domingo, 17 de junho de 2012

151. Ismael (64) - Depoimento ou a história de uma prisão providencial



Olá, eu sou o doutor Castro Ribeiro e quero pedir-vos, solenemente, um favor. Um daqueles favores que se fazem aos amigos e eu sei, que entre vós, leitoras e leitores dos livros do senhor Constantino, posso contar alguns amigos. Amigos que acreditam na justiça e nos seus agentes, tal como eu o fui e ainda sou. Um homem que apesar do percalço que houve com a minha Rachel nunca abandonou Sebastião, nem nunca desprotegeu Francisca. Se o senhor Ishmail Baruch não percebe isto, é porque ou é burro, ou é um avarento judeu que apenas se preocupa com o negócio dos charutos cubanos, Ou ainda, talvez um pouco mais deprimente, talvez seja um agente secreto israelita à procura de um número de uma conta na Suíça, que desde há muito se desconfia estar inscrito numa medalha de ouro presa a um fino fio. A verdade é que eu, ainda enquanto advogado, fui solicitado para um caso parecido, que envolvia judeus de origem russa e uma velhinha que vendia arenque fumado numa aldeia caucasiana, mas que, acabei por ter de desistir do caso por mor de ter começado a exercer a minha profissão de juiz. Pois só vos quero dizer que tenho cá um feeling de que um caso não tem nada a ver com o outro e que o escritor, que gosta de enigmas, introduziu-me, numa certa fase da minha vida, na busca de um caso similar e que, graças a Deus, apesar de eu nunca ter tido conhecimento do final, nunca se constou que tivesse culminado numa morte e, muito menos, por esfaqueamento. E agora peço-vos desculpa. Alonguei-me tanto que nem vos cheguei a pedir o favorzinho. Pois é o seguinte, meus amigos. Não digam nada ao inspetor Ismael Sacadura Flores, que a estas alturas da narrativa, pressuponho, esteja na tasca do amigo do senhor Constantino, o nosso bem conhecido Ismael Gusmán e que é galego e que por isso usa boina e fala com xizes, a fazer uma preleção dedutiva e lógica para chegar à conclusão de quem é que vai para a prisão, sendo que eu também fui intimado a comparecer, por via da minha ex, a Francisca, boa gente sim senhora, que vive atualmente na Quinta do Conde que também é uma boa terra, sim senhora. Não digam nada, pedia-vos eu, não lhe digam que eu me vou antecipar, pois vou, desde já e para sempre, declarar pela minha honra, de que não matei a jovem bailarina. E perguntam-me vocês, principalmente aqueles que são menos meus amigos, que nunca me perdoaram eu ter feito um filho à peixeira judia, desconfiando mesmo que eu tivesse alguma coisa a ver com a sua morte, e me ter apaixonado logo a seguir pela Francisca, nunca me ter assumido como pai, ser putanheiro, beber uns copos, enfim, um safado de primeira, se eu tenho provas do que afirmei. Também foi bem perguntado, sim senhores mas até para vocês, amigos da onça, eu tenho provas. Sei também que o senhor Constantino insinuou que poderia ter sido eu, pois denunciou-me naquela noite em que eu saí aos gritos de «eu mato aquela puta! Eu mato aquela puta!», do bar Barba Roxa, o bar do célebre Ismael Júlio que tem espanholas por conta e vende whisky de contrabando. Mas olhem que para vosso conhecimento é muito melhor o VAT 69 que ele vende, vindo por portas e travessas parar ao seu alçapão, do que muita mixórdia de Sacavém que alguns já beberam por aí. E quais são as provas? Bom, naquelas noites que antecederam a morte da pobre catraia, que eu nem conhecia muito bem, embora já tivesse ouvido falar dela várias vezes, até porque o Sebastião andava a bater-lhe os olhos e a apalpar-lhe as coxas, eu parei muito por aqui por Lisboa. Estava a gozar os primeiros dias da minha reforma, a minha vida é Vila Nova de Gaia, mas a carne é fraca e um dia em que fui dar assistência jurídica a Francisca, por causa de umas desavenças com uma vizinha que não a deixava pintar uma empena da moradia que confinava com o quintal da outra, dei de caras com a filha do sapateiro da Quinta do Conde, a vossa já bem conhecida Isaurinha. Ora eu, um homem livre, não tendo que dar satisfações a ninguém, hospedei-me numa pensão lisboeta, famosa pelo cozido à portuguesa que fazia à quinta feira, pelas favas com entrecosto que confecionava às terças feiras, pela caldeirada à fragateiro que servia às quartas feiras, pelo pargo no forno com batatinha nova, pelo cabrito à padeiro e outras iguarias, infelizmente ao alcance de poucas bolsas, mas eu, verdade seja dita, não tenho desses quiproquós. E também sei, tenho a certeza disso, que não foi por causa do meu dinheiro, nem da minha posição social, que a Isaurinha Bate-Sola se me vinha juntar nos lavados e engomados lençóis da minha cama, no quarto 202 da referida pensão. E se eu disse que matava aquela puta, só vos quero dizer que isso foi apenas um desabafo de indignação por ter sabido que o meu próprio filho andava na pouca-vergonha com aquela rapariga, a esbelta e sensual Isaurinha Bate-Sola. Mas querem testemunhas, querem, não é verdade? Pois então vamos lá a ver se vos consigo ditar uma a uma. O senhor Ismael Gusmán serviu-me o jantar perto das oito da noite. Comi uma posta de bacalhau com batatas e grelos, por acaso muito fresquinhos se não me falha a memória. «Então daqui é para a caminha, não é senhor doutor?», perguntou-me depois de ter bebido o meu cafezinho e um bagaço, por acaso coisa de estalo, que recomendo para quando lá passarem, e ter pago onze escudos e trinta centavos pelo repasto. «Ainda não, senhor Ismael, ando cá com uns pressentimentos, que isto não é coisa boa. Pode crer senhor Ismael que esta noite vai haver coisa, lá isso vai. Por isso vou até ao Barba Roxa». Ora o senhor Ismael que me deixou de ver pelas nove e meia da noite não pode ser minha testemunha, mas pode conferir o que acabei de dizer. No Barba Roxa, onde entrei por volta da uma da manhã, depois de ter ido jogar um pouco de bilhar na Rua do Jardim do Regedor, encontrei o Sebastião, com cara de caso. Depois de alguns VATs, contou-me a história da crioula e eu aconselhei-o a procurar um lugar seguro para se esconder. Se o indígena do pai da mulata o apanhasse ainda teríamos marinheiro às fatias. Foi então que ele me falou do caso dele com a Isaurinha Bate-Sola, naquela ingenuidade de que poderia ir até à Quinta do Conde mas que em vez de ir para casa da tia, iria dormir para casa de Isaurinha. Assim, como assim, não seria a primeira vez e depois começou a gabar-se e tal e coisa. Eu, no princípio, não disse nada porque o sangue corre-lhe nas veias, tem a quem sair. Mas quase chegada a madrugada, desta vez com o sangue bem carregado de álcool, saio do Barba Roxa e já com os olhos turvados pois não voltei a ver o Sebastião, que segundo consta estaria já escondido num alçapão com duas espanholas, o malandraço, a correr e aos gritos de que a matava. «Eu mato aquela puta! Eu mato aquela puta!». Ai se apanhasse a jeito aquela filha de um sapateiro, ai pressinto que perderia a cabeça. Mas não, quem encontrei foi a comissária Xana, que já conhecem também e que, portanto, me dispenso de fazer apresentações. Uma rapariguinha, por caso de boas famílias, coitadita, que vinha também sair do bar até me perguntou «Ó doutor, vai preso?» e eu, com a paciência esgotada, até fui mal-educado e peço-lhe daqui desculpa por isso, respondi «não querida, vou dormir com a chefe». E foi assim que passei essa noite nos calabouços da esquadra da Mouraria, eu um juiz jubilado que só quase à hora de almoço do dia seguinte, quando a buba me passou é que me pude identificar e sair em liberdade. E se o Ismael Júlio não pode ser testemunha porque saí do seu bar antes de ter sido esfaqueada a italiana, já do auto da ocorrência e da minha noite entre grades, ninguém pode duvidar.

Mas olhem que isso de não contarem nada ao inspetor de que eu me antecipei é a sério. O homem, quando se sente ultrapassado, desata a comer fofinhos de pescada panados em farinha de milho, folhadinhos de salsicha tipo Francoforte, a beber vinho tinto do canjirão, a comer bolinhos de côco, pastéis de feijão, dobradinha à moda do Porto, sandes de torresmos, queijo fresco da Malveira, azeitonas de Elvas sem caroço, a beber ginjinha de Óbidos com e sem elas, a comer chanfana de cabra e a beber café sem açúcar. Depois não querem que o homem fique com gases.  


5 comentários:

  1. Pela pedalada do escritor e pela junção à lista gastronómica de acepipes não antes oferecidos... acho que agora é que isto começa... Ó pá tens a certeza de que aquele posfácio não era um prefácio?

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  2. Epá, isto agora só me saiem duques!
    Acho que tem de entrar outro Ismael ao barulho para meter na ordem este desconchavo!

    Tanta credibilidade tem o juiz, como o marinheiro, como o Inspector...que só pensa em enfardar. Bolas!
    Vá lá que desta vez ainda me ri um bocado...

    Hasta la vista. lol

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  3. Gargalhei com algumas cenas, mas já estou como "Janita"..só pensam em enfardar?

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  4. Até um senhor doutor juiz está agora metido ao barulho?

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  5. Uma bela viagem com apeadeiros

    mas um rumo certo
    Como sempre um bom texto

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