Sei que ele me perdoará a inconfidência por duas razões bem simples de enumerar. A primeira é a forte amizade que nos une e, a segunda, é porque eu acho que ele confidenciou isto a pelo menos mais uma dezena de pessoas. Dizia-me ele que em garoto comia tanto, mas tanto queijo, que chegava a acreditar no que os pais, outros familiares e pessoas circundantes lhe diziam, és esquecido porque comes muito queijo.
Quem o conhece bem gaba-lhe amiúde a sua excelente memória apelidando-a mesmo, talvez um pouco exageradamente, como uma memória de elefante. Apesar da sua bem documentada experiência em queijos, seja a falar de uma raclette que comeu em Thonon-les-Bains quando visitou pela primeira vez a Haute-Savoye em mil novecentos e setenta e oito ou a descrever-me como é que viu fazer, num chalet alpino, um enorme appenzeller, mesmo no finalzinho do verão de mil novecentos e noventa e dois, quando decidiu experimentar o esqui alpino, em que ele descrevia de tal maneira os pormenores que até a cor do avental das queijeiras eu fiquei a saber, a sua especialidade era mesmo recitar de cor as dez primeiras estrofes do canto I dos Lusíadas, e o primeiro ato do Frei Luís de Sousa. Mas se a sua memória fosse só para queijos ou obras-primas da poesia e do teatro, estaríamos em presença de um caso de memória seletiva, o que não confirmaria a sua fama de grande cabeça (grande carola, dizem-lhe os mais chegados). A verdade é que há dias ouvi-o nomear, um a um, a quase totalidade dos alunos da sua turma do sétimo ano do liceu, terminado em mil novecentos e setenta e três – peço perdão pela maçada que vos pode causar tanta data, mas parece-me inevitável - quando alguém lhe mostrou uma foto de grupo. O mais interessante foi ele depois de dizer os nomes, alguns dos quais completos, ter ainda dito que faltavam ali o Hélder, o outro Nobre que é alentejano, a Margarida e o Salvador. E quando alguém interrogou, o Hélder? Ele respondeu sim, sim aquele gordinho que andava sempre cheio de miúdas à volta. Naquele jantar ninguém reparou, mas enquanto ele identificava os colegas da foto, estava a debater-se com um pequeno prato rapsódia, como ele gosta de dizer, onde pontificavam uma fatia de queijo de Serpa a esparramar-se prato fora de tão amanteigado que era, um pedaço de Roquefort e uma tirinha de Queijo da Ilha. Sei que ele tinha estado antes a provar o Camembert mas não lhe gostou da cura e tinha também chamado a atenção do empregado porque o Serra que lhe trouxera não teria sido acondicionado em lugar apropriado e por isso o devolvera. Deu uma dentadinha numa cream caker sem sal, bebeu um gole de Duas Quintas branco, frio e de uma colheita recente e piscou-me o olho.
Sei que mais tarde ou mais cedo isto iria acontecer comigo. Ele já me tinha advertido que em qualquer momento seria inevitável. Digo-vos sinceramente que me esqueci do resto do texto.
Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.
agradeço a visita!
ResponderEliminaraqui é bom de estar!
Claro que esqueceu o resto do texto. Também...com tanto queijo...
ResponderEliminarAgora imagina a memória que o teu amigo teria se não comesse tanto queijo, até do número de borbulhas que cada colega tinha se lembraria!
ResponderEliminarConstantino...esta sua duplamente ( pela qualidade dos queijos e conteúdo) deliciosa estória, fez-me lembrar aquele ditado popular: "uns comem os figos e a outros rebenta a boca"!!
ResponderEliminarEntão ele, o personagem, deleita-se com uma rapsódia de queijos capaz de rebentar com o fígado do mais forte, memória fresca que nem uma alface lá vai citando nomes e factos e o narrador é que tem o lapso de memória?! Nã...há aqui qualquer coisa que não bate certo.
Não se aflija...
Ó Constantino, acho que houve aqui uma pontinha de maldade da sua parte, peço desculpa.
Vem-me fazer crescer água na boca com o queijo de Serpa, a troco de quê?
Ainda por cima trouxe-me à memória a queijaria do Zé Bule, se não é este o nome é parecido.
Quando terminavam de enformar os queijos e ficava aquele soro grosso, salgadinho e bom;
lá vinha ele com a corneta berrante, anunciar para a rua. As mães iam a correr com as vasilhas buscar o "almece" e nós, garotada, à espera lambendo os beiços.
Constantino, peço desculpa por estas divagações e se não quiser publicar o comentário, leia-o e arquive-o ou deite-o fora. Lamento, mas não resisti!
Também quem o manda falar do queijo de Serpa?
Beijinho
Janita
Janita, já me fartei de rir com o seu comentário, mas eu juro, não tenho culpa de ele ser um glutão e para mim ficar apenas a espinhosa missão de narrar Ehehehe. Quanto ao almece quem gostava era a minha sogra, eu gosto mais do queijo mesmo. Ah desculpe, eu não... ele.
ResponderEliminarEu não sou lá muito apreciadora de queijo, mas só não me esqueço da cabeça porque está presa ao pescoço. :)
ResponderEliminareu gosto de queijo, mas não a tanto a ponto de afetar-me a memória...mas fui obrigada, no ensino fundamental, a decorar decassílabos e mais decassílabos do Camões! Que tortura! Não a tortura de decorar, mas a de ir na frente de todos e recitar!
ResponderEliminarDepois, de adulta, trabalhei muitos anos com mala direta, usando um programa de computador. Resultado: sei o nome de todo mundo, com sobrenome e alguns até com endereço completo. Mas atualmente, sou incapaz de lembrar o número do meu celular. Cheguei à conclusão que hoje, pra me fazer lembrar algo, vão ter que me pagar e bem. Chega de trabalhar de graça!!
Mas Camões, vais me desculpar, nunca mais. Ficou um trauma.
bjs
fiquei a saber que nao tenho bolachas salgadas em casa
ResponderEliminarBjinhoss
Paula
Uma bela viagem por memórias
ResponderEliminarnecessariamente inacabadas
Eheheh, há gente assim, que tem mesmo excelente memória. Em contrapartida há outra, que podendo ter feito o liceu todo na mesma turma, já nem se lembra da cara, nem do nome, nem das brincadeiras que fizeram em conjunto... :)
ResponderEliminarBeijocas!
ahahah Janita, adorei seu comentário! A história é boa mas, o Constantino que me desculpe, seu comentário foi ainda melhor. Beijinhos para os dois
ResponderEliminarUau! Esse aí é de dar inveja! :)
ResponderEliminarÓtima e saborosa história (além de bem escrita, tem queijos e vinho... precisa mais?...rs)
Parabéns, Constantino! Você é um excelente narrador!
Beijinhosssssss
Cid@
A memória varreu-se-me em definitivo ao provar um Duas Quintas branco (e gelado) com o queijo!
ResponderEliminarConstantino,
ResponderEliminarli o comentário da minha amiga Anamaria e, sinceramente, sinto-me bastante constrangida.
Pelo que conheço dela sei que, sendo uma pessoa extremamente educada e sensível, jamais o faria com a intenção de o depreciar. Pode acreditar!
Vejo que ela ainda é pior do que eu nesse aspecto da sinceridade, pois há coisas que não devem ser ditas, pelo menos publicamente.
Se o Constantino concordar, eu gostaria de deixar um comentário à Anamaria, a contradizê-la, tanto mais que considero o meu comentário absolutamente irrelevante face ao seu texto genial.
Por favor, leia e não publique.
Basta dizer-me, apenas,"concordo".
Em nome dela lhe peço desculpa.
Janita
Minhas queridas comentadoras, Janita e Anamaria,
ResponderEliminarSois livres de tecerem os comentários que vos proverem. Vocês são lindas na vossa forma de comentar e absolutamente genuínas. Não me magoa dizer a Anamaria que o comentário da Janita é superior ao texto. E porque não poderia ser? Estou perante comentadores, não só vós as duas, creiam-me com sinceridade, mas talvez perante os melhores comentadores da blogosfera, Por isso vos quero tanto. Sintam-se aqui como se do vosso próprio espaço estivesse a usufruir. Ósculos e amplexos do Constantino.
aproverem né?
ResponderEliminarUma história bem apaladada, adoro petiscar vários tipos de queijos. Como moral vou reter o seguinte:convém ter pouco contacto com os grandes apreciadores de queijo...então o que assiste é que fica sem memória!!!!
ResponderEliminarGostei
Saio daqui saciado com o texto, mas a salivar, porque sou um grande fã de queijos. E com um bom vinho a acompanhar... Bem, vou ali à cozinha peparar uma pequena ceia...
ResponderEliminarSou eu, o CBO do CR
Uma história bem substancial e nutritiva...porque adoro queijos, menos um que tem bolor ( esqueci-me do nome, vês a consequência?).
ResponderEliminarQuanto à memória...ai meu amigo, no meu tempo ai de nós que não soubessemos na ponta língua "obras literárias portuguesas" e hoje sofre de uma certa alergia a Camões e outros hehehehe:)
Beijocas