Como se pode verificar sem muito custo e após o que o
inspetor já disse sobre Fernandinha, o capítulo 32 está todo errado. E se
Francisca tem muito mérito nas suas notas e apontamentos que nos deixou no
manuscrito, tem também grandes responsabilidades nos erros aqui cometido, pois
a péssima caligrafia não deixa muita margem de manobra ao jovem Espinheira na
sua leitura e interpretação. É assim que, quando se diz que Fernandinha recebe
um telefonema de um primo de Lajeosa da Beira, uma análise mais atenta teria
levado o cabeça-de-vento do Espinheira a interpretar que Fernandinha recebeu um
telefonema de um primo, em Lajeosa da Beira. Isto é, não era o primo que estava
em Lajeosa da beira, mas sim Fernandinha que estava em Lajeosa da Beira quando
recebeu o telefonema do primo, que por acaso também era natural de Lajeosa da Beira,
facto que não é relevante. E tudo teria sido diferente. Fernandinha iria
emigrar para França, como aliás foi, e não teria ido dormir, como Espinheira
nos quis fazer querer e, diga-se em abono da verdade, Francisca rabiscou, com
um senhor rico da alta finança, como aliás, não foi. Coitadinha, embora isto
não seja uma novela lamecha, permite-se-me que lhe chame coitadinha, desta
roliça e coradinha menina que, no ano em que faleceu, não de morte morrida mas,
como sabemos, de morte matada, a nossa protagonista Isabella Vicentini, ainda
não tinha conhecido Lisboa. Sendo assim, e reposta que foi a verdade dos
factos, não é de estranhar que alguns de vocês recuem algumas páginas, tracem a
lápis toda a parte da história que deita Fernandinha na cama de uma pensão da
Mouraria com um ricaço da época ou que tomem ainda a decisão mais radical de
rasgar a página e destruí-la na lareira desvalorizando assim uma obra-prima
como a que aqui se está a produzir, mas isso é decisão vossa, o escritor lava
daí as suas mãos e tão pouco vai deitar mais achas nas fogueiras, nem na do
Espinheira e tão pouco na de Francisca.
Interrogam-se agora, como aliás é de se esperar e nem de
outra coisa o escritor está à espera que vos passe pela mente, que se não
dormiu Fernandinha com o homem da alta finança, que mais tarde se descobriu ser
pedófilo, mas que Constantino não quer revisitar nesta história, com quem
dormiu o capitalista? Ou melhor, porque nos parece muito mais importante do que
aqui andar com coscuvilhices de quem dorme com quem, quem anda a meter chifres
a quem, se Sebastião gostava da Isaurinha ou da Isabella, se Castro Ribeiro fez
um filho à Raquel Baruch, bem esta já é importante, é saber se essa tal pensão
com águas quentes e frias, existiu ou não existiu mesmo no contexto do que aqui
se romanceia. E para não vos deixar na expetativa, oiçamos o que o inspetor
apresentou nas suas congeminações, quando se anunciou quem matou Isabella. E
depois digam-me se eu não tinha razão em ter vindo a arrastar a trama até aqui.
«Pois então, minhas senhoras e meus senhores, posto que
Fernandinha não existe nesta fase do enredo e, portanto, ninguém a conhece, ou
melhor, é uma pacata rapariguinha que vai emigrar para França e talvez só daqui
a uns vinte anos é que venha fritar pastelinhos nesta tasca onde nos
encontramos», Ismael Sacadura Flores fez uma pausa, molhou os lábios num copo
de tinto, e esperou que o narrador interviesse para dizer que este mix literário que já passou e continuará
a passar por histórias da sua vida, romance policial, conto romanesco com
palavras difíceis e cena eróticas, tem também o seu quê de fantasia, aparecendo
Fernandinha e desaparecendo, como se fosse a fada madrinha do Espinheira, da Francisca,
do galego Ismael, do inspetor Ismael, do Rogério e mesmo do filho do senhor
Ismael da farmácia e, quiçá, do escritor. Continuou, então, já com a garganta
clareada, o inspetor da Judiciária, «posto isto, interessa ou não saber quem
dormiu com o homem do papel, que é como quem diz com o ricaço que gosta de
meninas e de rapazinhos, interessa ou não saber se existe a tal pensão logo ali
em cima, na nossa querida Mouraria, interessa ou não saber se jantaram no João
do Grão, interessa ou não saber se na receção um rapazinho esperou a hora de
silêncio, para sair à socapa do seu posto de trabalho?». E ante a admiração
geral, a propósito de nada ou, pelo menos, de nada descortinável pelo próprio
escritor, ouve-se o inspetor soltar uma sonora gargalhada, virar-se para o Espinheira,
perguntar-lhe se desta vez pode confiar na sua interpretação do manuscrito de
Francisca, pelo que recebeu desta um verdadeiro olhar fulminante, se o que iria
agora ser lido poderia ou não ser considerado fidedigno ou se o escritor terá
de vir daqui a mais uns quinze o dezasseis capítulos, dar o dito por não dito e
arranjar desculpas de interpretação do manuscrito e jogar aos bichos
Espinheiras e Fransciscas, quando ele, ele sim, o escritor, é que é o
responsável por todo este emaranhado. Espinheira levantou-se, dirigiu-se ao
inspetor, deu-lhe uma palmadinha nas costas como que a sossega-lo, pigarreou
uma vez, pigarreou outra vez, ia começar a ler, mas talvez o nervosismo lhe
tenha apanhado a voz e pigarreou pela terceira vez. Depois leu o manuscrito de
Francisca e todos ficaram a saber que às três da manhã já não se ouvia um único
ruído proveniente do amoroso enlace entre um depravado financeiro e, sabe-se lá
quem, talvez uma meretriz. Ficou-se a saber também, mas desconfia o escritor
que isto é invenção do Espinheira ou brejeirice do inspetor, que o obrigou a
referir, pois de Francisca não viria uma coisa destas, que o jantar de bacalhau
com grão fez das suas, pois vários traques foram ouvidos, alguns arrotos,
eventualmente com cheiro a alho ou cebola, também e umas risadas cúmplices, até
que tudo sossegou. E posto isto, diz-nos Espinheira que não há dúvida nenhuma
no que Francisca escreveu, recebendo desta, desta vez, um olhar sorridente e
cúmplice, que pouco depois a receção da pensão ficou vazia. Que o rapaz saiu
sorrateiro e nem precisou de dar duas voltas à chave. Que desceu a Rua do
Capelão, virou as costas à senhora da Saúde, atravessou o Martim Moniz, entrou
na Barros Queiroz, subiu as Portas de Santo Antão, entrou no Jardim do Regedor,
atravessou os Restauradores e, ao som dos saltos altos que pisavam a calçada,
se escondeu atrás de um candeeiro na Avenida da Liberdade. Nessa noite, quando
Isabella regressou a casa, sentiu medo. Sentiu muito medo.
Este mix literário, está a ficar cada vez mais mesclado ...
ResponderEliminarEsperemos que a fada madrinha do escritor o ajude a clarear um pouco as ideias...*
Ela está sempre presente :)
EliminarOK...albarde-se o burro à vontade do dono!
ResponderEliminarJá cá não está quem falou.
"...no que Francisco escreveu". Isto é outro personagem ou o autor-narrador-escritor está a ficar tão baralhado quanto o seu baralhado leitor?!
Como dizia o Max...isto só de olhar também cansa a vista.
E a minha pobre vista já anda tão cansada! Vê lá não me acabes com o resto. :)
Até à próxima, se não for antes!
Beijinhos
Obrigado Janita. Já corrigi.
EliminarBeijinhos.
Confesso que desta vez não me consegui concentrar no texto, pois a palavra "rececionista" causa-me arrepios até no pêlo mais escondido...
ResponderEliminarAmigo Rafeiro, o meu pai conta-me que também ficava arrepiado quando tinha de escrever farmácia, mas depois acostumou-se. Mas às vezes ainda me diz, que estas cousas modernas também têem as suas vanctagens.
EliminarVerei sempre "rececionista" como um gaijo que defende a recessão!
ResponderEliminarOlá, Vitor!
ResponderEliminarDe um Vitor para outro, esta história é uma meada bem enrolada; que o amigo vai com muito talento desfiando e voltando a enrolar, certamente satisfeito por saber que no processo nos vai queimando os neurónios...
Eu leio-a com prazer, gosto do estilo, e está muito bem escrita.
Abraço amigo.
Vitor
Passo só para dizer que fui ver a exposição e deixei a minha marca no livro de "protocolo" com uma mensagem especial para a sua bela fotografia do Samouco. Logo à noite passo a saber notícias da Fernandinha...
ResponderEliminarPior que o outro livro dito de maus costumes... aqui nem uma única mulher se safa. Safa!!!
ResponderEliminarPrimeiro, criadas expectativas em torno da Francisca, e lá se foi a minha paixoneta, com a confissão meio gabarola, do Ismael Flores... Agora é a minha Fernandinha que está na berlinda e a ser objecto de zun-zuns que embora prontamente desmentidos, nunca se sabe se são invertidos... este escritor, tal como o narrador, não são de confiança e a qualquer momento a coisa se complica, se enreda... começo é a achar que isto, bem escrito, não passa de uma valente m**** (isto foi um desabafo, por terem chamuscado a honra da minha adorada, só isso, mais nada!)
Ai homem de Deus agora é a Fernanda que a meu ver o Espinheira quer é mais uma para o seu baralho, que de baralho nada tem...olha tu vais arranjando cada caldinho que te vou contar:)
ResponderEliminarMinha nossa:):)
A Fernandinha devia ser boa, roliça, de bom pegar...mas, quero eu lá saber com quem dormiu o tal capitalista!
ResponderEliminarvalente imaginação e endiabrada...