«Ekatrina», começou por dizer o inspetor Ismael Sacadura
Flores, fazendo com que todas as cabeças rodassem em direção à bailarina
clássica bielorussa, umas virando-se para a direita e outras para a esquerda
sem contar com aqueles que estavam praticamente defronte da jovem que apenas a
fixaram com mais atenção, «andava triste nos dias que antecederam a morte da
sua companheira de quarto», continuou o inspetor Flores, sem que esta frase
impressionasse quem quer que fosse. «A
verdade é que Ekatrina Smirnova tinha razões para isso», frisou dramatizando,
Ismael Sacadura Flores, inspetor chefe da brigada de homicídios da Polícia
Judiciária, ao acrescentar o apelido da, apesar de magra, ainda assim elegante
bailarina. E dito isto, fazendo uma pequena pausa para apalpar o ambiente,
questionou os presentes, quase como que declamando a pergunta, «E será que vos
interessa saber o motivo dessa tristeza?» A assistência vai trocando olhares
entre si, uns vão abanando a cabeça no sentido do assentimento, outros
encolhendo os ombros tentando demonstrar uma falsa indiferença, outros um
sorriso nervoso e outros até uma expressão de cumplicidade, mas Francisca, essa
não, essa estava empolgada. E ainda mais empolgada ficou quando o inspetor se
virou para o jovem Espinheira e lhe disse «Ó Espinheira, esta reunião está a
cansar-me, resuma você o meu relatório sem se esquecer de referir que Francisca
teve papel preponderante na descoberta do enredo». Não é, portanto, de admirar,
que só faltou ela levantar-se, fechar os dois punhos como faz o Cristiano
Ronaldo e festejar com os restantes. Ou então dar um beijo na testa do inspetor.
Espinheira, não obedeceu, em rigor, ao inspetor Sacadura
Flores. Em vez de resumir como ele pediu, leu tudo com todo o detalhe. Leu
mesmo coisas que para os meus leitores e principalmente leitoras, não interessam
para nada, como, por exemplo, aquele dia em Ekatrina Smirnova encharcou a
camisa de dormir com suor devido a um estado febril, derivado de uma gripe
apanhada na praia do Meco. Ela, cujo corpo fora talhado e esculpido para as
baixas temperaturas do clima continental europeu, onde ventos siberianos
congelam até os bicos dos fogões, não aguentou os trinta e quatro graus que se
fizeram sentir naquele dia. E porque é que eu digo que isto nada interessa às
minhas leitoras? É porque no suor da crise, no culminar do delírio, vejam
quanta poesia, aliás similar ao congelamento dos bicos do fogão, no ardor da
leitura do termómetro, na efervescência da derme tisnada pelo sol, na cambraia
branca da sua veste, deixava que os seios, não grandes como apraz a uma bailarina
da Companhia Nacional, pouco maiores que dois limões, não raro a caberem sem
excesso nas delicadas mãos do seu amado Ismaelix, deixassem desenhar dois
escuros e salientes mamilos. Ora isto, como é bom de ver, não traz nenhum
avanço para a divulgação, se bem que para a descoberta do crime já não seja
assim tão linear, do autor de tão arrepiante crime que, como todos sabem,
vitimou Isabella Vicentini. E se não o resumiu Espinheira, vai o escritor
tentar fazer o melhor que sabe e pode, para que não fiquem nem confusos, nem
com qualquer espécie de dúvida no contributo que Ekatrina aportou no desfecho
desta novela.
Ekatrina andava triste. Recebera uma carta da União
Soviética que o KGB conseguira fazer passar pelos canais clandestinos,
escapando assim ao crivo da PIDE, em que se lhe anunciava que a sua missão
tinha terminado. Sendo ela uma especialista em ouro, não ter descoberto onde
Isabella Vicentini guardara a medalha original, fazendo-se passear com uma
pequena joia de imitação, comprada algures num quiosque da Rua Barros Queiroz e
comendo as papas na cabeça de uma espiã soviética, não abonava nada em seu
favor pelo que teria de regressar de imediato à base. Este imediato, com uma
condescendência inacreditável em serviços secretos, mas sabe-se também que o
pai de Ekatrina tinha sido um homem muito influente no aparelho o que lhe dava
uma pequenina margem de manobra, ressalvava o tempo que Ekatrina teria de
gastar para poder partir sem dar nas vistas e muito menos que alguém
desconfiasse, renunciasse ao seu contrato com a Companhia, fizesse uma pequena
mala, adquirisse uma passagem para Paris e, não sabendo mais pormenores porque
o Espinheira, apesar de detalhar não os referiu, atreve-se o escritor a dizer,
etecetera e tal.
Ekatrina andava triste, mas a grande tristeza de Ekatrina nada tinha que ver com o
facto de não ter descoberto a medalha; nada tinha que ver com o ter de terminar
assim abruptamente a sua carreira de bailarina, onde ela tinha investido quase
tudo, nada tinha que ver com o ter de romper o namoro com o chefe de brigada
Ismaelix, um homem que usava uma trança até ao meio das costas e um bigode à
Chalana, porém branco, fosse naquela época, Chalana quem fosse, mesmo que ainda
não tivesse nascido, que não tinha mesmo; não tinha que ver com a quantidade de cisnes que o lago
tinha nem com a proteção do lobo e do Pedro; não tinha, também, que ver com a
tasca do Ismael, que embora situada na mesma rua onde morava, servia uns carapaus de
escabeche que lhe faziam lembrar o arenque de cebolada em conserva, mas para o
bom, que ela não comia, como também não comia o arenque, por mor de manter a
linha; não tinha nada que ver com o facto de em Belém se comerem pastéis de Belém; não tinha que ver com deixar uma cidade com marchas populares na avenida, com
fado nas tascas e nas vielas, com pregões matinais ao figo da capa-rota e à
fava-rica; não tinha nadinha, mesmo nadinha, que ver com a graça do amarelo da Carris nem com o
azul do céu, espelho do azul reflexo do incomparável estuário, toalha do nosso contentamento. A
sua tristeza prendia-se com uma coisa bem mais triste. Uma tristeza triste. Uma
tristeza sombria. Uma tristeza pressagiada. Uma tristeza mais do que
pressagiada, sabida. A tristeza que ela partiria para Paris e que Isabella
partiria para nunca mais ser vista. Isso, ela sabia-o, não perguntem ao
escritor porquê, porque o escritor acha que ainda não é tempo de o dizer.
Quanto ao inspetor Ismael Sacadura Flores, virou-se para Ismael Gusmán,
pediu-lhe para que ele servisse um copo de água ao jovem Espinheira, pois este
estaria com certeza com a boca seca e virando-se para os assistentes, disse-lhes,
com um embargo de voz, como se fosse uma noz a quebrar-se, que antes de saberem
se Ekatrina iria ou não acompanhar a comissária Xana até aos calabouços da
esquadra da Mouraria, o melhor era comerem todos um caldo-verde com uma rodela
de chouriço, que era mesmo acabadinho de se fazer e escutarem o que ele tinha
que dizer sobre a velha e misteriosa senhora de Trás-os-Montes.
O quê? voltámos à Ekatrina bicos de fogão? hehehehehe...tu nem imaginas o desenho que já tenho ligando os nomes e já tenho um emaranhado de "cores" pior que este novelo, desculpa novela!
ResponderEliminarParabéns e deves estar gozar com tudo isto não é? Pois ri-te- ri-te que levas com "ela" em cima!
Beijos
Cruzei-me uma ou duas vezes com Ekatrina Smirnova, na tasca do Ismael Gúsman. Não posso por isso dizer que a conheço bem.
ResponderEliminarNo entanto, fiquei triste com a sua tristeza e mais triste por ver recaír sobre a bielorussa, as suspeitas da morte tão brutal da sua companheira de quarto.
Neste entrementes de avanços e recuos e com a pouca vontade do escritor em ver este assunto deslindado, o verdadeiro culpado anda à solta e a rir-se de todos nós.
Não sei qual o sentimento dos demais leitores a este respeito, mas pela parte que me toca:
ISTO PRA MIM SÃO FACADAS!
Saia então o caldo-verde com duas rodelas de chouriço, a ver se aguento o que o inspector tem para dizer sobre a velha e misteriosa senhora de Trás-os-Montes....
Oh, sorte marreca!!
Fica bem, Constantino.
Um beijo.
Querido amigo, vou lendo o enredo... o escritor é deveras envolvente e envolve-nos até à ultima palavra... entretanto o caldo-verde, não era má ideia :)
ResponderEliminarbeijinhos
cvb
isto tá tudo emaranhado ai hôme de Deus desemaranha isto
ResponderEliminarkis .=)
Esta Ekatrina é pior que o furacão de New Orleans...
ResponderEliminarAbraço
Eu devo andar muito distraída...não me lembro de nenhuma velhinha misteriosa de Trás-os-Montes...*
ResponderEliminarEssa Ekatrina parece-me do género de fazer uma tempestade num copo de água...
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