Olá, eu sou o doutor Castro Ribeiro e quero pedir-vos,
solenemente, um favor. Um daqueles favores que se fazem aos amigos e eu sei,
que entre vós, leitoras e leitores dos livros do senhor Constantino, posso
contar alguns amigos. Amigos que acreditam na justiça e nos seus agentes, tal
como eu o fui e ainda sou. Um homem que apesar do percalço que houve com a
minha Rachel nunca abandonou Sebastião, nem nunca desprotegeu Francisca. Se o
senhor Ishmail Baruch não percebe isto, é porque ou é burro, ou é um avarento
judeu que apenas se preocupa com o negócio dos charutos cubanos, Ou ainda,
talvez um pouco mais deprimente, talvez seja um agente secreto israelita à
procura de um número de uma conta na Suíça, que desde há muito se desconfia
estar inscrito numa medalha de ouro presa a um fino fio. A verdade é que eu,
ainda enquanto advogado, fui solicitado para um caso parecido, que envolvia
judeus de origem russa e uma velhinha que vendia arenque fumado numa aldeia
caucasiana, mas que, acabei por ter de desistir do caso por mor de ter começado
a exercer a minha profissão de juiz. Pois só vos quero dizer que tenho cá um feeling de que um caso não tem nada a
ver com o outro e que o escritor, que gosta de enigmas, introduziu-me, numa
certa fase da minha vida, na busca de um caso similar e que, graças a Deus,
apesar de eu nunca ter tido conhecimento do final, nunca se constou que tivesse
culminado numa morte e, muito menos, por esfaqueamento. E agora peço-vos
desculpa. Alonguei-me tanto que nem vos cheguei a pedir o favorzinho. Pois é o
seguinte, meus amigos. Não digam nada ao inspetor Ismael Sacadura Flores, que a
estas alturas da narrativa, pressuponho, esteja na tasca do amigo do senhor
Constantino, o nosso bem conhecido Ismael Gusmán e que é galego e que por isso
usa boina e fala com xizes, a fazer uma preleção dedutiva e lógica para chegar
à conclusão de quem é que vai para a prisão, sendo que eu também fui intimado a
comparecer, por via da minha ex, a Francisca, boa gente sim senhora, que vive
atualmente na Quinta do Conde que também é uma boa terra, sim senhora. Não
digam nada, pedia-vos eu, não lhe digam que eu me vou antecipar, pois vou,
desde já e para sempre, declarar pela minha honra, de que não matei a jovem
bailarina. E perguntam-me vocês, principalmente aqueles que são menos meus amigos,
que nunca me perdoaram eu ter feito um filho à peixeira judia, desconfiando
mesmo que eu tivesse alguma coisa a ver com a sua morte, e me ter apaixonado logo
a seguir pela Francisca, nunca me ter assumido como pai, ser putanheiro, beber
uns copos, enfim, um safado de primeira, se eu tenho provas do que afirmei. Também
foi bem perguntado, sim senhores mas até para vocês, amigos da onça, eu tenho
provas. Sei também que o senhor Constantino insinuou que poderia ter sido eu,
pois denunciou-me naquela noite em que eu saí aos gritos de «eu mato aquela
puta! Eu mato aquela puta!», do bar Barba Roxa, o bar do célebre Ismael Júlio
que tem espanholas por conta e vende whisky de contrabando. Mas olhem que para
vosso conhecimento é muito melhor o VAT 69 que ele vende, vindo por portas e
travessas parar ao seu alçapão, do que muita mixórdia de Sacavém que alguns já
beberam por aí. E quais são as provas? Bom, naquelas noites que antecederam a
morte da pobre catraia, que eu nem conhecia muito bem, embora já tivesse ouvido
falar dela várias vezes, até porque o Sebastião andava a bater-lhe os olhos e a
apalpar-lhe as coxas, eu parei muito por aqui por Lisboa. Estava a gozar os
primeiros dias da minha reforma, a minha vida é Vila Nova de Gaia, mas a carne
é fraca e um dia em que fui dar assistência jurídica a Francisca, por causa de
umas desavenças com uma vizinha que não a deixava pintar uma empena da moradia
que confinava com o quintal da outra, dei de caras com a filha do sapateiro da
Quinta do Conde, a vossa já bem conhecida Isaurinha. Ora eu, um homem livre,
não tendo que dar satisfações a ninguém, hospedei-me numa pensão lisboeta,
famosa pelo cozido à portuguesa que fazia à quinta feira, pelas favas com
entrecosto que confecionava às terças feiras, pela caldeirada à fragateiro que
servia às quartas feiras, pelo pargo no forno com batatinha nova, pelo cabrito à
padeiro e outras iguarias, infelizmente ao alcance de poucas bolsas, mas eu,
verdade seja dita, não tenho desses quiproquós.
E também sei, tenho a certeza disso, que não foi por causa do meu dinheiro, nem
da minha posição social, que a Isaurinha Bate-Sola se me vinha juntar nos
lavados e engomados lençóis da minha cama, no quarto 202 da referida pensão. E
se eu disse que matava aquela puta, só vos quero dizer que isso foi apenas um
desabafo de indignação por ter sabido que o meu próprio filho andava na
pouca-vergonha com aquela rapariga, a esbelta e sensual Isaurinha Bate-Sola.
Mas querem testemunhas, querem, não é verdade? Pois então vamos lá a ver se vos
consigo ditar uma a uma. O senhor Ismael Gusmán serviu-me o jantar perto das
oito da noite. Comi uma posta de bacalhau com batatas e grelos, por acaso muito
fresquinhos se não me falha a memória. «Então daqui é para a caminha, não é senhor
doutor?», perguntou-me depois de ter bebido o meu cafezinho e um bagaço, por
acaso coisa de estalo, que recomendo para quando lá passarem, e ter pago onze
escudos e trinta centavos pelo repasto. «Ainda não, senhor Ismael, ando cá com uns
pressentimentos, que isto não é coisa boa. Pode crer senhor Ismael que esta
noite vai haver coisa, lá isso vai. Por isso vou até ao Barba Roxa». Ora o
senhor Ismael que me deixou de ver pelas nove e meia da noite não pode ser
minha testemunha, mas pode conferir o que acabei de dizer. No Barba Roxa, onde
entrei por volta da uma da manhã, depois de ter ido jogar um pouco de bilhar na
Rua do Jardim do Regedor, encontrei o Sebastião, com cara de caso. Depois de
alguns VATs, contou-me a história da crioula e eu aconselhei-o a procurar um
lugar seguro para se esconder. Se o indígena do pai da mulata o apanhasse ainda
teríamos marinheiro às fatias. Foi então que ele me falou do caso dele com a
Isaurinha Bate-Sola, naquela ingenuidade de que poderia ir até à Quinta do
Conde mas que em vez de ir para casa da tia, iria dormir para casa de
Isaurinha. Assim, como assim, não seria a primeira vez e depois começou a
gabar-se e tal e coisa. Eu, no princípio, não disse nada porque o sangue
corre-lhe nas veias, tem a quem sair. Mas quase chegada a madrugada, desta vez
com o sangue bem carregado de álcool, saio do Barba Roxa e já com os olhos turvados
pois não voltei a ver o Sebastião, que segundo consta estaria já escondido num
alçapão com duas espanholas, o malandraço, a correr e aos gritos de que a matava.
«Eu mato aquela puta! Eu mato aquela puta!». Ai se apanhasse a jeito aquela
filha de um sapateiro, ai pressinto que perderia a cabeça. Mas não, quem
encontrei foi a comissária Xana, que já conhecem também e que, portanto, me
dispenso de fazer apresentações. Uma rapariguinha, por caso de boas famílias,
coitadita, que vinha também sair do bar até me perguntou «Ó doutor, vai preso?»
e eu, com a paciência esgotada, até fui mal-educado e peço-lhe daqui desculpa
por isso, respondi «não querida, vou dormir com a chefe». E foi assim que
passei essa noite nos calabouços da esquadra da Mouraria, eu um juiz jubilado
que só quase à hora de almoço do dia seguinte, quando a buba me passou é que me
pude identificar e sair em liberdade. E se o Ismael Júlio não pode ser
testemunha porque saí do seu bar antes de ter sido esfaqueada a italiana, já do
auto da ocorrência e da minha noite entre grades, ninguém pode duvidar.
Mas olhem que isso de não contarem nada ao inspetor de que
eu me antecipei é a sério. O homem, quando se sente ultrapassado, desata a
comer fofinhos de pescada panados em farinha de milho, folhadinhos de salsicha
tipo Francoforte, a beber vinho tinto do canjirão, a comer bolinhos de côco, pastéis
de feijão, dobradinha à moda do Porto, sandes de torresmos, queijo fresco da
Malveira, azeitonas de Elvas sem caroço, a beber ginjinha de Óbidos com e sem
elas, a comer chanfana de cabra e a beber café sem açúcar. Depois não querem
que o homem fique com gases.
Pela pedalada do escritor e pela junção à lista gastronómica de acepipes não antes oferecidos... acho que agora é que isto começa... Ó pá tens a certeza de que aquele posfácio não era um prefácio?
ResponderEliminarEpá, isto agora só me saiem duques!
ResponderEliminarAcho que tem de entrar outro Ismael ao barulho para meter na ordem este desconchavo!
Tanta credibilidade tem o juiz, como o marinheiro, como o Inspector...que só pensa em enfardar. Bolas!
Vá lá que desta vez ainda me ri um bocado...
Hasta la vista. lol
Gargalhei com algumas cenas, mas já estou como "Janita"..só pensam em enfardar?
ResponderEliminarAté um senhor doutor juiz está agora metido ao barulho?
ResponderEliminarUma bela viagem com apeadeiros
ResponderEliminarmas um rumo certo
Como sempre um bom texto