Quando entrei na tasca do meu amigo Ismael, acompanhado do senhor Espinheira acabamos por nos sentar os três num insuspeito canto da taberna, como insuspeitos são todos os cantos da tasca da Rua dos Correeiros. Numa mesa ao lado, com um livro na mão, se não estou em erro de autor quase desconhecido, que mais tarde viria a ser prémio Nobel, Rogério bebia um tintinho, mas fiquei com a impressão de que terá ficado de ouvido alerta ao que se passava na nossa mesa.
Mas diga lá então, releia por favor, Espinheira, para que o meu amigo Ismael também fique a saber, pedi eu com alguma impaciência. Uns bons anos atrás, antes de se ter descoberto o autor do crime que vitimou Isabella, o inspetor Ismael Sacadura Flores, por um erro processual, não conseguiu ficar na posse do manuscrito que mais tarde me veio parar às mãos. E, de novo, recorri ao Espinheira para me ajudar a lê-lo, tal e qual como o inspetor Ismael o tinha feito talvez uns vinte anos antes. Mas havia ali elementos que eu achava muito atrativos e mostravam bem como Francisca era genial e como o seu manuscrito trouxe muita informação ao processo, sendo até pedra basilar para a confissão. De facto, Francisca era um prodígio. E então, Espinheira abriu o manuscrito de Francisca a páginas catorze, “Raffaelo Vicentini, então membro das camicie nere, foi discretamente recebido na sede da PIDE quase no final de 1945.” E fazia reparos a quão difícil era a caligrafia de Francisca para poder estar a ler com a devida pontuação. Não se preocupe amigo Espinheira, continue, continue – pondo-o assim à vontade, Ismael, que no trato era de uma grande elegância. Diz, então, Francisca, continuou Espinheira, “ A única coisa que pedia era proteção para a sua filha, Isabella de apenas doze anos de idade”. Espinheira parou de ler. Não compreendia agora, como nunca compreendeu antes, algumas das palavras e achava que estar ali, naquele momento, a dissecar o manuscrito, ainda por cima com um tipo numa mesa ao lado que ele não sabia quem era, não lhe parecia muito produtivo, nem tão pouco, ético. Senhor Espinheira então salte para a página quarenta e oito e leia-nos lá o que me leu há pouco, pedi-lhe apenas para desanuviar. A custo e só para me fazer a vontade, Espinheira puxou por um cigarro e ofereceu outro ao Ismael. Recusou, por não ser o seu tipo de tabaco, enquanto uma ponta de Português Suave meio apagada lhe pendia do canto da boca. Eu que não fumo, apenas demonstrava expectativa no olhar. Pois a páginas quarenta e oito diz Francisca – continuou Espinheira – “O médico judeu, Ismael ben-Avraham entrava em casa de Isabella, mas pouca importância dava ao estado de saúde da menina que, talvez por saudade, de anafada e bem coradinha, fazendo juz à sua natureza Alpina começava agora a definhar. Ou então seria era aquela ideia fixa de vir a ser bailarina.”
Rogério, levantou-se da mesa, deixou dois escudos em cima do balcão para pagar o tinto e as azeitonas, saudou os presentes e saiu. Espinheira respirou de alívio e, eu próprio, porque conheço o desfecho da tragédia, acabei por anuir que a página quarenta e oito talvez não interessasse muito. Afinal Isabella fora assassinada em 1956 e os idos de 1945 seriam, quase de certeza, conjeturas de Francisca. Anos mais tarde Francisca teria um grande desgosto pelo que aconteceu a Isabella já que o seu sobrinho Sebastião, um marinheiro que gostava mais dos portos do que das ondas do mar se embeiçou pela bailarina. Mas o que realmente aconteceu não se poderá saber antes da página trezentos e quarenta e três.
E ficamos em suspense....
ResponderEliminarPor longos e longos episódios :)
EliminarOra Viva, Constantino.
ResponderEliminarSe eu já estava empolgada com o suspense desta história, agora fiquei em ânsias!
Quem diria que a Isabella era filha da Francisca??
Eis a razão da sua perturbação com o registo das datas.
Pobre mãe...e pobre bailarina dos Alpes!
Começo a gostar dessa senhora.
Quem sabe o Espinheira não vai dar o salto para a página trezentos e quarenta e três, por incapacidade de decifração do manuscrito nas páginas anteriores?
Acho que vou comer aquela azeitona que o Rogério deixou ficar! Estou um pouco desconsolada...
Beijinhos, Constantino.
Minha querida Janita,
EliminarQuem foi pedir proteção para a filha foi o sr. Vicentini. LOL. A menina não é filha de Francisca, mas sim de Rafaello Vicentini. :)
beijinho.
Ó Constantino...mas então quem anda perturbada sou eu...lololol
EliminarA culpa é do Espinheira!
ResponderEliminarNão fosse essa sua (dele) eterna mania de intercalar a leitura, com reparos desnecessários à dificuldade de pontuar a dita, mais a desculpa de não entender o manuscrito, nada disso teria acontecido, ou seja, não me teria levado ao engano!
Olha que o homem não serve para esse papel!
Tens que arranjar um gajo mais desenrrascado...
Até se me atravessou o caroço da azeitona na garganta!
Ora vamos lá então a folhear os papeis onde a história está vertida!!
ResponderEliminarPor falares em 2 escudos para pagar o tinto e as azeitonas, lembrei-me que um prego em prato com batata frita e um ovo a cavalo custava 7$50 no "Avenida" em Coimbra!!
Dois escudos para pagar vinho e azeitonas? caro
ResponderEliminarkis :=)
... tanta história ainda por contar!
ResponderEliminare o resto?
ResponderEliminarBjinhos
Paula
Vou saboreando, aos poucos, algumas partes de sua obra, até que possa lê-la do começo ao fim.
ResponderEliminarBjs.
Minha nossa cada vez mais intrigante e ai Espinheira, Espinheira és um cusco e tanto:):):)Gostei mas não sei como não te perdes com todo este novelo de várias pontas!
ResponderEliminar2$00 onde é que isso já lá vai? e o malandro do Mfc falar de um bitoque numa hora destas...eh pá...aqui na tasca da crise já se paga cinco euros, ou seja mil e tal escudos!!!
Todos os dias venho aqui ler mais um bocadinho deste enredo que me deixa em suspense, é essa a intenção não é?
ResponderEliminarVou tentar ser paciente e aguardar pelo que vem na página trezentos e quarenta e três e para o tempo passar mais depressa vou-me entretendo a comer umas azeitonitas, essa que colocou, abriu-me o apetite.
Beijos
Manu
E como ainda estamos a páginas 21 ou coisa, ainda vai demorar para o desenlace... :9
ResponderEliminarBeijocas!
1- Olha, Vítor Fernandes, eu já fico achando tudo muito suspeito, diante desse negócio de "canto insuspeito";
ResponderEliminar2- continuo insistindo com a minha sugestão sobre Isabella ter uma irmã gêmea, naquelas condições;
3- e claro que a resolução do caso não deve ser conhecida antes da penúltima página... Vais ter que manter esse segredo, a curiosidade e a avidez do leitor... Tá certo.
;)
Acho que o tinto me caiu mal... Para a próxima bebo dois, ou três, a ver se percebo de vez...
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