que está sempre uma hora ou hora e meia com cada doente. Como tal e para me abstrair de conversas de comadres...vou pôr a leitura em dia.

    Até logo:)

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    1. Boa ideia! Um livro para se ler na sala de espera da caixa é uma grande dica.

      Beijinho.

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  5. Ai meu amigo li e reli, houve momentos deliciosos mas a narrativa já estou como disse "Janita May: É que isto, nem por ter dois especialistas na arte de bem narrar e escrever, avança na direcção pretendida, ou seja, não ata nem desata e cada vez a meada está mais enleada." mas digo-te que de facto és um perfeito narrador e se não terminas rápido eu é que ficarei com "as ideias em parafuso":):):)

    Bela salada, mas vou guardá-la porque à noite não posso comer alface:(

    Beijos

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    1. Fatyly May, o teus comentários são como o de todos os meus comentadores ar para eu continuar a respirar. Mas confesso que nunca fui tão perspicaz como tu a reparar que as minhas e os meus comentadores são todos da família May. Isto é que vai aqui uma saga!

      Beijinhos

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  6. Inspetor, narrador e escritor, cada uma a passar a bola ao outro, lá deu para perceber que esse Castro Ribeiro não é flor que se cheire, onde já se viu abandonar assim uma mulher com um filho seu nos braços? E, caso esta não tivesse sofrido esse brutal acidente, será que os deixava assim, ao deus-dará? E arroga-se ele um homem de ajuizar os erros alheios em tribunal, quando a sua conduta tanto deixou a desejar... ;)

    Mas pronto, quanto ao esclarecimento do caso ainda não tenho o menor palpite, mas já se vão percebendo quem são os bons e maus da fita... :D

    Beijocas!

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    1. Há gajos que são uns grandes malandros. nem a justiça escapa.

      beijocas.

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  7. O Vitor
    como tens o poder de queimar meus poucos neurônios! rs
    li reli e nao peguei o fio da meada., mas me divirto sempre com suas finas ironias.
    Confesso que nao fui muito bem na leitura porque nao vi nada explicado,como dizes.rs
    abraço

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    1. O conto já vai avançado e é fácil ficar-se em branco lendo um capítulo assim tão enredado. E isso explica muita coisa.rs
      Abraço

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  8. Tenho que confessar que para além das ligações amorosas e dos parentescos...não percebi o que é que isto ajuda a explicar...diz o narrador que é muita coisa...*

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