Poderia Isaurinha ter sido ela a autora do execrável
crime? Isaurinha era uma moça acima dos trinta anos, mas de ar jovial.
Sebastião andava pelos vinte e tal e, claro está, mais jovial ainda. Isaurinha
era alta e esbelta. Sebastião, embora coxeando ligeiramente, era alto e bem
constituído. Isaurinha tinha o seu palminho de cara. Sebastião, para homem,
poder-se-ia dizer que era um pedaço. Isaurinha não era culta talvez o
suficiente pra se apresentar a um concurso de televisão, se naquele tempo já
houvesse concursos de televisão, mas não era nenhuma bruta. Era mesmo capaz de
escrever uma frase com sujeito, predicado e complemento direto, ou mesmo com
nome predicativo do sujeito, mas era voz corrente, discurso direto e por vezes
comentado em voz passiva, entre o pessoal da Quinta do Conde de que ela não
fazia a menor ideia do que era um sintagma. Sebastião também não, apesar de
falar qualquer coisinha de inglês e arranhar o italiano. E o que é que tudo
isto poderá contribuir para responder à questão inicial? Poderia Isaurinha ser
a autora de crime tão hediondo? Isaurinha tinha já uma considerável experiência
de vida. Não só vivera largos anos com o nosso taberneiro Ismael Gusmán, o
galego, bem como, o que já é do conhecimento geral, andou enrolada com o filho
do senhor Ismael da farmácia. Sebastião, por seu turno, não terá frequentado
apenas os bares de má fama do Cais do Sodré. Embarcadiço, dos sete mares
marinheiro, de todos os portos vadio, de mulheres de vida fácil, meretrizes de esquina
e bailarinas de varão e de uma noite amantes, de uma noite Sebastião lhes era
amante também, em uma noite só que fosse, Sebastião lhes frequentava as alcovas.
Esta frase foi mesmo poética, reflete o narrador. Quites, diria Sebastião, se o
confrontassem com Isaurinha. Poderia, então, Isaurinha ter perpetrado tão
arrepiante desenlace? Isaurinha morava na Quinta do Conde, com seu pai, um
honesto trabalhador manual, artífice dos coiros e dos fios ensebados, do
martelo e da bigorna, das formas, do formão e da sovela, da arte de bem coser e
martelar, de bem colar e de bem pregar e para bem da verdade, da nobre arte de bem
engraxar e de bem puxar lustre, um, por assim dizer, artista, trabalhador e
honesto sapateiro. Sebastião morava na Quinta do Conde, na casa de sua tia,
emprestada porém tia, uma viúva respeitada e respeitadora que se, por acaso, o
escritor lhe inventou um caso com um inspetor de polícia era caso que só pela
cabeça do escritor podia passar para além do jovem Espinheira que sempre
desconfiou de que ali haveria moira na costa, dado os embrulhinhos, ora de
chamuças, bem denunciadas pelo seu cheirinho a caril, ora croquetes de atum de
lata, ora dos dois, que o inspetor sempre levava quando apanhava o autocarro em
Cacilhas, uma mulher de vários talentos, mormente a de contista e criadora de
ficções de caráter erótico ou, para ser mais preciso, de textos para mentes
desempoeiradas mas um tanto ou quanto safadas, uma anotadora de factos do dia-a-dia,
uma observadora de olhares, de movimentos e de silêncios, em suma uma criativa.
Isaurinha frequentava a mesma farmácia que Sebastião, Sebastião ia ao mesmo
lugar de frutas que Isaurinha, Isaurinha comprava castanhas quentes e fumegantes
ao homem do carrinho com assador, Sebastião era perdido por castanha assada. Isaurinha
fazia um bacalhau à Braz como não existe, ainda hoje, um único restaurante que
o faça. Sebastião encostava-se ao parapeito da janela de Isaurinha, sem que
esta alguma vez o desconfiasse, a saborear o cheiro dos seus cozinhados.
Isaurinha vestia vestidos colados ao corpo, realçando glúteos, excrescências
peitorais, curvas perigosas. Sebastião usava calça à boca-de-sino e boina
basca. Isaurinha ouvia o Tide na telefonia do carvoeiro, durante a semana,
Sebastião ouvia o relato da bola na mesma telefonia, aos domingos. Poderia
Isaurinha Bate-Sola ter consumado um crime que tem tanto de sanguinário como de
horrível? Isaurinha viajava de cacilheiro de Cacilhas para o Cais das Colunas
no Terreiro do Paço, só que era rara a viagem em que não se nauseava. Sebastião
fazia o mesmo percurso mas nunca, em toda a sua vida, Sebastião enjoou
numa vigem. Sebastião conhecia perfeitamente a tasca de Ismael Gusmán, amigo do
escritor, como já várias vezes aqui foi referido. Isaurinha era ela própria a
concubina, a amante, a esposa que Ismael estimava desde que a cantadeira Lucrécia,
um dia, se finou e se juntou ao Criador. Sebastião comia com gosto pataniscas
de bacalhau com arroz malandrinho de feijão. Isaurinha garantia, embora em
surdina, que um dia haveria de ser a sua patanisca, o seu caldo do arroz, o seu
feijão encarnado. Sebastião olhava para Isaurinha como que lhe suplicando isso
e ainda um arroz de lingueirão com alcabozes ou jaquinzinhos fritos. Isaurinha
ripostava olhando para Sebastião oferecendo-lhe tudo e a ainda a sobremesa.
Poderia Isaurinha ser tão vil que cravara não uma, nem duas, mas sim sete vezes
a faca no peito de uma modesta bailarina de revista? Era esta a pergunta,
nestes ou em termos parecidos, alguns deles já aqui usados pelo escritor, que o
inspetor Ismael Sacadura Flores fazia aos presentes na célebre reunião da tasca
de Ismael, na rua do Correeiros, enquanto entre ela e Sebastião o inspetor
dissecava semelhanças e cumplicidades. E, tendo Isabella Vicentini se
atravessado no caminho dos dois, pois se Sebastião já convergia com Isaurinha,
que necessidade havia de se formar ali um entroncamento? É neste mar de ciúmes
e paixões, de amores e ódios, de fados e romantismos, de músicas e silêncios,
de nuvens e de cacimbo, que Ismael Sacadura Flores navega, onde Sebastião
flutua e onde, provavelmente Isaurinha Bate-Sola se poderá afundar. Mas o
escritor fundeia aqui. Mandou parar a máquina e baixar a fateixa. Não ficará à
deriva, mas só responderá à pergunta se poderá ter sido Isaurinha a execrável
criminosa, mais tarde, lá pelo virar da maré.
Eu não gostava que fosse a Isaurinha...*
ResponderEliminarA fúria...o momento ...pode muito...até matar!
ResponderEliminargrata pela tua presença no meu blog num dia muito iportante para o meu irmão. Bj e um obrigada!
Isaurinha seria capaz...toda a gente o é, por isso é ao seu humano que devemos construir.
ResponderEliminarGostei muito.
bj
O italiano não se queixava quando o Sebastião o arranhava?
ResponderEliminarMesmo sem a maré virar já te digo: Não seria capaz, não senhor!
ResponderEliminarA Isaurinha não se tinha saído bem?
Olha, Constantino, as minhas fortíssimas suspeitas continuam a recaír sobre o tratante do aposentado - jubilado diz-se em castelhano- ( ah pois, estamos na tasca do galego) juiz de direito Dr. Castro Ribeiro.
Nenhuma mulher, por mais ciumenta que seja, seria capaz de desferir sete facadas, logo sete, no peito de uma rival.
É sanguinário demais!
Ai Constantino, do que tu te lembraste!
"Teatro Tide apresenta a novela radiofónica: Simplesmente Maria".
Esta Maria também ficou com um filho nos braços, salvo erro, dum Dr. e fartou-se de trabalhar, na costura, para ganhar a vida direitinha e honestamente!!
Recolhe lá a fateixa e ruma a outros portos.
Se não for possível encontrar um culpado que satisfaça os teus, quase exaustos, leitores, recomenda à inspectora Xana que prenda os do costume e fica o caso arrumado. Que tal?
O narrador narra e o escritor escreve, mas nós é que ficamos com os neurónios queimados...
Beijocas!
mas realmente tu és um verdadeiro contador de historias.
ResponderEliminarkis :=)
Olá, Vitor!
ResponderEliminarLi o que post, mas dada a ausência nos anteriores, confesso que ando aqui à deriva... perdi o rumo,e não sei responder à pergunta.
Ainda assim gostei de ler, de apreciar o talento do contador - que é muito.
Obrigado pela vista; bom fim de semana.
Vitor
Com tanto amor à mistura, sugiro ao escritor que iliba Isaurinha para que possa juntar os trapinhos com o Sebastião, se não for por mais nada, que seja pelos odoros que transbordam na cozinha da Isaurinha e que me deixaram a salivar.
ResponderEliminarManu
Apesar de a minha pitosguice me ter dificultado um pouco a leitura ( Ó Vítor, não é possível aumentar o corpo do texto?) estou convencido que Isaurinha não seria capaz de tal feito, mas eu sou muito ingénuo e às tantas estou enganado
ResponderEliminarBom fds
Carlos B.Oliveira
Eliminarpodes aumentar ou diminuir basta Carregares na tecla CTRL e no + para aumentar ou no - para diminuir:)
Desculpa o abuso
Oi Vitor
ResponderEliminarnao posso crer que algum "palminho de cara" consiga dar golpes certeiros e ficar assim toda prosa rs
claro que ainda nao consigo acompanhá-lo nessa saga, mas vou me metendo a entender rs
abraços Vitor
Mãe...
ResponderEliminarVocê que me deu o bem mais precioso.
“A vida”
Me esperou com tanto carinho.
Me ensinou os primeiros passos.
Bendita, és eterna mulher que me deu a luz!
Mamãe eu te amo embora a minha já
não esteja mais nesse plano.
sem você meus dias ficau mais escuro.
Você é meu eterno o meu raio de luz.
Mãe, neste dia, bem quisera poder te dar um abraço.
Te envio mil beijos ao céu
para um lindo anjo entregar para você
com meu eterno amor.
Um feliz dia das mães beijos na sua alma.
Evanir.
Acho que a Isaurinha não, porque ao longo deste livro tenho a sensação que o narrador tem uma certa simpatia por ela e uma pontinha de ciume do Ismael Gusmán e do outro Ismael e quem sabe do Sebastião e de outros.
ResponderEliminarGargalhei com o comentário da Janita e subscrevo...ai os meus neurónios:)