segunda-feira, 16 de maio de 2011

27. Orelhas

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Às vezes fico de ouvido atento. Bem sei que é feio, se for notado, claro, ficar a ouvir as conversas dos outros mas há horas em que não resisto. Nunca reparei se os meus pavilhões tomam a configuração dos dos gatos, rodando e empinando-se, mas a verdade é que fico de alerta. Foi assim que, no outro dia, ouvi uma conversa bem interessante sobre a morte ou, para ser mais explicito, sobre algumas das suas consequências. O que estava de costas para mim (na realidade eu estava de lado para os dois mas a um deles quase só lhe via as costas) dizia para o outro, para o que eu conseguia ver o rosto, que tinha muito medo de morrer. O outro franziu o sobrolho e quis saber o que o apoquentava. Então ele desfiou um rol de coisas que me deixaram a pensar e que por vezes me faziam distrair do teor da conversa para eu próprio navegar no ambiente. E dizia ele que tinha medo que fosse levado por uma doença que o fizesse sofrer, um medo que também partilho, medo do silêncio sepulcral das noites no cemitério, medo este que já me levou à decisão de vir a ser cremado. Mas a estas consideráveis fobias juntava ele receios muito mais relacionados com a saudade (ai a saudade, a portuguesa saudade) que iria ter de tudo quanto cá deixaria. A família, os amigos, o Benfica e até algumas coisas banais das quais me lembro a referência a alguns prazeres da vida, como o queijo de ovelha amanteigado e o vinho tinto alentejano. E foi neste momento que comecei a viajar no tempo e a pensar naquilo porque trabalhei, naquilo que criei, naquilo porque lutei, naquilo que está a fazer o mundo mover-se. Verei crescer o meu neto? Haverá água potável daqui a 50 anos? Daqui a quanto tempo o lixo orbital será incontornável? Como será governado o país daqui a 180 anos? Será que os alemães provocarão uma terceira guerra mundial? E uma quarta? Eu irei ter trinetos? Quantas travessias do Tejo, de Vila Franca de Xira para juzante, se irão construir? Vamos continuar a pedir dinheiro ao estrangeiro todos os meses nos próximos 420 anos? A que juros? O Vitória de Guimarães ganhará o campeonato em 2143 com um presidente chamado Afonso? Daqui a quanto tempo não haverá petróleo? O Brasil festejará o seu undécimo campeonato mundial de futebol? No ano 2155, quando seria suposto eu comemorar os meus 200 anos de idade, a TVI ainda passará a série Morangos com Açúcar? Até quando alguém colocará cravos vermelhos na lapela? Para mandar um e-mail bastará ir à janela e soprar?

Quando eu morrer vou ter tantas saudades do futuro.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

10 comentários:

  1. Numa dessas, é tão bom escrever ficção, ou pelo menos imaginar o futuro. Porque morrendo, o que nos resta a não ser o sono eterno? Ou seria uma vida diferente? Bom, seja o que for, Julio Verne é que soube viver. :)

    beijocas

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  2. Esse seu texto lembrou-me lá da época dos anos 90, ao qual acreditávamos que o ano 2000 seria O ano, A década, que já teríamos robôs nas ruas, carros voando, colocávamos a maior fé na tecnologia pra 2000...e no entanto, continuamos quase que na mesma...alguns avanços, eu diria..
    E o mundo ainda nada de acabar...rsrs

    Acho mesmo que quando eu morrer vou sentir mais saudade do meu passado...das coisas que deveria ter feito e não fiz em vida...


    adorei o texto, Constantino! Vc como sempre, arrasa!

    Boa semana, amigo!

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  3. Há coisas que é melhor desconhecermos.
    Abraço

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  4. Ó Constantino...por amor de Deus! Isto nem parece coisa sua...!
    Tanta interrogação e preocupação com o futuro até lhe rouba o prazer de viver o presente.
    Desfrute da alegria de ver crescer o seu netinho, coma o queijo, beba o bom vinho e deixe correr o marfim.

    Está ver no que dá ouvir as conversas dos outros?:-)

    Excelente! Magnífico!
    É um prazer vir aqui e acompanhá-lo
    nas suas bem construídas estórias.
    Que sorte o seu neto vai ter quando crescer mais um pouquinho!
    Bjo.
    Janita

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  5. Pois eu também já tomei a decisão de ser cremada, mas suponho que "do lado de lá" não terei saudades de coisa nenhuma, se é que se pode sentir alguma coisa nessa outra banda... :)

    Mas torço que em 2139 o Guimarães ganhe o campeonato com um treinador ou uma equipa afonsina, que era muito bom sinal! :D

    Beijocas!

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  6. Olá

    É inevitável não pensar na morte...sei que vou lamentar o que não fiz.

    Bjs.

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  7. Amei!!!

    Quanto à sra. morte, eu nunca a temi, mas, por outro lado, não tenho nenhuma pressa que ela venha ao meu encontro.
    Quero antes curtir muito minha família, e, talvez, quem sabe, ver meus netos constituirem as suas...aí sim, posso morrer tranquila :)

    Beijos, e muita saúde pra ti!...rs

    Cid@

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  8. Olha... eu vou ter umas saudades do caneco de tuuuuuudo isso!

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  9. Acho que a maioria não tem medo de morrer, mas do sofrimento que o leva ao fim.
    Faço o que posso enquanto ser vivo e sinceramente não me preocupa nada o futuro, talvez por ter vivido uma guerra civil, fome...muita fome, na qual me puseram um toldo: vive o presente, larga o passado e o futuro logo se vê.
    Eu e os meus somos pela cremação (felizmente muita gente já aderiu) e saudades do que cá fica? Nunca pensei nisso porque sou muito pouco saudosista. Apenas gostaria de ver partir primeiro, "determinadas figuras de topo" que destruiram o meu país e este que me acolheu, que se julgam eternos!!!! e se de facto houver vida no lado de lá...ohhhh pá quando os encontrar dou-lhes uma carga de purrada, o que não pude fazer enquanto viva:) e partir "rapidamente", antes, muito antes das filhas, genros e netos!

    Parabéns pelo texto, seu cusco, mas olha que eu sou igual:) gosto de ouvir "algumas conversas" e sobretudo estar sentada num banco de jardim ou passear a pé e ver o comportamento dos outros!

    Um abraço

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  10. Oi Constantino sempre belas crônica!
    pode escrever aí o Brasil vai mesmo festejar o seu undécimo campeonato - se fabricar mais alguns Pelezinhos ... rs
    impossível nao gostar do que escreve, é bom demais!
    abraços

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