Falta de atenção, o
que mais me chateia é a falta de atenção, gritava o inspetor Ismael Sacadura
Flores, sob o ar incrédulo dos seus mais diretos colaboradores. O jovem
Espinheira, ali ao lado, estava mudo e quedo, aquilo não era nada com ele, era
entre polícias e ele era apenas um contratado, no tempo em que não havia
recibos verdes mas em que se pagavam avenças. Na realidade, sempre que o jovem
Espinheira tinha que preencher aquela papelada burocrática e na mesma folha
onde punha uma cruzinha à frente da frase em que jurava pela honra dele que não
era comunista nem tinha contatos com organizações subversivas, sempre que lhe
perguntavam outra atividade, para além da de ser estudante de Letras na
Universidade de Lisboa ele usava a expressão, “avençado do Estado”. Ismael Sacadura
Flores estava muito excitado naquela tarde e o caso não era para menos. Faltas
de atenção é que ele não suportava.
Antes que os chefes de brigada Ismaelix e Ismael de Almeida
pudessem sequer esboçar que iriam articular uma frase e muito menos abrir a
boca, nem que fosse para bocejar, gritava o inspetor Sacadura, para quem o
quisesse ouvir, mas quem é que aqui é a
ferrugem destas algemas? Quem é que
aqui é o bolor deste pastel de nata de exportação? Qual de vocês anda a estudar
para ser como o cromo do comentador desportivo da SIC, hein? E roborizava cada
vez mais a cada grito que dava. Nunca vos
falaram em moleskin? Ao menos já
ouviu falar em caderno de apontamentos, não ouviu senhor Ismaelix? E cadernos de apontamentos com capa preta e linhas
pautadas, nunca viu nenhum na vida, não, senhor chefe de brigada Ismael de
Almeida? Só sabe dar milho aos
pombos, é, seu porteiro de teatro, incompetente? E à medida que ia
insultando os seus adjuntos, mais excitado ia ficando, a pontos da Micas, a
secretária do departamento de Homicídios e Tráfego de Mulheres, Drogas e Outros
Contrabandos, a HTM.doc da Polícia Judiciária ter de lhe ir buscar um copo de água
com açúcar.
Alguns minutos depois, debaixo de um silêncio sepulcral,
tudo estava mais calmo. Com um movimento do indicador direito, esticando-o e fletindo-o
para dentro, chamou o jovem Espinheira e pediu-lhe o caderninho de capa preta.
Olhou para os chefes de brigada, depois fez um sorriso amarelo na direção do
Espinheira, a Micas perguntou a medo, quer
mais alguma coisa senhor inspetor?, ao que ele, com um gesto suave com a
mão esquerda, a mandou afastar fazendo crer que nada mais pretendia e fez uma
pergunta que era mais uma confirmação do que uma interrogação, é na pagina trinta e sete não é, Espinheira?, ao que este
assentiu que sim, com a cabeça. O inspetor Ismael Flores, abriu o manuscrito de
Francisca, devagar e praticamente soletrando, leu. “Günter Freitag, tal como
apareceu neste caso, assim desapareceu e não se falará mais nele”. Depois virou-se
triunfante para a plateia que o rodeava e perguntou com ironia, entenderam ou querem que vos faça um desenho?
Naquela tarde houve tolerância de ponto e a tasca de Ismael
transformou-se num autêntico Carnaval. Ismaelix mascarou-se de Asterix, o Gaulês,
pelo que apenas teve que colocar umas tranças de cabelo postiças. Ismael de Almeida
foi ao sótão buscar um casaco velho com remendos nos cotovelos e espalhava
milho por tudo quanto era lado, chamando os pombos à colação. Fernandinha tirou
o avental com borboletas e girassóis, pintou os lábios de vermelho vivo e com
uma minissaia, que nem Mary Quant a tinha inventado ainda, cantava como se fora
a Lady Gaga e até a Micas, de bigode à Charlot e rodopiando a bengala, caminhava atirando os pés para fora. O Rogério, mesmo achando que a vida não está para carnavais,
vestiu um fato de Zé Povinho, colou umas barbas encaracoladas, pôs uma almofada
na barriga para parecer que era gordo, um chapéu castanho de abas largas e
fazia manguitos a todo o tipo com ar de burguês que lhe passasse pela frente. Ismael
Gúsman, o meu amigo galego vestiu fato completo, com colete e tudo, pôs brilhantina
no cabelo e calçou sapatos de verniz. Quem o visse, parecia que estava a ver o Júlio
Iglésias. Só o macambúzio que costuma estar de fato cinzento e chapéu e que se
senta sempre com aquele ar de bufo numa mesa do fundo da tasca, não brincou ao Carnaval.
Se fosse por vontade sua, não haveria feriados para ninguém.
Ahahah, toda a equipa de Ismael e companhia a brincar ao Carnaval, como convém nesta época! Claro que o bufo não havia de gostar da brincadeira, mesmo num conto de tempos idos... :)))
ResponderEliminarBeijocas!
Ontem estive a ver um programa sobre Alves Redol na RTP2. E fiquei com vontade de reler "Constantino, guardador de vacas e de sonhos". O Carnaval pode esperar...até para o ano!
ResponderEliminarEstá bem...não é preciso fazer desenho nenhum...eu já entendi, Inspector!
ResponderEliminarComo também tenho tolerância de ponto e faço ponte, lá vou estar na tasca do Ismael para brincar aos mascarados e divertir-me à grande. Não vou é dizer qual vai ser o meu disfarce. Uma coisa te garanto...o Ismael Gúsman vai ficar de olhos torcidos!
Até lá, então!
Beijinhos.
é Carnaval e niguem leva a mal w falta de atenção todos nós sofremos um pouco com a idade
ResponderEliminarkis :=)
Olha do que tu me foste lembrar?!
ResponderEliminar... dos tempos em que havia tolerância de ponto no Carnaval!!!
Ao tempo que isso já foi!!!!
Olá,Constatino!
ResponderEliminarIsto é uma trama do caraças...Passado misturado com presente,mais com o futuro ainda ausente, e mais uma criatura sem graça a querer imitar o Passos, e pôr fim ao Carnaval...
Bom fim de semana, e bom Carnaval se for caso disso.
Um abraço.
Vitor
E todos se mascararam ... : ) Mas há sempre os desmancha prazeres! : )
ResponderEliminarNem percebo como o autor, sempre tão atento, deixou passar um pormenor que, por sinal, foi ali a única partida de Carnaval. É que no meio da galhofa e entre dois manguitos meti, na algibeira daquele de fato cinzento, dois carapaus fritos. Iam com molho e tudo... molho por certo já rançoso dado que desde que aparececeram os pézinhos de coentrada ninguém, na tasca, pedia mais nada.
ResponderEliminarOlha, tenho pra mim que eu encontrei o Ismael e o Espinheira, no carnaval, subindo e descendo as ladeiras de Olinda, flertando com as moças olindenses. Os que aí estavam, eram seus sósias, os originais estavam no Brasil.
ResponderEliminar;)