Francisca escreve
muito bem, dizia o inspetor Ismael Sacadura Flores olhando para o jovem
Espinheira, depois deste lhe ter lido a página noventa do manuscrito. O jovem
paleólogo tinha conseguido decifrar a terceira parte do conto de Francisca
enquanto, por outro lado, se ocupava das biografias que ela escreveu de alguns
dos personagens, eventualmente envolvidos na morte por esfaqueamento da pobre
corista italiana. Sete facadas é coisa que não se faz a ninguém, mas esta infeliz
não conseguiu ter melhor sorte. Leia-me isso
outra vez pedia, quase encarecido, o inspetor Ismael Flores ao jovem
estudante de Letras e avençado do Estado, leia-me
outra vez, Espinheira, que isso é tão
bonito. E o Espinheira leu.
«A idiossincrasia do
que parecia ser o chefe do grupo, dado que todos os restantes pareciam
idolatrá-lo, criou-me a ilusão de que seria idóneo. Quando me desloquei a
caminho do deserto, estava realmente convencido que o era. No entanto pequenos
igarapés cortavam o terreno em quase todo o seu comprimento e em toda a sua
largura, criando malhas incomensuráveis de água, o que nos obrigou a dividirmo-nos
em ínfimos grupos de apenas três indivíduos mas que mal cabíamos nas igaras
estacionadas em fila. Chegamos finalmente a uma pequena ilha, ao fim de mais de
12 horas de viagem sem nada comermos. Apenas um gole de água, que um dos
indígenas me ofereceu, por uma única vez. Quando chegamos, o meu aspeto
apresentava-me como um ser ignóbil. A ilha estava iluminada aparentando ser uma
igreja natural. De repente, tive a sensação de me ter deixado iliçar. Ígneos
archotes debruavam um caminho que me conduziria ao mais ignoto dos mundos. Eu,
que não era da igualha destes autóctones, estava a ser convidado a sentar-me à
volta de uma mesa coberta das mais exóticas iguarias. Não arranjei coragem para
ilidir. Só pensava se sairia dali ileso»
É ou não é lindo, Espinheira?, confesse lá.
Espinheira que não era pago para dar opiniões ou para confessar o que quer que
fosse, mas apenas para decifrar os quase hieróglifos cursivos de Francisca,
assentiu com a cabeça e perguntou ao inspetor se afinal queria saber alguma
coisa sobre o Dr. Castro Ribeiro ou não. O inspetor Ismael Sacadura, olhou para
o relógio e ao reparar que ali por perto estava o Rogério, cumprimentou-o
tirando a boina basca que por vezes usava, principalmente quando estava frio.
Rogério que se tinha sentado na mesa ao lado era todo ouvidos no conto de
Francisca que, penso eu, narrador destes feitos, ainda poderá vir a ser uma
coisa interessante. Levantou-se então o inspetor, arrastando consigo o jovem
futuro licenciado em filologia românica, sentando-se ambos numa mesa mais
recatada. E entre dois carapaus de escabeche e um branquinho caseiro dos lados
de Torres Vedras, diz Espinheira que a páginas quarenta e oito e também
sessenta e dois, Francisca se refere ao seu ex-marido nos seguintes termos.
“O Castro Ribeiro era um homem muito interessante na sua
juventude. O padrinho dele, um padre de uma freguesia do concelho de Carrazeda
de Ansiães, depois de ter mandado o menino estudar no Seminário Maior do Porto,
ainda o enviou para Coimbra terminar o ensino liceal, dado que o Nuno, seu
primeiro nome, não era dado às coisas da Igreja. Vivendo numa República, Castro
Ribeiro terminou os cinco anos do curso de Direito em oito, mas entre
bebedeiras e mulheres ficou-lhe uma famosa reputação de advogado honesto e
competente, com escritório montado em Vila Nova de Gaia. Especializado em
importações e exportações logo se deu com os maiores produtores de vinho do
Porto, com as suas festas privadas e com as inevitáveis bacantes. Vinho e mulheres,
mulheres e vinho. Bem me avisaram quando me casei com ele...”, lamentava-se
Francisca às tantas, mas o inspetor pediu a Espinheira que saltasse as partes
piegas que isso seria coisa mais falada no futuro e nada adiantaria para
desvendar o crime. E assim Espinheira obedeceu, de modo que ouvimo-lo, quero
dizer, ouvimo-lo não, eu é que inventei isto pois sou o narrador, mas fica bem
dizer ouvimo-lo continuar, já saltando alguns parágrafos. “Contratado que foi
para descobrir o que se teria passado com uma conta de um judeu famoso, de
origens russas, aberta em Zurique, vem Castro Ribeiro muitas vezes a Lisboa”. Senhor Inspetor, vou agora saltar aqui umas
frases que, ou são piegas ou são carnavalescas se não se importa, solicitou
a permissão, o jovem Espinheira, ao inspetor encarregado por este homicídio,
que todos sabemos ser Ismael Sacadura Flores. Entretanto, Ismael Sacadura
Flores, pediu a Ismael Gusman, o dono da tasca da Rua dos Correeiros e meu
amigo, galego de nascimento, que lhe trouxesse mais dois carapaus, com bastante
molho e uma fatia de pão, enquanto Espinheira acabava de arrotar o gás de um
pirolito, com sabor a limão, que tinha acabado de beber. Salte sim, Espinheira, deixe para outra ocasião as pieguices e fale-me
lá dessa conta na Suíça, anuiu o inspetor ao pedido de Espinheira, sem
qualquer tipo de contestação. Oh senhor
Inspetor, retorquiu o Espinheira um bocado embaraçado. Se eu lhe contar tudo agora não fica nada para dar algum suspense à
cena. Não acha que deveríamos deixar para depois do escabeche. É que até a mim
me estão a apetecer uns carapauzinhos.
Enquanto os dois comiam, levantei-me, dirigi-me discretamente
ao balcão, olhei para o decote de Fernandinha, hoje um pouco mais atrevido do
que é costume, ainda mais atendendo à época e falei baixinho ao ouvido do meu
amigo Ismael Gúsman. Sabe meu caro, eu suponho
que aquele número atrás da medalhinha que os judeus andam à procura tem alguma
coisa a ver com a conta na Suíça, o que é que você acha? E depois de o ver
franzir os dois sobrolhos de uma só vez é que me atrevi a perguntar. Mas diga-me cá uma coisa amigo Ismael, o que
é que isso pode ter a ver com o facto do Dr. Castro Ribeiro andar às seis da
manhã, em pleno Cais do Sodré, quando a Ribeira já se enche de pescado, frutas
e legumes, orégãos e flores, entre elas gladíolos e magnólias, aos gritos de “eu
mato aquela puta, eu mato aquela puta”? O Ismael olhou para mim com um ar
muito sério, quase como se fosse meu pai e repreendeu-me. Constantino, estamos em mil novecentos e cinquenta e seis, o menino
ainda nem fez um ano de idade, isso são palavrões que se digam? É por estas
e por outras que eu gosto mais de escrever ficção científicas do que romances
de época. Acho que um dia destes ainda escreverei, “2087, o assassínio de uma
corista em Andrómeda”.
É melhor intervalares mesmo com uns carapauzinhos de escabeche, que isto de andar para a frente e para trás no tempo é muito cansativo.
ResponderEliminarOh Teresa, pois é, tem de ser assim, as histórias são um constante vaivém temporal e temos de nos alimentar.
EliminarEh lá... isto até já mete contas na Suiça? Bem, o que mais virá por aí?
ResponderEliminartchan, tchan, tchan, tchan......
Eliminareu estive em carrazed DE ANSIÃES E NAO VI O ABADE
ResponderEliminarKIS :=) SE CALHAR ESTAVA COM A AFILHADA DO PADRINHO
Uns não vêem o abade outros não vêem o padeiro e outros ainda ficam a ver navios.
EliminarIsto promete...
ResponderEliminarDecote atrevido ou menino atrevido?! : )
Se calhar, o raio do rapazola também era atrevido... :)
EliminarEste vocabulário "riquíssimo" da Francisca fez-me lembrar um professor que tinha uma graça imprevisível.Um dia, um dos alunos respondendo a uma pergunta - já não me lembro o quê - utilizou uns vocábulos de alto calibre. Não se fez esperar,tocou à campainha e chamou um contínuo pedidndo-lhe para trazer o Torrinha...
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