sábado, 11 de fevereiro de 2012

99. Ismael (23) - Salada de orelha



O jovem Espinheira passeava pelo Rossio, fazendo tempo para um novo encontro com o inspetor. Aquele crime já levava uma semana e embora não fosse o manuscrito de Francisca o único elemento da investigação, o inspetor Ismael Sacadura Flores não perdia pitada do que o Espinheira ia conseguindo descobrir. Entretanto, uma subequipa, de que o agente Ismael de Almeida era o responsável, tinha assentado arraiais na Quinta do Conde, com grande pena e contra a vontade deste, tão habituados estavam os pombos às portas do Teatro D. Maria II, à sua assídua presença e ao tão apreciado milho com que sempre os nutria. Uma outra subequipa, onde, surpresa das surpresas, o nosso amigo Ismaelix com o seu bigode à Chalana, porém branco, pontificava, fez de seu quartel-general o quinto andar sob penhora, do próprio prédio da Rua dos Correeiros onde as sete facadas fatais foram proferidas, porém no sexto, o que justificava ele ter sido visto a sair do prédio, como foi dito capítulos atrás, lado a lado com Ekatrina Smirnova também ela dançarina, porém clássica.

E já que estamos em maré de poréns, o jovem Espinheira desembarcou no Terreiro do Paço, porém no Cais das Colunas, que naquele tempo serviam de cais ao vapor e que não tinham ainda sido retiradas por causa das obras do Metropolitano, porém já repostas e seguido a pé até ao Rossio onde as fontes e o seu constante jorrar de água, porém insalubre, sempre o fascinou. Deixemo-nos agora de poréns e vamos diretos aos epílogos sem muitos todavias porque há, contudo, ainda muito que contar e também muito para ser descoberto (neste momento eu deveria começar a frase seguinte com um portanto mas não me apetece). Seria certo e sabido que a reunião entre Espinheira e Sacadura se faria na taberna do meu amigo galego, Ismael Gúsman de seu nome, como todas e todos, os que têm ainda paciência para me ler e que não deram por mal empregados os quase vinte euros que pagaram por este livro, ainda por cima de capa mole com badanas, à espera que o Círculo de Leitores o publique com capa dura, numa edição com dez por cento de desconto para os sócios, por ser novidade, bem o sabem. Não faltarão na assistência, embora discretamente, os nossos figurantes e protagonistas para compor o ramalhete, quer seja a Fernandinha que estreou um avental novo com girassóis e borboletas e já aprendeu a fazer pipis estufados e, principalmente, salada de orelha de porco com alho, cebola picada, coentro, pimenta moída, azeite e vinagre, a vinte e cinco tostões o pratinho, quer seja o tipo de fato cinzento e chapéu, que levanta sempre as maiores suspeitas desde o dia em que os esbirros da PIDE apreenderam o livro de matemática ao Constantino, o narrador desta história e autor deste intragável pseudolivro. E se pensavam que com toda esta conversa iriam ficar hoje a saber porque é que o Dr. Castro Ribeiro era citado a páginas dezassete, depois de ter sido visto a sair do Barba Roxa, um bar pouco afamado do Largo de S. Paulo, cerca das seis da manhã, perdido de bêbado e a gritar Eu mato aquela puta, eu mato aquela puta, para quem o quisesse ouvir, então tirem o cavalinho da chuva. É que o Espinheira tinha acabado de decifrar a página oitenta e nove e o conto que Francisca estava a escrever começava a interessar mais aos dois do que o próprio crime. Até o Rogério, que tinha coçado a cabeça ao fim da primeira leitura, agora estava com todos os sentidos em alerta. E foi assim que o jovem Espinheira leu mais um pequeno trecho do conto da misteriosa Francisca (aqui o autor meteu água, porque quem é misteriosa é a idosa senhora de Trás-os-Montes; e mais água meteu porque o obrigou a colocar dois parêntesis num curto espaço de texto o que, dizem alguns puristas da arte de bem escrever, não é de bom tom).

“Os autóctones tinham um ar fúfio. As gaforinas não ajudavam à criação de uma imagem menos aviltrada. No entanto os pescoços exibiam fulgentes colares de estranho metal. Ensaiaram uma ginga em meu redor e tentaram comunicar. Não sei se por ter acordado no momento, os sons que emitiam eram-me ininteligíveis. A última vez que tinha escutado algo similar, foi de uns indígenas de Timor Oriental que tentaram ensinar-me o seu galóli. Tive medo que se tratasse de antropófagos preparando a funçanata. Num pequeno hiato de tempo, um deles de aspeto galhardo, apercebendo-se de que eu, efetivamente, não estava atinando com o seu linguarejar, ensaiou uma ideografia simples mas eficaz. Aí eu não tive coragem para ilidir. Aceitei de imediato. Era um convite para repasto. Seria? “

Quem pareceu não ter ficado nada satisfeito com esta concorrência, desleal, disse ele, foi Ismael Gúsman.  A sua casa de pasto era já conceituada em toda a baixa lisboeta e se se quisesse um petisco, era ali. Logo agora que Fernandinha sabia fazer salada de orelha. Para Ismael, esta Francisca estava a sair melhor do que a encomenda. Ai estava, estava. 


20 comentários:

  1. Ah, coitado do galego, agora até vem a outra falar na concorrência, para lhe roubar a clientela... :)))

    Os livros de capa dura do Círculo dos Leitores são cada vez menos, numa empresa que agora segue outra política editorial. Infelizmente!

    Mas continuamos a seguir o fio à meada... :D

    Beijocas!

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    1. Bom dia Teté.

      É importante que não se percam. Eu às vezes sinto-me perdido :)

      Beijinhos, boa semana!

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  2. Enquanto lia o texto, que os inspectores folheavam, não me saía das narinas cheirinho bom dos pipis estufados, já que a orelheira fria não bota cheiro!!

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    1. Manuel, tem o cheirinho dos coentros.

      Um abraço e bom fim de semana.

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  3. meu amigo

    sem grandes 'todavias' devo dizer que, mesmo sem ler os capítulos constantes nos posts anteriores, já fiquei a saber quem é o Isamael... também comecei a perceber a trama, com o jovem inspetor Espinheira e a misteriosa Francisca, para além dos outros personagens...

    mas voltarei...porque, para mim, a procissão inda vai no adro.

    abraço

    olinda

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    1. Bom dia Olinda,

      Ainda aqui há muito mistério para desvendar e muita história para contar.

      Beijinhos, boa semana!

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  4. Olá, Vitor!

    Esta história do Ismael é uma saga, muito bem contada, em que quem mais se diverte parece ser o autor, enquanto tenta divertir-nos a nós.
    Eu, como já dela estive desembarcado, confesso que estou um pouco perdido no rumo.Mas ainda assim divirto-te e acho-lhe graça, pelo fino humor que ela tem.

    Um abraço amigo.
    Vitor Chuva

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    1. Olá Vítor,

      para ser sincero divirto-me à grande; espero conseguir transmitir essa diversão por quem aqui passa.

      Um abraço e boa semana.

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  5. ai queredo! salada de orelha? o que se comia !!!
    kis _=)

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    1. Boa dia AvoGi,

      E ainda se come; Então uma saladinha de orelha de porco bem temperadinha, não cai bem com um tintol? Ai não que não cai!

      Beijinhos, boa semana!

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  6. Tão complicado e com tantas personagens como a vida, este teu livro! Estou um pouco tonta (mas não estarei senpre, com a vida?)
    Continuo a gostar da ironia e das piscadelas de olho ao leitor:-)))

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    1. Justine,

      até ao final pode ser que ainda haja mais gente; afinal, como diz, é mesmo a vida ela própria.

      Beijinhos, boa semana!

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  7. Porém, todavia e contudo, que não se amofine o Ismael Gúsman!
    O repasto da Francisca não tem nada a ver com pipis nem orelha de porco.
    Concorrência à tasca? Nãããã!!
    Queres saber de uma coisa, Constantino? Eu já estou com o Espinheira e o inspector Sacadura Moita Flores, mais interessada no manuscrito da proscrita do que na descoberta do autor do horrendo crime.

    Beijinhos e boa semana.

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    1. Bom dia Janita,

      sabes eu já li o conto toda da Francisca que o Espinheira está a tentar decifrar; vais ver que não te vais arrepender de esperar.

      Beijinhos, boa semana!

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  8. Só não percebi (tenho destas coisas) o porquê (ou o motivo) de ser de mau tom utilizar (entre outras coisas) muitos parênteses nas frases.

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  9. Nos misteriosos contos de Agatha Christie o crime sempre compensa... aqui parece-me que também .E Ismáel Gusman que se cuide !concorrencia desleal é o que mais se vê em casos assim.
    Já a salada ... sei nao prefiro as de alface que nao me compromete rs
    abraço Vitor

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  10. -Ora sai um um pratinho de orelha de porco e um tintinho se faz favor, enquanto eu fico aqui encantada a ler esta trama que aó invés de me fazer chorar , me deixa com um sorriso que demonstra bem o apreço por este escritor e cujo livro contarei comprar um dia na FNAC, com ou sem desconto:)))

    Beijos
    Manu

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  11. Desta vez entrei a jurar que não ia beber do tinto... Ah, mas a orelha... a orelha... Vai daí, ao fim da primeira leitura, cocei a cabeça sobre o olhar displicente de toda aquela gente e me amandei a ela... à orelha e mandei vir um penalti daquele tinto... fiquei que nem me sinto. Com a cabeça azuzinada fiz um esforço para reentrar na trama...

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  12. fiquei-me pelos pipis...agora orelha? dispenso.

    Gostei imenso e cada vez a coisa se vai tornando mais...complexa:)

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  13. Depois eu vou elencar todos os personagens, para eu nunca me perder, ou perder-me sabendo em meio a quem.
    Mas eu tomara que o Vítor Fernandes e o Ismael me perdoem a ausência, eu ando perdida no meu próprio tempo, cada vez mais exíguo. Tentando atualizar as leituras, e sempre atrasada, dada a produção dos meus blogues preferidos. Mas um dia eu atualizo. Venho sempre ler-te, mas nem sempre estou deixando comentários, eu não gosto de dizer qualquer coisa, as minhas asneiras são no mínimo, pensadas, hehe.

    Desculpe a falta, Vítor Fernandes, por favor vai marcando aí na caderneta.

    (Saudades do Rossio, da Praça do Comércio, de fazer a travessia na barca para o Barreiros, resfastelada numa poltrona, a olhar o tejo...)

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