sexta-feira, 6 de maio de 2011

21. Saudades de Genoveva


Tenho uma vaga impressão, provavelmente fundamentada, de que se não viam há muito tempo. O que me leva a dizer isto foi tê-los visto mirarem-se de alto a baixo, ambos terem apontado o indicador da mão direita um em direção do outro, terem-se interrogado mutuamente com um duplamente exclamativo tu?!!  e terem-se envolvido num amplexo que, se não fosse considerado exagero por quem eventualmente escute esta historia, eu diria maior do que o Cristo-Rei de Almada daria ao Cristo Redentor do Rio de Janeiro se um dia fosse possível encontrarem-se. Mas passe a, mais que provável, exagerada comparação pois já se deve ter percebido que seriam amigos de longa data. Quem posteriormente tivesse estado com o ouvido à escuta não teria a mínima dúvida do que se acabou de afirmar. O que vestia um pólo azul e branco com uma golinha de malha cardada, via-se que não era do mais fino algodão, mas estando os tempos difíceis para se vestirem camisas de marca, desde que se ande limpinho e asseado e não se deva nada a ninguém como ouvi muitas vezes a minha saudosa avó dizer, contava eu, o que vestia o pólo azul era o mais conversador. Entendi também que o que se indumentava com uma camisa preta e que contrastava, sem que para isso tivesse sido propositada a intenção da pessoa, com os seus sedosos cabelos grisalhos, que se diria de umas sessenta primaveras bem ou mal vividas, não sabemos, sofria do luto por Genoveva, já lá iam quase quatro anos. Talvez por isso permanecia mais reservado. E como conversa puxa conversa, quando assim nos encontramos, a saudade dos tempos passados, por muito ruins que tenham sido, são sempre muitas e trazem-nos a nostalgia de grandes recordações. E não fosse aquela saudade que lhe batia no peito desde que perdeu Genoveva, teria corroborado tudo quanto era a memória do que vestia pólo azul. Os tempos em que o leiteiro vinha de bicicleta, uma bilha de chapa zincada pendurada em cada aba traseira da mesma e que lhes enchia as garrafas deixadas na porta da casa, o saco de pano pendurado na maçaneta da porta, com os papo-secos, ainda quentes da última fornada que a filha da padeira (era a Marianita, não era?) lhe deixava todas as manhãs, o Mário a apregoar o sécul’ó-diário com a saca dos jornais a tiracolo, a enrolar o Diário de Noticias no sentido leste-oeste do jornal e depois a dar-lhe um nó cego de modo que ficasse ali uma espécie de pacote, que era atirado contra a janela, caía direito no parapeito e dava o aviso de que o mensageiro tinha chegado, o Farrusco a correr e a ladrar junto às pernas do petrolino, de quem nunca se tinha esquecido de um pontapé, felizmente defensivo e que, só por isso, não lhe tinha causado dano de maior. E a tia Domitília peixeira, com a sua canastra à cabeça apregoando a sardinha viva da costa, o carapau a meio-tostão e a chaputa fresquinha.

E assim foram continuando a relembrar enquanto se aproximavam, com o carrinho das compras, da caixa do supermercado. E se vos conto isto foi porque o ouvi e porque tenho saudades de jogar ao pião.

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13 comentários:

  1. Todos temos saudades de jogar ao pião e dessas conversas sobre nada e coisa nenhuma!

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  2. meu verbo favorito: Saudadear...

    Abraço grande de bom final de semana, Constantino!

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  3. Nostálgico, mas de uma nostalgia boa.

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  4. Venho agradecer-lhe a retribuir a visita pelo comentário que lhe suscitou o meu post. Concordo que há mais de 30 anos que devia-mos despedir esta classe política que tem sido incapaz de saber governar o País, mas que tem apenas dele se servido para se governarem, alguns mesmo chegarem ao enriquecimento fácil. Talvez por isso resolvi que a minha opção de voto vai recair na força política que representará os animais irracionais, dado que nós não temos quem nos defenda. Um abraço

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  5. E quem não tem saudades das brincadeiras de criança e dessas figuras que povoaram o passado de cada um de nós? E sobretudo de uma época em todos não tínhamos responsabilidades de maior e milhentos sonhos de um futuro sorridente e feliz, como nas histórias de fadas! :)

    Beijocas!

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  6. Sempre encantador o modo que você conta os seus "causos" :)

    Tenha um ótimo final de semana.

    Abraço

    Cid@

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  7. sim, às vezes faço isso. obrigada

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  8. Um texto muito bem escrito e inspirador.
    Relembrar o passado sem nostalgia.

    Bjos

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  9. Pelos vistos esteve com o ouvido à escuta da conversa entre esses dois amigos de longa data e que há muito não se viam.
    Ainda bem! O resultado foi este belíssimo texto.
    Pena o amigo de cabelo grisalho ainda estar tão combalido pela perda da sua Genoveva. Já não há viúvos assim...quatro anos volvidos e a saudade ainda bater tão forte.

    Gostei imenso da analogia do amplexo. Fico a imaginar o abraço entre os dois Cristos. Soberbo!
    Saber que a filha da padeira se chamava Marianita, trouxe-me à ideia gratas recordações.
    Sabe uma coisa? Era esse o nome da irmã mais nova da minha melhor amiga, a Lupita. Lá da Rua das Cruzes, no meu Atentejo...
    Ai...Ai, quem ficou agora com saudades fui eu.

    Bjo.

    Janita

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  10. Com o avanço da clonagem, quem sabe se a Genoveva não volta?

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  11. Talvez porque ainda jogue ao pião, à cabra cega, ao lenço, à malha, à corda, a trepar árvores que não faço, mas ensino como... numa transmissão aos netos em vez de os encher de brinquedos estúpidos e caros...sinceramente recordo os meus tempos de miúda e adolescente com alegria e um pouco de saudade, sobretudo porque a malvada guerra desboroou a turma dos mal comportados:):) onde não sei nada, mesmo nada o que é feito deles.

    Quem sabe se os(as) encontrarei num supermercado ou hiper:) mas como entreo a 100 e saio a 200 é difícil.

    Parabéns!

    Gostei imenso e sabe bem recordar esses tempos e sobretudo

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