Oh Senhor Constantino,
assim começou a conversa que o meu amigo Ismael Gúsman quis ter comigo, mas com
sotaque galego. E porque não estou com vontade de o fazer, nem sei escrever muito
bem em galego, vou-vos relatar tudo isto em português. Oh Senhor Constantino, eu até estou com medo. Eu que tinha acabado
de entrar na taberna da Rua dos Correeiros fiquei bastante baralhado. Medo de quê?, pensei em perguntar-lhe,
mas não perguntei. Olhei primeiro para o fundo da sala e como o pide não estava
lá, achei que não era coisa política. Olhei para as prateleiras, intactas e
arrumadinhas, não havia sinais de assalto ou tentativa, também não seria por
aí. Diga-me o que é que o aflige, amigo
Ismael, ainda pensei em incentivá-lo a prosseguir, mas não o incentivei. Olhei-lhe
o rosto, os olhos tinham um ar normal, não me pareceu que estivesse doente. Oh homem acalme-se e diga-me o que é que tem,
pensei ainda em dizer-lhe, mais ou menos de uma forma imperativa, embora
tentando não o forçar em nada, mas não lhe disse coisa alguma, já que Ismael
estava numa pilha de nervos como nunca lhe houvera visto. Desembuche, homem, sou todo ouvidos, foi o que finalmente me
ocorreu, mas acabei por, naquele instante, ficar calado.
Tudo isto não durou mais do que uma fração de segundo, quer
os meus pensamentos não consumados nem em palavras nem em atos, quer os meus
olhares, que rondaram, a bem dizer, os trezentos e sessenta graus. Não mais de
que uma breve fração de segundo o que, em determinadas circunstâncias, tem
tendência a parecer-nos uma eternidade. Mas o que é a eternidade senão um
somatório de pequenas frações de tempo que arrastamos e acumulamos por séculos
e séculos? E se eu agora desatasse aqui a filosofar sobre o tempo, sobre a eternidade,
sobre o sobrenatural, sobre o exoterismo, sobre quiçá o apocalipse, sobre o
julgamento final, sobre a redenção das almas. Não teria interesse nenhum,
juro-vos, não só porque não sou especialista em nenhum destes assuntos, mas
também porque me desviaria completamente do tema deste texto e, mais ainda, do
real objetivo do compêndio que ando a compilar. Voltando ao assunto que me
levou a escrever este capítulo, o qual não é definitivo pois ainda o porei à
consideração daquela moça que encontrei um dia à mesa do café e que por coincidência
ou não, vim a saber mais tarde, é filha do senhor Ismael da Ervanária, doutor
licenciado em farmácia e responsável técnico daquele estabelecimento da Quinta
do Conde. Se ela achar que o deva publicar então levá-lo-ei ao vosso
conhecimento.
E neste nano-segundo decorrido desde que Ismael me disse, Oh senhor Constantino, eu até estou com medo
e este preciso momento em que estou a dar continuidade à frase, já quase que me
ia perdendo. Oh Senhor Constantino, eu
até estou com medo de não dar seguimento a isto, acabou finalmente por
concluir a frase. E, ato contínuo, mostrou-me então uma carta anónima,
acabadinha de chegar no correio das dez da manhã, com uma oração a S. Judas
Tadeu, uma série de ameaças veladas em castigos e punições, a ele e à sua
família que, para o efeito, era naqueles tempos ainda e só o Ismael Gúsman
Júnior ou simplesmente Júnior, como era conhecido o seu filho, já que o neto, o
Ismaelzinho, ainda não tinha nascido e ainda uma série de recompensas,
nomeadamente a sorte grande na Lotaria Nacional consoante ele escrevesse ou não
uma nova oração, juntasse àquela e mandasse a sete pessoas diferentes num prazo
de três dias.
Eu lembro-me desta cena perfeitamente como se fosse hoje. Bem
sei que naquele tempo toda aquela gente já tinha esquecido a morte de Isabella,
a corista italiana que tinha sido assassinada com sete facadas, sete sim, não
foram poucas, o que era normal, pois isso tinha sido há dezoito anos atrás.
Nunca mais na Rua dos Correeiros, nem tão pouco na Quinta do Conde houve
similar tragédia. Mas era disso mesmo que Ismael e outros, que eu também vim a
saber terem recebido cartas similares, tinham receio que se viesse a repetir,
se quebrassem aquela corrente. E meus amigos e amigas que tiveram a paciência
de me ler até aqui, quereis saber como é que lhe respondi e o que é que eu,
efetivamente, fiz? Molhei os lábios num copo de tinto, daquele carrascão que
deixa os bordos todos vermelhos, dei-lhe um beijo na testa e disse-lhe, Ismael, meu caro e grande amigo, durante os
três dias não apague o sinal do meu beijo; isto é um selo que merece ostentar
se tiver a coragem de quebrar essa corrente.
Antes vinham pelo correio... agora vêm por e-mail. Tenho uma colega que deve morrer de medo... tal como o Ismael. Então, não falha uma e eu estou sempre na lista dos destinatários. Não há dia em que não tenha que carregar no delete. Já pensei em devolver-lhe as correntes multiplicando por 100 o número de destinatários a quem ela teria de reencaminhar a coisa... para ver se a demovia de uma vez por todas de mas mandar a mim :))
ResponderEliminarNeste momento já não é só nos e-mails, é também na blogosfera e nas redes sociais. Cada corrente que se fosse de ar andavamos todos constipados.
EliminarAgora que já limpei as lágrimas de riso e consigo enxergar dois palmos à frente do nariz...
ResponderEliminarTanta conversa para no fim nos dizeres que deixaste o pobre Ismael ainda mais aflito do que aquilo que já estava!
Aposto que ele limpou a marca do teu ósculo e não quebrou a corrente.
Entre dois males escolhe-se sempre o menor, claro!
Ai, estes amigos...
Beijinhos.
Se não quebrou a corrente perdeu o direito ao selo. E a propósito quantos selinhos já te mandaram? E já disseste quais as sete sobremesas que te fazem ficar mais magra? LOL.
EliminarBeijinhos e boa semana.
:) Nem correntes, nem selos, não aceito nadica de nada, obrigadinho mas não :)
ResponderEliminarO Ismael é que ficou na dúvida. Eu não. LOL.
EliminarChiça, já é a quadragésima segunda carta que recebo e querem que eu não quebre a corrente? Só espero pelo prémio do Euromilhões para contratar uma secretária e pôr a correspondência em ordem...
ResponderEliminarAinda se fossem correntes de ouro, daquelas que se usavam para pendurar o relógio de bolso. Mas dessas ninguém me manda nenhuma.
EliminarUm abraço, boa semana.
Também não quero saber de correntes, excluo logo a mensagem, antes de saber que castigos me esperam e ficar como o pobre Ismael. Em contrapartida, fico contente de ter chegado aqui (vim pelo Rochedo) e ter lido este fantástico texto.
ResponderEliminarAcho que vou parar por aqui mais vezes.
Muito grato pela sua visita. Espero encontrá-la por aqui mais vezes. Também já a visitei e confesso que gostei.
Eliminar: )
ResponderEliminarTb eu recebo "correntes" quase todos os dias! Estamos a viver a onda das correntes. Daqui a pouco tempo aparecera outra coisa qualquer... : )
Catarina, isto é de todos os tempos, dantes era no correio, agora é no e-mail, nos blogs, nas redes sociais. Eu sou um quebra-correntes fanático.LOL.
EliminarQue prazer que tenho em quebrar essas correntes!!
ResponderEliminarComo me lembro do JN estar repleto de orações dando graças a S. Judas Tadeu... agora é mais números de telemóveis de "gostosas" que também são de graças!!
me liga vai!
EliminarIsso é que eram correntes a sério, não é este SPAM foleiro que hoje em dia conspurca a internet. Não passas a corrente? Sete facadas! Abraço!
ResponderEliminarOlha lá, RP, tu só tens direito a dar sete dentadas e não sete facadas :)
EliminarAbraço.
Há praí muito boa gente que não se atreve a quebrar essas correntes e outras similares, porque, embora não seja supersticiosa, diz que dá azar:-))))))
ResponderEliminarAbraço e sorriso
Pois eu, como sou baixinho até por debaixo de escadotes passo.
EliminarAbraço.
se ele molhasse as beiças no branco verde que eu molhei havia ele de ver o que era bom!
ResponderEliminarkis :=)
Pois é AvoGi, mas lá na tasca do Ismael só havia tinto do Cartaxo e morangueiro, naquele dia.
EliminarBeijinho.
Antes de me deixar acorrentar pela escrita, deixe que lhe diga que a foto está espectacular e não há corrente que trave essas águas.
ResponderEliminarA seguir espero que a filha do senhor Ismael da farmácia não ouse desaprovar este ou outros escritos que venham a surgir, porque onde iria eu arranjar motivo para me deliciar com estas correntes de bom humor?
Beijos
Manu
Ahahah, não sabia que esta "praga" já era tão antiga, as primeiras correntes que conheci ainda era menina e moça, não tinham tantos castigos para os "prevaricadores", limitavam-se a enviar uns postais que os coleccionadores agradeciam... ;)
ResponderEliminarMas esse "selinho" depositado na testa do Ismael galego, merecia um toque de baton... :)))
Beijocas!
De algum modo esse "selo" postado na testa do Ismael há de servir para alguma coisa. Nem que seja para quebrar a corrente. E eu ri muito, Vítor Fernandes, durante toda a leitura!
ResponderEliminar;)