quarta-feira, 6 de junho de 2012

147. Ismael (60) - Misteriosa





Em Trás-os-Montes e no Canadá não se falava noutra coisa. O borburinho era tamanho que até levou o escritor a afirmar uma coisa destas, sabendo-se de antemão a dimensão de Trás-os-Montes, a dimensão incomparável do Canadá e até a dimensão que viria a atingir a Quinta do Conde, onde também não se falava de outra coisa. Exageros poéticos à parte, a Lua beijava já o Atlântico Norte e o Sol despontava nos raianos montes. Toronto ainda dormia, enquanto a Quinta do Conde esfregava as remelas de uma noite bem sonhada. Na Rua dos Correeiros, uma italiana, que poucas horas antes acabava de chegar a casa, vinda de mais uma noite árdua de trabalho e de um frugal jantar numa cervejaria de esquina, iria ser assassinada. Uma misteriosa senhora quis ser testemunha de um crime e afirma nada ter visto. Sentado, num disfarce indelével, de nutridor de pombos, um tal chefe de brigada de sua graça Ismael de Almeida, constituir-se-ia fiel depositário de testemunho e emoção. E enquanto a Ginjinha do Rossio abria as suas portas e os primeiros pedintes se colocavam estrategicamente nas portas da Igreja de S. Domingos, as fontes da Praça de D. Pedro IV não paravam de brotar água. Na Praça da Figueira ouviam-se os primeiros pregões do dia, o peixe chegava em carroças vindas do cais de Santos e do Cais do Sodré, Rachel já era morta havia tempos, a Quinta do Conde preparava-se para rumar a Cacilhas onde um vapor a esperava para a levar a trabalhar em Lisboa, Toronto dormia o sono dos justos. E, no entanto, naquela aldeia raiana de Trás-os-Montes, naquele bairro de Toronto onde as línguas latinas eram lei e um italiano vendia móveis num pavilhão envidraçado, naquela quinta onde clandestinamente se erigiam vivendas sem água canalizada, nem luz elétrica, paredes meias com Sesimbra e com a Serra da Arrábida, não se falava noutra coisa. As sobrinhas juravam que se a tia rumasse aos calabouços, elas viriam em seu auxilio e testemunhariam que uma pessoa de bem, que cuidou desde pequenino de Ismaelzinho Gusman, neto do amigo do escritor desde quando, fatidicamente, o seu pai, sendo que o escritor promete ainda vir a contar esta história, se finou, uma mulher que não aguentava o frio de paragens tão distantes, rumando seis meses em cada ano ao seu país natal, uma mulher que apenas ouviu os passos de alguém que lhe parecia coxo no andar de cima, não poderia nunca, mas nunca por nunca ser, ser autora de um tão hediondo crime que já todos conhecemos e que não vale a pena repetir, apenas registando que sete facadas não se dão a ninguém, muito menos no peito e ainda menos a uma pobre corista, cujo pecado foi ter uma medalha de Nossa Senhora num fio de ouro.

O inspetor Ismael Sacadura Flores, pôs os pontos nos is. Aquela era a sessão final. Depois dela, mais nada. Ou melhor. Depois dela os calabouços. Depois deles o julgamento. Depois dele a condenação. Depois dela, de novo, os calabouços. Depois deles o recurso. Quiçá, depois dele, os calabouços. O inspetor Sacadura não tinha a menor dúvida. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes ouviu passos. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não mentiu ao disfarçado homem que alimenta pombos nas galerias exteriores do Teatro Nacional. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não foi para a sua casa da Quinta do Conde, onde luzes foram vistas acesas e, se não escapa à memória do escritor, se viram vultos passeando no primeiro andar, preferindo ficar no apartamento da Rua dos Correeiros, por uma inesperada coincidência como são inesperadas todas as coincidências da vida. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes sofria de insónias. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não matou Isabella Vicentini  é o que conclui o relatório de Ismael Sacadura Flores. Ninguém entendeu esta conclusão do inspetor. O escritor está com dificuldades em explicá-la. O inspetor olha para Espinheira. Espinheira, por sua vez, olha para Francisca. As sobrinhas da misteriosa senhora não estavam presentes, não faria, como não fez aliás, falta nenhuma o seu testemunho. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes e idosa também, como sabemos de episódios anteriores ouviu passos. “Isso chega?”, perguntarão os leitores. Não, isso não chega, responderá o escritor. E se o engenho permitir ainda vos demonstrará porque é que o inspetor chegou à conclusão que a misteriosa e idosa, agora sim, está bem adjetivada, senhora de Trás-os-Montes não matou Isabella Vicentini. E para comemorar o evento, a misteriosa e idosa senhora levantou-se do seu banco, pois já estava aflita das cruzes, e mandou Ismael Gusmán servir uma rodada para todos, enquanto foi fazer um chichi.

Quem nunca se conformou com este desfecho foi uma pequena aldeia trasmontana, foi um bairro de Toronto e foi uma ruela da Quinta do Conde. A inveja do mundo é uma coisa muito feia.

6 comentários:

  1. ... e eis senão quando,
    uma coisa mal explicada
    dá lugar a uma rodada


    (este escritor é generoso
    com os presentes)

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  2. Fico a aguardar... com uma certa ansiedade!

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  3. Com a falta de justiça que existe neste país, só espero que a idosa senhora de Trás-os-Montes não vá dar com os ossos ao calabouço.
    Logo ela, coitada, que nem aguentou a cena de pancadaria e quase ia morrendo do coração, desatando num pranto que só visto.
    Aguardemos, com paciência, que se faça luz naquela cabeça dura do inspector Ismael Sacadura Flores e a nossa fique iluminada...agora venha de lá a rodada. Irra!!

    Beijocas despacientadas.

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  4. Mas o que é isto? Este crime já se investiga também além-fronteiras? Já chegou ao Canadá?

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  5. Coitado desse inspetor Flores está cada dia mais confuso e agora enquanto espero o desfecho do crime das sete facadas(seriam sete)? rs sai do forno daqui a pouco a historia do Ismaelzinho Gusman, o tal neto do amigo do escritor.
    Fico sempre na expectativa Vitor
    abraços e risos

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