Ele escrevia poemas. Diziam-lhe que tinha veia. Ele achava-se mais inclinado para a prosa mas encolhia os ombros, com ar (na verdade até era) humilde, quando lhe elogiavam as poesias. Soubemos, mais tarde, que ele tinha um compromisso com o amor. Nunca teve de fazer nenhuma profissão de fé, nem se declarar oficialmente objetor de consciência, nem tampouco inscrever-se nos pacifistas anónimos e ir aquelas reuniões, meio chatas, em que se apresentaria, eu sou fulano de tal, oi fulano de tal, olá fulano de tal, e sou tão pacífico, tão pacífico que enxoto as moscas janela fora sem as molestar e vou a manifestações anti-inseticida e, depois, receber uma grande salva de palmas. Pois o amor enchia-lhe o coração e, todas as terças-feiras, vá-se lá saber porquê, decidia escrever um poema. Escrevia (talvez ainda escreva) cinquenta e dois poemas por ano, porque para ele não há férias para o amor, não há carnaval para o amor, não há cinco de outubro ou vinte e cinco de abril sem amor. Como quem não quer a coisa, invadimos-lhe a privacidade quando, por um canto do olho, lhe “roubamos” uma estrofe de amor, Sou poeta e sem rancores / quando me olham de soslaio / fulmino-os com flores / seja em abril ou em maio. Esta nem foi a mais bonita que lhe conseguimos. Outras temos do seu espólio. Peço-lhe desculpa, porque hoje é terça-feira, de cometer a inconfidência (ousadia) de lhe publicar um poema. Tenho a certeza que ele não ficará furioso. Ele nunca fica furioso, excepto quando o vinho não combina com o queijo.
Que importa que hajam nuvens no céu
E a que a lua não tenha o brilho de ontem?
E também que importa que as estrelas não cintilem
Ofuscadas pelo véu cinza de cúmulos e de cirros?
Que interessa que o mar se despenteie contras as rochas
E os barcos se silenciem no ranger das amarras?
Que importa se o vento uiva nas frinchas das portas
E nos invadem as palmas de um par de janelas batendo?
Que importa se há névoa no rio
E a buzina do cacilheiro muge à travessia?
Que importa se ladram cães ao longe
E ouves junto à porta passos apressados?
Que importa se a chaleira apita de vapor fervente
Ou se se escuta a água do banho no andar de cima?
Que importa a ausência de luz na rua
E os sons dos fantasmas que nos cercam,
Quando nos perdemos em copulares gemidos?
Nada, meu amor, nada importa
Quando possuímos a noite.
E a que a lua não tenha o brilho de ontem?
E também que importa que as estrelas não cintilem
Ofuscadas pelo véu cinza de cúmulos e de cirros?
Que interessa que o mar se despenteie contras as rochas
E os barcos se silenciem no ranger das amarras?
Que importa se o vento uiva nas frinchas das portas
E nos invadem as palmas de um par de janelas batendo?
Que importa se há névoa no rio
E a buzina do cacilheiro muge à travessia?
Que importa se ladram cães ao longe
E ouves junto à porta passos apressados?
Que importa se a chaleira apita de vapor fervente
Ou se se escuta a água do banho no andar de cima?
Que importa a ausência de luz na rua
E os sons dos fantasmas que nos cercam,
Quando nos perdemos em copulares gemidos?
Nada, meu amor, nada importa
Quando possuímos a noite.
Só decidi escrever este texto porque ontem, quando me mostrava o braço, ainda negro, de uma análise ao sangue, me confidenciou que a analista não lhe descobria a veia.
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Um diário em forma de poema, gosto de poesia e de facto quando se ama..."nada importa".
ResponderEliminarParabéns pelo post!
Pois aqui me tem, rendida, eterna e definitivamente, ao seu talento.
ResponderEliminarVou confidenciar-lhe o seguinte: vim à Net na disposição de mudar o meu post (também tenho um certo fetiche pelas terças-feiras). Quando vi que tinha nova publicação, não resisti à tentação de ler, numa de: «deixa lá ver o que o Constantino congeminou, desta vez».
O resultado foi não ter feito aquilo que me tinha proposto e, ainda por cima, chegar tarde ao trabalho.
Não importa!
Se a analista não encontrou a veia do poeta, pois então a senhora ou é vesga ou é pateta.
Que bela estrofe de amor! Divinal!
Um poeta sem rancores, que fulmina com flores, quem o olha de soslaio, merece uma ovação, seja Abril ou seja Maio!...
E que dizer do resto?!
Até me falta o fôlego…
Até a Lua Sangra e o Sol se põe no Ocaso…
Traga lá mais poesia, todas as terças, porque os poetas sabem bem escolher o vinho que combina com o queijo...
Duplos parabéns!!
Aqui lhe deixo um forte amplexo.
Janita
Lindo poema!
ResponderEliminarAs palavras quando são sentidas tornam-se verdadeiros hinos de sabedoria!
Abraço e muitos parabéns
RSM
Nada importa quando o amor é partilhado.
ResponderEliminarUm post soberbo!
Bjs.
Meus queridos e minhas queridas. Não tenho por costume responder um a um os vossos comentários mas isso não significa que não os leia e não fique imensamente satisfeito com o facto de aqui deixarem a vossa opinião. Em compensação não perco pitada dos vossso blogs e pago-me da mesma moeda! :) Deixo lá o meu comentário. Muito e muito obrigado.
ResponderEliminarL'important c'est la rose, já dizia o cantautor Bécaud, referindo-se à mola real da via... o amor!
ResponderEliminarE tu sim, tens uma enorme veia!
pois, que importa!
ResponderEliminara prosa ficou muito bem combinada com a poesia.
eu tambem gosto dessa forma de escrever.
muitos parabéns!
um beij
Diz-lhe a ele que eu também prefiro a sua prosa, mesmo que seja um poeta de mão cheia. Devíamos-lhe chamar o poeta das terças-feiras... :)))
ResponderEliminarBeijocas!
Digno de um sonhador
ResponderEliminara prosa , o poema , a terça-feira.
Ave Constantino !que lindo!
Levo comigo, porque quando o poeta lança a público seus versos, não lhe pertencem mais... rs
aplausos Constantino
um lirismo que vai se tornando inconfundível.
abraços abraços
Belissimo!!!
ResponderEliminarGosto muito de o ler, creia-me!
Bom fim de semana
Um beijinho
da
Assiria