quarta-feira, 27 de junho de 2012

154. Ismael (67) - Uma questão de estilo



- Estou a gostar.
- Sério?
- Sério.
- Obrigado.
- De nada. Estou a ser sincera.
- Eu sei.
- Mas tenho uma crítica.
- Qual?
- A forma.
- A forma?
- Sim!
- E o conteúdo?
- Não. Para mim está bem assim. Está como combinámos.
- Mas há quem diga que estou a ser chato.
- Não está nada. Se já tivesse revelado o final também não estaria mal, mas assim, como está a fazê-lo, parece-me bem.
- Então e a forma?
- É a escrita.
- O que é que tem a escrita?
- É simples demais.
- Achas?
- Acho.
- Mas é abrangente, ou para ti isso não importa.
- Não digo o contrário, mas a crítica…
- A crítica? A crítica literária, queres tu dizer…
- Sim, são muito exigentes, são a verdadeira ASAE da escrita.
- Estás-me a querer dizer o quê? Que não posso usar colheres de pau e tenho de forrar as cozinhas com azulejos?
- Exatamente.
- Palavras caras?
- Não só.
- Mais metáforas?
- Não propriamente.
- Intrigante…
- Nem por isso.
- Queres desembuchar?
- Alegorias.
- É uma falha, mas isto é só um policial igual a mais um milhão e quatrocentos mil que já se escreveram.
- Não se minimize.
- Ok, um bocado enredado e que mais?
- Sinédoques, metonímias.
- Está bem, é verdade, mas ironia não falta, comparações, eufemismos, imagens não faltam.
- E se bem que não descurou as exclamações nem as perguntas de retórica, tem estado um bocado longe das apóstrofes e das prosopopeias.
- Mas conseguiste descobrir zeugmas, anáforas, hipérbatos, silepses?
- Nem por isso. Acho que trabalhou pouco as figuras de construção.
- Posso dar a mão à palmatória mas não é nesta fase da escrita que me vou empenhar mais.
. Nem eu lhe estou a sugerir isso, mas nunca se esqueça do que dizia o Conde de Buffon.
- Mas eu não só não estou a lutar para a posteridade como também, não escrevo tão mal como isso. Penso eu.
- Uma coisa lhe reconheço. Você tem o seu estilo e isso é inegável.
- Le style c’est l’homme même.
- Nem mais.

Retirou um cigarro da cigarreira que parece ser de prata. Continuo sem saber bem quem é a “minha” rapariga da esplanada. Ela sabe mais do que eu penso que sabe ou estará a armar-se?  Deu duas baforadas, levantou o indicador direito e chamou o garçon. Perguntou-lhe se o pão era fresco e bem cozido. Perguntou-lhe se o fiambre era cortada da peça na altura ou tirado às fatias do frigorífico onde estaria embrulhado em celofane. Quis saber a origem da manteiga, ao que correspondi com uma gargalhada. E mais admirada ficou do que o próprio empregado do bar quando eu disse «hoje não há sandes de fiambre com manteiga para ninguém. Traga-nos uma travessa de caracóis, se faz favor, e duas imperiais». Não me admira que ela, tivesse, em pensamento, me chamado rústico. Mas como dizia Aquilino Ribeiro “Em literatura o estilo é como o álcool para os corpos embalsamados: conserva-os” . Eu hoje fico pela cerveja. 


8 comentários:

  1. Nada melhor depois da dissertação literária( exímia, diga-se) uns aperitivos à maneira!!

    Um abraço,

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  2. complicada essa rapariga, chiça!
    e rústico?
    kis :=)

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  3. Ainda bem que te alembraste do Aquilino...
    aquilo...
    aquilo é uma vamp, uma impostora...
    acreditas que nem sabe ler?,
    Acho que pedia para que lhe lessem o que escrevias?

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  4. Por mim... por estes dias... agrade-me bem mais o pratinho de caracóis... oh se agrada!

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  5. ...'estou a gostar'
    dizem que 'quando lemos, outra pessoa pensa por nós' com esse estilo refinado, vou querer pensar contigo,sempre!
    Nietzsche dizia só amar os livros escritos com sangue,seu estilo nao vai a tanto é bem mais eclético, degustador... rs
    quanto a "rapariga" da esplanada melhor nao comentar, aliás aqui rapariga tende a ser pouco ou muito amada rs
    abraços Vitor

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