Em Trás-os-Montes e no Canadá não se falava noutra coisa. O
borburinho era tamanho que até levou o escritor a afirmar uma coisa destas,
sabendo-se de antemão a dimensão de Trás-os-Montes, a dimensão incomparável do
Canadá e até a dimensão que viria a atingir a Quinta do Conde, onde também não
se falava de outra coisa. Exageros poéticos à parte, a Lua beijava já o Atlântico
Norte e o Sol despontava nos raianos montes. Toronto ainda dormia, enquanto a
Quinta do Conde esfregava as remelas de uma noite bem sonhada. Na Rua dos Correeiros,
uma italiana, que poucas horas antes acabava de chegar a casa, vinda de mais
uma noite árdua de trabalho e de um frugal jantar numa cervejaria de esquina,
iria ser assassinada. Uma misteriosa senhora quis ser testemunha de um crime e
afirma nada ter visto. Sentado, num disfarce indelével, de nutridor de pombos,
um tal chefe de brigada de sua graça Ismael de Almeida, constituir-se-ia fiel
depositário de testemunho e emoção. E enquanto a Ginjinha do Rossio abria as
suas portas e os primeiros pedintes se colocavam estrategicamente nas portas da
Igreja de S. Domingos, as fontes da Praça de D. Pedro IV não paravam de brotar
água. Na Praça da Figueira ouviam-se os primeiros pregões do dia, o peixe
chegava em carroças vindas do cais de Santos e do Cais do Sodré, Rachel já era
morta havia tempos, a Quinta do Conde preparava-se para rumar a Cacilhas onde
um vapor a esperava para a levar a trabalhar em Lisboa, Toronto dormia o sono
dos justos. E, no entanto, naquela aldeia raiana de Trás-os-Montes, naquele
bairro de Toronto onde as línguas latinas eram lei e um italiano vendia móveis
num pavilhão envidraçado, naquela quinta onde clandestinamente se erigiam
vivendas sem água canalizada, nem luz elétrica, paredes meias com Sesimbra e com
a Serra da Arrábida, não se falava noutra coisa. As sobrinhas juravam que se a
tia rumasse aos calabouços, elas viriam em seu auxilio e testemunhariam que uma
pessoa de bem, que cuidou desde pequenino de Ismaelzinho Gusman, neto do amigo
do escritor desde quando, fatidicamente, o seu pai, sendo que o escritor
promete ainda vir a contar esta história, se finou, uma mulher que não
aguentava o frio de paragens tão distantes, rumando seis meses em cada ano ao
seu país natal, uma mulher que apenas ouviu os passos de alguém que lhe parecia
coxo no andar de cima, não poderia nunca, mas nunca por nunca ser, ser autora
de um tão hediondo crime que já todos conhecemos e que não vale a pena repetir,
apenas registando que sete facadas não se dão a ninguém, muito menos no peito e
ainda menos a uma pobre corista, cujo pecado foi ter uma medalha de Nossa
Senhora num fio de ouro.
O inspetor Ismael Sacadura Flores, pôs os pontos nos is.
Aquela era a sessão final. Depois dela, mais nada. Ou melhor. Depois dela os
calabouços. Depois deles o julgamento. Depois dele a condenação. Depois dela,
de novo, os calabouços. Depois deles o recurso. Quiçá, depois dele, os
calabouços. O inspetor Sacadura não tinha a menor dúvida. A misteriosa senhora
de Trás-os-Montes ouviu passos. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não
mentiu ao disfarçado homem que alimenta pombos nas galerias exteriores do
Teatro Nacional. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não foi para a sua casa
da Quinta do Conde, onde luzes foram vistas acesas e, se não escapa à memória
do escritor, se viram vultos passeando no primeiro andar, preferindo ficar no
apartamento da Rua dos Correeiros, por uma inesperada coincidência como são
inesperadas todas as coincidências da vida. A misteriosa senhora de
Trás-os-Montes sofria de insónias. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes não
matou Isabella Vicentini é o que conclui
o relatório de Ismael Sacadura Flores. Ninguém entendeu esta conclusão do
inspetor. O escritor está com dificuldades em explicá-la. O inspetor olha para
Espinheira. Espinheira, por sua vez, olha para Francisca. As sobrinhas da
misteriosa senhora não estavam presentes, não faria, como não fez aliás, falta
nenhuma o seu testemunho. A misteriosa senhora de Trás-os-Montes e idosa
também, como sabemos de episódios anteriores ouviu passos. “Isso chega?”,
perguntarão os leitores. Não, isso não chega, responderá o escritor. E se o
engenho permitir ainda vos demonstrará porque é que o inspetor chegou à
conclusão que a misteriosa e idosa, agora sim, está bem adjetivada, senhora de
Trás-os-Montes não matou Isabella Vicentini. E para comemorar o evento, a
misteriosa e idosa senhora levantou-se do seu banco, pois já estava aflita das
cruzes, e mandou Ismael Gusmán servir uma rodada para todos, enquanto foi fazer
um chichi.
Quem nunca se conformou com este desfecho foi uma pequena
aldeia trasmontana, foi um bairro de Toronto e foi uma ruela da Quinta do
Conde. A inveja do mundo é uma coisa muito feia.
... e eis senão quando,
ResponderEliminaruma coisa mal explicada
dá lugar a uma rodada
(este escritor é generoso
com os presentes)
Fico a aguardar... com uma certa ansiedade!
ResponderEliminarCom a falta de justiça que existe neste país, só espero que a idosa senhora de Trás-os-Montes não vá dar com os ossos ao calabouço.
ResponderEliminarLogo ela, coitada, que nem aguentou a cena de pancadaria e quase ia morrendo do coração, desatando num pranto que só visto.
Aguardemos, com paciência, que se faça luz naquela cabeça dura do inspector Ismael Sacadura Flores e a nossa fique iluminada...agora venha de lá a rodada. Irra!!
Beijocas despacientadas.
... um dia se fará luz
ResponderEliminarAbraço
Mas o que é isto? Este crime já se investiga também além-fronteiras? Já chegou ao Canadá?
ResponderEliminarCoitado desse inspetor Flores está cada dia mais confuso e agora enquanto espero o desfecho do crime das sete facadas(seriam sete)? rs sai do forno daqui a pouco a historia do Ismaelzinho Gusman, o tal neto do amigo do escritor.
ResponderEliminarFico sempre na expectativa Vitor
abraços e risos