domingo, 29 de maio de 2011

33. Dezoito por vinte e quatro


Passamos longas horas a conversar. Antigamente éramos mais amigos de folia mas a idade já nos empurra mais para os braços de um sofá do que para uma discoteca às duas da manhã. E nestas conversas, além de discutirmos a atualidade, a situação do país, a cultura, o desporto, relembramos muitas das nossas vivências passadas. E foi a propósito de uma noite de fados, a que tínhamos assistido na véspera, que ele voltou a referir-me as suas maiores penas de nunca ter concretizado. Uma era de nunca ter sido um jogador de futebol, daqueles que todos conhecem e não só os seus amigos lá do bairro e a outra a de nunca ter sabido cantar.

Lá cantar ele cantou. Relembrou ainda com uma ponta de emoção que aos dez anos de idade num daqueles concursos para crianças tinha saltado para o palco. E pormenorizou. Aquilo era assim, a gente ficava ali perto das escadinhas que davam acesso ao palco, um senhor contava até três e os dez primeiros a chegarem eram selecionados. Ele já tinha tentado outras vezes mas nunca tinha sido escolhido. Aquele seria o seu dia de glória. Cantou o ratinho foi ao baile / de cartola e jaquetão / sapato de bico fino / e um par de luvas na mão… A ovação foi tremenda. O apresentador não parava de olhar para o relógio e cronometrou dois minutos e trinta e sete segundos de palmas sem parar. O segundo ficaria com apenas cinquenta e seis, a longa, a uma eterna distância. Ganhou um bolo-rei e uma fotografia dezoito por vinte e quatro num dos melhores estúdios da cidade. Os outros ganharam lápis-de-cor e sacos de rebuçados. O prémio que ele desejava. Mas não se podia ter tudo, ou seja, o primeiro lugar e o melhor prémio… no seu ver de petiz. Também jogou à bola. Na sua rua era o melhor avançado, na escola era um dos primeiros a ser escolhido para fazer parte do time e já na universidade chegou a ser o melhor marcador no inter-turmas. Um dia foi assistir ao treino do irmão numa grande equipa de Lisboa mas não o deixaram. Ou ele se equipava e também participava no treino de captação ou teria de ir embora. Equipou-se e foi vendo, um a um, os treinadores a rejeitarem os putativos futebolistas. Quando o treinador principal interrompeu uma jogada de que foi protagonista, pensou, é a minha vez de ir tomar banho. No entanto, o treinador apenas lhe corrigiu o movimento, deu-lhe uma palmada nas costas e incentivou-o. No final poderia vir a ser contratado. Bastaria voltar ao próximo treino de captação. Mas isso não aconteceu pois nunca iria suportar vir a ser futebolista do maior rival do seu clube de coração. O amor à camisola atirou-o para o anonimato e aos quarenta e dois anos, quando decidiu arrumar as chuteiras ainda era o ponta-de-lança na sua equipa do trabalho.

Hoje, quando se refere a estes factos diz por graça que mal abre a boca no chuveiro para tentar cantar uma melodia, falta a água. E no único dia em que isso não aconteceu, na hora de sair do banho, tinha uma multidão à sua porta, não para lhe apreciarem o físico, mas com um abaixo-assinado. Ou deixa de cantar ou será saneado do prédio onde mora. Diz isto com alguma graça mas a paixão é tanta que se inscreveu na claque organizada do seu clube. E nos dias em que não chega a casa com um olho negro ou com a cabeça partida chega rouco ou afónico. É que para ele, o futebol e a música ainda fazem parte da sua vida e não há jogo que ele perca ou cântico que não entoe.

(A foto, não executada pelo autor, é de sua propriedade exclusiva. Qualquer utilização abusiva está sujeita a penalizações nos termos da lei. Gostaram deste disclaimer?) 

15 comentários:

  1. e entre a paixão e o sonho, ele escolheu a paixão, sabendo que o coração sempre arruma novos jeitos de sonhar, se este, viver apaixonado...

    mais um belo texto!

    Um beijo de um bom domingo!

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  2. E qual era esse clube, para ver se o admiro ou o chamo de urso?

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  3. Que vizinhos mais chatos, que não deixam um gajo cantar no duche à sua vontade! Mas admiro-lhe a coerência, embora hoje já ninguém ligue a isso de ser adversário do próprio clube do coração - "vendem-se" a quem pagar mais e fim de papo!

    Gostei desse final, de entrar para a claque para compensar as suas duas frustrações (se assim se podem chamar...)! :)))

    Beijocas!

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  4. Rafeiro, quando o voltar a ver pergunto-lhe. Acreditas que tal era a convicção que nem tive jeito de lhe perguntar?

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  5. Bela foto! Muito linda a criança...(és tu?)

    Gostei da sessão nostalgia...me deu até saudades de meus tempos idos :)

    Tenha uma excelente semana, Constantino.

    Fico no aguardo de mais um lindo texto teu.

    Bjs

    Cid@

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  6. Oi Constantino
    Sou uma blogueira de segunda mão. Sempre perco as melhores conversas, essa peguei ainda antes de virar a página.
    .Um contista do maior gabarito . E ainda me faz ir a Wikipedia pra ter certeza do que dizia ser
    "disclaimer" rsrs eu gosto Constantino e nem me acanho de aprender rs
    Voce como guardador de vacas ( precisa falar a respeito, qualquer hora dessas), rs está mais pra delicadeza dos pássaros com histórias enternecedoras.
    Cada vez que te leio gosto mais do estilo.
    um abraço da
    lis

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  7. Cida, sim, nessa foto sou eu quando tinha 10 anos de idade.

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  8. Adorei, adorei, adorei...e gargalhei com a parte final.

    A foto de outros tempos em que era marcada pela "pose"...e devias ser o giraço da turma:)

    Beijos e obrigado por este momento de leitura

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  9. Olá

    A vida é feita de momentos.Alguns são apagados, outros são memória que fazem parte da nossa história.

    Bjs.

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  10. __________________________________


    Gostei de ler o seu texto! Também cantei em programa de calouros, quando tinha 10, 11 anos... Também até sonhei em ser artista! Mas, o "grande maestro" tinha outros planos para mim...

    Voltarei com certeza!

    Beijos de luz...

    ___________________________________

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  11. Há manias que não se perdem... tal como tu não perdes o jeito de escreveres bem!

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  12. Mas, a foto está em tamanho original?! Qualquer um pode copiar e re-utilizar. Ao menos aponha-lhe uma marca, assinatura, qualquer coisa que a identifique ou inutilize para outros usos.

    Parabéns pelos textos.
    Saúde.

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