Olá, eu sou Ismael ben-Avraham. Sou um judeu, de uma família
tradicional, nascido nas montanhas da Áustria e que, graças a um esquiador
austríaco que, cheio de cerveja no bucho, resolveu esquecer-se do blusão numa
estância de esqui, consegui safar-me aos esbirros nazis e regressar à terra de
Davi. (O escritor reflete sobre a rima usada na frase. Quem sabe um dia se
dedique a histórias infantis onde o género tem mais impacto.) Curiosamente,
pertenço a um ramo de uma família que nos tempos da Inquisição em Portugal
fugiu para outros países da Europa, nomeadamente a Holanda e a Áustria. Nesse
tempo ainda era a família Oliveira que aos poucos foi perdendo a identidade
lusa, embora se encontrem todavia alguns עץ
שמן em Israel
e alguns olijfboom na Holanda, bem
como, pelo menos uma família Olivenbaum
na Áustria. Mas nunca fomos uma família muito unida pois consta dos anais e da
história da família, várias ofensas entre ramos, de tal modo que na Áustria
chamávamos aos Oliveira holandeses, os Oliveira da ganza e eles chamavam-nos, a
nós, os da montanha, os Oliveira da serra que era um eufemismo para não nos
chamarem azeiteiros. E eram muito invejosos. Quando eu me formei em medicina
chamavam-me o Oliveira do hospital para ver se eu me chateava, eles que, além
da ganza, sempre foram Oliveiras de piercings
com brilhantes, a lembrar certas ligações com o futebol. Mas adiante, porque
vários descendentes foram perdendo o Oliveira e eu, já sou um ben-Avraham da
parte do meu pai mas, quem sabe, algum tetravô se chamaria Ismael de Oliveira
ben-Avraham. Bom, mas isto que vos contei, das minhas ascendências, parece nada
ter a ver com a resolução do crime da Rua dos Correeiros, mas tem. Foi
exatamente por causa de eu ainda ter sangue português que a Mossad me mandou
para Portugal à procura da medalha que o fascista Rafaello Vicentini roubou a
Jürgen Grass, num comboio na Suíça, com o número da conta onde está guardada a
fortuna da família Schneider. Mas, antes de continuar tenho de vos pedir um
favor que, se calhar, nunca ninguém antes vos pediu. Eu vou fazer uma
revelação, mas não gostaria que, no final, quando o inspetor vos dissesse quem
matou a Isabella, a filha do ladrão e fascista Rafaello, coisa que naturalmente
fará no final da alocução que está em curso na tasca de Ismael Gusmán, não
desatassem todos a dizer, «eu já sabia, eu já sabia». Até porque o inspetor não
gosta de se sentir ultrapassado, mas que, para não me perder, já vos falarei
disso mais adiante. Pois a minha revelação é a seguinte. Eu não matei Isabella
Vicentini! Passavam poucos minutos das sete da manhã quando, no meio de uma
cirurgia de pequena importância, que os meus assistentes puderam facilmente terminar,
fui chamado ao telefone do Hospital. O senhor Ishmail Baruch, tinha conseguido
infiltrar-se em casa de Isabella, graças a uma gazua feita com um clip de aço
inoxidável, como ele tinha aprendido nas escolas da Mossad e em alguns filmes
em cinemascópio que começavam a passar nos écrans israelitas e, também, graças
ao estado de cansaço de Isabella, que descurou a tranca e o ferrolho,
deixando-os abertos. Isabella dormia, pois, segundo o senhor Baruch e tal como
o manuscrito de Francisca o confirma, teria chegado, naquela noite, bem mais
tarde do que o costume. Sem que ela o notasse, pois o sono era profundo,
começou o senhor Baruch a utilizar as técnicas de busca noturnas, típicas das
polícias políticas e serviços secretos sofisticados. Foi abrindo gavetas e
armários, apalpando sutiãs e cuecas de renda, camisas de dormir em algodão e em
cetim, meias de vidro, com e sem renda, com e sem costura, com e sem pé, tutus
em tule italiana, o que mostra que o senhor Baruch até pelo quarto de Ekatrina
se movimentou, sapatos de ballet, penaches de corista, batons, rouges, pós de
arroz, lápis de sobrancelhas e espelhos, pinceis de rimmel, saias e vestidos de
chita, aventais e panos de cozinha, botas de cano alto e sabrinas, toalhas
turcas e casacos de abafar, gabardinas, canadianas e camiseiras, cujas cores
não me pode referir, dado que toda a pesquisa se fez durante a noite. Teve
mesmo o cuidado de andar devagar para que o seu defeito na perna esquerda não o
traísse com o mancar descoordenado que poderia despertar a bela corista
adormecida. De nada lhe valeu toda aquela apalpação. Nem sinal de medalha, nem
de fio, nem de nada que interessasse a um espião, pelo que com a raiva que se
lhe acometeu, só lhe apeteceu mesmo foi pegar numa faca e matar logo ali aquela
filha de um fascista. Eis senão quando, um reboliço se ouve no corredor, por
onde alguém, aproveitando a porta, inadvertidamente deixada aberta, pelo senhor
Baruch tinha acabado de entrar. O individuo, sem experiência para se deslocar
no escuro, batera contra uma coluna e fez tombar um vaso de flores, onde
despontava uma chamaedora elegans que
se estatelou direta no chão, desfazendo-se numa dezena de fanicos. Isabella
assustou-se e deu um pulo da cama. O senhor Baruch, mais surpreendido do que
assustado, escondeu-se no guarda-fatos do quarto de Ekatrina. Isabela
precipitou-se para o corredor. O senhor Baruch colou o ouvido na porta do
roupeiro. Isabella deu um grito e depois outro. O senhor Baruch ouviu o barulho
seco como o de um corpo a cair no chão e saiu de imediato do armário. Correu
direito ao corredor no seu, apesar de tudo, engraçado mancar. Alguém no andar
de baixo, se lá estivesse, com certeza teria notado isso. Pela escada abaixo,
uma correria louca. Ao senhor Baruch seria impossível acompanhar. No chão jazia
e esvaía-se em sangue a corista Isabella Vicentina. Estava morta. No peito uma
faca. No corpo, três facadas.
Foi isto que escutei ao telefone. Pedi ao meu assistente principal
que tomasse conta da cirurgia. Segredei ao ouvido da enfermeira Helena que
teria de me ausentar com urgência. A enfermeira Helena, entendeu erradamente o
que eu queria dizer e saiu comigo. Quando me apercebi e vi que a enfermeira
feia, que me andava a perseguir já há algumas semanas, teria topado o meu
segredo, passei por ela, e disse-lhe «anote a hora e amanhã não se esqueça de
ir fazer queixa ao senhor Diretor». Pisquei-lhe o olho e olhei para o relógio.
Eram sete e meia da manhã. Disso, a enfermeira feia, deu conta ao inspetor
Ismael Sacadura Flores, pelo que, como irão ouvir na alocução do polícia, eu
estou inocente. Infelizmente, o senhor Baruch, numa crise de nervos, de raiva e
de frustração, desenterrou a faca do peito do cadáver e fez-lhe um quarto
golpe. Depois saiu.
Não quero terminar esta minha revelação sem acabar o que comecei.
E o que comecei foi por pedir-lhes que não dissessem nada ao inspetor Ismael
Flores de que já sabem que eu estou inocente. Ele vai sentir-se ultrapassado e
quando ele se sente ultrapassado, desata a comer berbigões abertos ao natural
com coentros picados e sumo de limão, requeijão com doce de abóbora,
profiteroles com molho de chocolate, a beber moscatel de Setúbal, a comer
pistachos da Pérsia e a cuspir as cascas, tremoço saloio com cerveja a copo,
caracóis refogados em tomatada e bocadinhos de chouriço, a beber vinho rosé bem
gelado, a comer choco frito à setubalense, a beber poncha da Madeira, a comer
alcagoitas torradas e a beber café sem açúcar. E depois não querem que o homem
fique com gases.
Tenho perdido uns capítulos, vou tentar inteirar-me do andamento, mas já vi que pelo menos este está ilibado...*
ResponderEliminarEheheheheh
ResponderEliminarAinda bem que este episódio saiu hoje à cena, Contantino. É que a partir de amanhã tenho cá a minha tropa da margem sul e tenho de começar a pensar no cabrito, nas sardinhas, tomates e pimentos, para a noite e dia de S.João. Isto sem contar com o carvão. Vai ser um corropio.
Parece-me que afinal há mais do que um assassino. Se é que se pode matar alguém que já está morto. Para agora temos cinco facadas, atão as outras duas?
Quando acabares esta saga, se é que algum dia isto vai acabar, pensa então em escrever histórias infantis.
Quando o teu neto souber ler não vai entender patavina disto...mas lá que vai rir e muito, isso vai.
Beijocas.
Aos poucos vamos ficando a saber quem não matou Isabella. Só que estas confissões... não sei porquê, dão-me cá uma fome. Se eu tivesse aqui umas profiteroles com chocolate mmmm....
ResponderEliminarEntre Oliveiras daqui e dali, vindas dos lugares mais estranhos e facadas que ficámos a saber que não foste tu o autor...fiquei aliviada:))) misturam-se pitéus de fazer babar qualquer um e como são quase horas de almoço, já estou a imaginar onde irei comer uma bela sardinhada bem regada.
ResponderEliminarEssa das histórias infantis, não era má ideia , não senhor, é que com a tua imaginação, acredito que nasceriam enredos bem interessantes que prenderiam mesmo a criancinha mais irrequieta.
Um dia feliz para ti e nada de abusos, olha o colesterol:)))
Da história dos Oliveiras ao final feliz daquela mesa onde se petiscavam só coisas boas, se passou mais um pouco do enredo desta história que nos vai permitindo sorrir... e petiscar!
ResponderEliminarUm abraço,