O esplendor da tasca do meu amigo Ismael deu-se na segunda
metade dos anos oitenta do século passado. Para se almoçar na sua tasca, que
não era muito grande, diga-se em abono da verdade, era necessário fazer fila à
porta. Ismael, que respeitava todos os seus clientes por igual, não aceitava
marcações, tinha um serviço rápido e eficaz, trazia um rapazito a biscate, que
lá ia apenas fazer os almoços, mas que era muito despachado, simpático e
diligente. Lembro-me de ele gritar para a cozinha «uma laranja descascada ao
momento, para o senhor Constantino» e a cozinheira, a velhota, a que já me
conhecia desde os meus tempos de universidade, por passar por lá aos fins de
tarde quase sempre para petiscar, chegava a cabeça no passa-pratos, olhava para
mim, dava um sorriso e dizia ao Ricardo, «aqui está a laranja do senhor Constantino».
Mais do que ficar na bicha (*), custava-me estar a comer, com os olhos famintos
daqueles que tinham chegado depois e que olhavam para as mesas quase como que a
suplicar «despachem-se, pá, que a gente também quer comer». Lia-se-lhes nos
olhos a frase «despachem-se, pá, que a gente também quer comer», pareciam trazer
na testa um post-it colado em que se
lia em letra impressa «despachem-se, pá, que a gente também quer comer»,
traziam na lapela dos casacos, nos colarinhos do polos, nas mangas das
camisetas, néones que acendiam e apagavam com a dilacerante frase, para o meu
coração de manteiga, «despachem-se, pá, que a gente também quer comer».
Tatuagens, grafitis, cartazes, etiquetas, livros de instruções, bilhetes de
elétrico, estampagens, anúncios classificados, publicidade estática, bonés,
bulas de medicamentos, capas de discos, badanas de livros, caixas de jornais,
subtítulos, sinalização horizontal, cupões de concursos de TV, talões de
desconto em supermercado, identificadores dos polícias, placas de matrícula,
campainhas das portas, em tudo e em todo o lado, aparecia a frase,
«despachem-se, pá, que a gente também quer comer». Agora podem os leitores,
destes momentos que eu passei com o meu amigo Ismael ou na sua tasca e que aqui
vos costumo relatar, imaginar se um almoço pode cair bem a alguém, que está a
comer uma posta barrosã grelhada ao ponto, com batata frita, dois ovos
estrelados, duas fatias de bacon na chapa, estaladiças, uma travessa de arroz e
uma salada mista e que está a acompanhar esta refeição, mais ou menos ligeira,
com uma garrafa de vinho tinto do Douro, colheita selecionada ou garrafeira do
enólogo, e os outros, coitados, famintos, desesperados a olharem para um tipo,
com aquela cara de onde sobressaem dois olhos de carneiro mal morto, olhos de
quem está com uma vontade inebriante de chegarem junto a nós e suplicarem de
joelhos, de mãos postas, «despachem-se, pá, que a gente também quer comer».
Eram tempos em que o governo não tinha ainda proibido que se fumasse nos
restaurantes. Antes de serem pedidas as farófias ou o leite-creme, os morangos
com chantili, o doce da avó, o bolo de bolacha, a manga de avião fatiada, o
melão de Almeirim ou a maçã reineta assada com vinho do Porto, não para mim
porque eu comia «laranja descascada ao momento para o senhor Constantino», como
dizia o Ricardo, havia sempre um ou dois no grupo que tiravam o seu cigarro do
maço. E antes que chegassem á mesa as sobremesas, o queijo da serra, o
requeijão com mel, a sericaia com ameixas de Elvas, o toucinho-do-céu, o pudim
flan, as cerejas, a tarte de amêndoa, já havia uma nuvem de fumo, ligeiramente
acima das nossas cabeças que nos impedia de ficarmos olhos nos olhos com os
olhos de desespero, os post-its nas cabeça, os néones nas lapelas dos casacos
ou nas mangas das camisetas, as tatuagens, os cartazes, suplicando quase em delirium tremens, os rótulos das
garrafas, o remetente da carta, o bordado de Viana, a frase, a frase, a frase,
«despachem -se, pá, que a gente também quer comer». Ou então não. Talvez que em
vez a carne das terras do Barroso, o bife do Alto Minho, o naco na pedra, a
posta mirandesa, o bife à casa com ovo a cavalo, o prego especial à moda da
Tasca, estivéssemos a comer uma posta de bacalhau na brasa acompanhada de brócolos
e batata a murro, temperada com azeite quente e alho fervido no próprio azeite
e com umas rodelas de cebola fininhas por cima e, quem sabe, acompanhado por um
vinho branco de Borba, de Reguengos ou da Vidigueira e aqueles olhos
suplicantes, aqueles post-its na cabeça, aqueles néones nas lapelas, as
tatuagens, os grafitis, os cartazes, a publicidade estática, as senhas de
almoço, o verniz das unhas, os monogramas do lenço de assoar, a capa do último
LP dos Led Zeppelin, os versos do Ary dos Santos, a canção do Sérgio Godinho, a
campanha eleitoral às sete da tarde na RTP, os toldos das esplanadas, os outdoors nas paragens de autocarros, a
voz rouca da Kim Karnes, o Passeio dos Alegres e a frase, sempre a frase, a
dilacerante, a desesperada, a suplicante … Também não me parece que fosse
necessário tanto desespero, tanta angústia. A gente só ia demorar mais um
bocadinho. Assim que tomássemos a bica. E além disso a gente já pediu a conta.
(*) – Fila de espera
Nota:
A foto foi tirada à mesa do almoço na Casa do Xisto, que
fica num desvio (5 kms), na estrada entre Paredes de Coura e Extremo
(entroncamento com a Nacional entre Arcos de Valdevez e Monção). Além da
simpatia do dono, o sr. Délcio e do empregado, o senhor António, come-se bem,
mas é mesmo bem, bebe-se bom vinho e se quiserem podem pescar nos lagos de
trutas.
Espero é que nesse sítio onde tiraste a fotografia não hajam clientes a dizerem "despachem-se, pá, que a malta quer comer". E aqui entre nós, eu até esperava, mas se estivesse com muita fome e visse malta a sacar de cigarros, era caso para os apagar nas pencas dos fumadores! Abraço!
ResponderEliminarQue repasto! Gostei da explicação em (*)! : )
ResponderEliminarOlá, Vitor!
ResponderEliminarSó de ler a lista de pratos da tasquinha do Ismael, já fiquei a salivar...
E olhar os outros a comer enquanto se espera,e já com a barriga a dar horas, dá mesmo vontade de lhes gritar: despachem-se, que estou com fome...Muito bem retratada a situação, com fino sentido de humor.
E já agora, como acréscimo à informação dada, ali bem pertinho de Paredes de Coura, há um outro restaurante, de nome Victor, onde se come um divinal bacalhau na brasa com batatinhas a murro...
Abraço amigo, bom fim de semana.
Vitor
Com estes acepipes todos a tasca do teu amigo Ismael, bem podia concorrer com esses restaurantes que proliferam por aí, onde se paga um dinheirão, mas onde é chique para alguns, refastelarem-se nos cadeirões, não direi para encher a barriga, mas serem vistos, porque é "bem".
ResponderEliminarVeio-me há memória um tasco que também tive à beira mar e onde se comiam uns belos duns petiscos e onde também haviam aqueles que pensavam:-Despachem-se também queremos comer:)))
Obrigada pela sugestão, quem sabe um dia não me perca pela Casa de Xisto!!!
Beijos
Manu
Bom, para ser franca, já me perdi há muito nas histórias (ou estórias?) da tasca do Ismael, entrecortadas por outras, sendo que esta é de abrir o apetite mesmo ao mais niquento... :))
ResponderEliminarBeijocas e um fim de semana cheio de bons acepipes! :)
Oi Constantino
ResponderEliminarFiquei quase a morrer de rir do 'Noventa por cento' que li agora lá bem abaixo,porque sempre demoro pra acompanhar os blogs a tempo real, muito muito engraçado seus tiques e aquela do leite foi difícil conter o riso sabia? assim voce me mata rsrs
... e com todos estes petiscos que dizes ter aí nesse bar do Ismael com certeza a 'angústia'pra prepara esse prato devia ser bem maior do que a "bicha" rs não é?
abraços Constantino meus abraços
gosto muito da sua genialidade e da linguagem,principalmente.
Constantino,
ResponderEliminarnem sei como tu te conseguias concentrar no divino sabor de todas essas iguarias e, ao mesmo tempo, vislumbrares, para além dos olhares angustiados dos expectantes futuros comensais, os monogramas que eles tinham bordados nos lenços de assoar.
E ainda eu pensava que era cusca...
Beijo e bom fim de semana, sem abusos gastronómicos. :)
Essa tasca tinha mais sobremesas que muitos restaurantes finos*
ResponderEliminarAi que fome...:)
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