Günter Freitag nunca imaginou como aquele dia foi importante
para a humanidade. Esta frase cabia bem no início de um de um livro de Edgar
Wallace ou de Patricia Highsmith mas tenho de reconhecer, sem falsas modéstias
que fui eu que a inventei. A verdade é que exagerei quando referi humanidade
pois se Günter Freitag teve alguma influência foi nesta novela pretensiosamente
intitulada como blog-livro que não tem, nem poderia ter, um desfecho imediato
pois se o tivesse seria deveras prematuro. Günter Freitag nunca imaginou como
aquele dia foi importante para as famílias Baruch da parte da mãe e ben-Avraham,
da parte do pai, enquanto para ele, ao contrário da importância que o autor
tenta fazer crer que o dia teve, foi um malfadado dia em que, numa estância
alpina, apanhou uma bebedeira de caixão à cova, passe a agoirenta expressão
popular, pois só canecas de litro de cerveja virou oito e shots de zuckerrohrschnaps, importada
diretamente da ilha da Madeira, nem se contam. Günter Freitag nunca imaginou,
pois para isso não teve tempo, como aquele dia foi importante para as histórias
que o Constantino aqui conta, quando caiu em coma alcoólico, em plena viagem de
comboio no seu regresso a Viena e do qual nunca mais se levantou. Sozinho e com
o casaco de Herr Ismael ben-Avraham vestido, cuja troca no bengaleiro só foi
possível devido à tremenda buba, foi Günter Freitag enviado para uma vala
comum, acompanhado por um par de skis, duas varetas, uns óculos de plástico e
um par de botas de lona, que era assim que naquele tempo se tratavam os judeus.
Alguém se abotoou com a mochila pois não consta do relatório das SS. Até ao
final da guerra, o jovem médico judeu, agora com uma identidade que lhe iria
dar um jeitão do caneco, conseguiu emprego num posto da Cruz Vermelha nos Alpes
austríacos, a tratar de pernas e clavículas partidas, quando não eram canas do
nariz. O jovem médico Günter Freitag só viria a recuperar a sua antiga
identidade em 1951 quando, com a ajuda do seu tio Ishmail Baruch, da parte da
mãe, ingressou na Mossad, criada dois anos antes pela república da estrela do
Rei David. Nesse mesmo ano, ambos são enviados para Portugal onde, de
contrabando, era fácil ao, de novo, Ismael ben-Avraham comprar os seus charutos
cubanos. Pensa-se que terá sido no Hospital dos Capuchos que exerceu medicina
mas tal médico não consta dos registos daquela instituição. Naquele dia, tão
importante para os dois judeus, Günter Freitag, entrou nesta história e assim
desapareceu. Tal como em 1943, numa pequena aldeia alpina, tinha desaparecido
um cordão fino de ouro, do pescoço de uma velhinha criadora de coelhos, com uma
medalha em forma de coração, de abrir em duas partes. Por detrás da fotografia
de uma Nossa Senhora, encerrada na medalha, um número, um único número. Pois
esta medalha, que entra hoje na história, não irá desaparecer tão cedo.
Isabella Vicentini saiu feliz naquela noite fresca de Abril. A
revista em cena no Parque Mayer estava a ter uma grande aceitação do público,
as casas cheias sucediam-se o que justificava as suas vinte e sete semanas em
cartaz. Como era habitual, foi no Riba de Oiro que jantou, a frugalidade
costumeira, uma chamuça picante, uma sandes de ovo mexido com salsicha de lata
e uma imperial tendo depois descido a Avenida da Liberdade, debaixo de uma luz
ténue dos candeeiros a petróleo e de um céu de quarto minguante. Nos
Restauradores, os bêbados do dia-a-dia, recolhidos do frio nos portões da
Estação do Rossio, já fechada. Quando chegou à Rua dos Correeiros, um medo sem
explicação, para quem fazia diariamente o mesmo percurso, bateu-lhe no peito e
arrepiou-lhe a espinha. Ela que era bailarina e ágil, capaz de se esconder por
detrás de um pau de fósforo antes que lhe notassem a presença ou de correr cem
metros antes que fosse dado o tiro de partida, pressagiando fosse o que fosse,
ia com medo. Mal entrou em casa, fechou rapidamente a porta, deu duas voltas à
fechadura, apertou contra o peito uma medalha em forma de coração, que lhe
pendia de um fino fio de ouro e rezou à sua Madonna. Uma misteriosa senhora de
Trás-os-Montes ouviu nessa noite passos estranhos no andar de cima. Jurava
terem sido passos de um coxo.
Ora bem... depois de tanto tempo ausente tenho que recuperar as aventuras do Ismael desde o início. A tarefa vai ser árdua e requer tempo mas, depois de completar as visitas aos amigos da bloga, cá estarei a recuperar as memórias.
ResponderEliminarAbraço
Oh amigo Carlos, obrigado pelo seu interesse mas se for lendo daqui em diante ainda via muito a tempo. Um abraço.
EliminarNem desta vez consigo testar se é a escrita do mestre ou o tinto o que me dá a volta à cabeça e, de cada vez que abro os olhos, é mais um personagem que aparece... Olho, e onde estava um passam a estar dois... ou a minha razão atina ou volto para a tasca do Alto Pina...
ResponderEliminarUps, a Isabella veio reanimar a trama.
Nem tantos assim, Rogério. ls principais são sempre os mesmos, os outros são entrada por saída.
EliminarIsto de apanhar bubas e depois apanhar o comboio dá sempre mau resultado! :)
ResponderEliminarMas pronto, o que é mau resultado para um pode não ser para o outro!
Agora resta-nos esperar para ver como é que a medalhinha viajou das regiões alpinas até à rua dos Correeiros... :D
Beijocas!
Acho que ainda se vai saber se entretanto eu não perder o fio à meada.
EliminarAguardo pelo desenrolar "da medalha"...mas Günter Freitag era médico e ou escritor? Ou este personagem é primo dele?
ResponderEliminarEpá...tu tens que acabar com algumas canãooooooo perco-me:):):)
Adorei:)
Beijocas
O Günter era um esquiador, mas esquece-o que ele já se finou...
EliminarHoje quando ouço dizer que um alemão se vai tornar fundamental... até estremeço!!
ResponderEliminaraustríaco, Manuel.
EliminarO tipo teve muita sorte, pois se fosse em Portugal apanhava a buba e ficava a curti-la na estação, pois haveria greve dos comboios. Abraço!
ResponderEliminarNem tanto assim Rafeiro. Era mais provável que só tivesse assistência médica a 120 kms de distância ou então para lá da fronteira.
EliminarEsta trama está cada vez mais tramada, Constantino!
ResponderEliminarJá me perdi nesses labirintos, não reconheço vivalma ( nem mortalma) e sem beber nunhum desses tais shots de zuckerrohrschnaps (tive que ir lá acima copiar isto) sinto a cabeça à roda.
Coitada da Isabella (esta conheço).
Definhou tanto que já se esconde atrás dum pau de fósforo. ( ser personagem nesta estória não é fácil)
Encontramo-nos na tasca, OK?
Beijinhos.
bailarina que é bailarina tem de ser jeitosinha quando não parece um papo-seco rodopiante. Quanto aos personagem não são tantos assim. mas de vez em quando dá jeito ir apresentando um amigo.
EliminarBeijinhos.
Fizeste-me rir com vontade!
EliminarTu podes divertir-te à grande ao escrever este pseudolivro - como lhe chamas - mas, acredita, também me tens divertido imenso!
Bem-hajas, por isso.
Beijinhos. :)
Também eu, desci e subi por demais a linda Avenida da Liberdade, mas isso foi em 2009, e os candeeiros a petróleo, já haviam dado (há muito), lugar aos postes de eletricidade...
ResponderEliminar:))
Amigo, mas que trama! Me pegou sem escapatória, pois admiro demais o modo que você escreve.
Volto depois pra saber que número é esse que está escrito por detrás da imagem da Nossa Senhora, encerrada na medalha.
Se por acaso eu me perder por aí (escondida por detrás de um palito de fósforo), é só me chamar que eu venho correndo, okey?
Em hipótese alguma quero perder os próximos capítulos!
Um grande abraço, e tenha um lindo e feliz final de semana.
Cid@
Essa medalhinha ainda vai dar que falar. Quem sabe esse não seja o número que abre o cofre?
EliminarEu tenho que fazer urgente um curso de línguas, a minha tá muito dura para pronunciar esses nomes germânicos aí ("alemanzados"), terei que começar do 'bêabá', quem sabe assim eu me aproprio mais da história do Ismael e seus co-protagonistas...
ResponderEliminar;)