sexta-feira, 8 de junho de 2012

148. Ismael (61) - Um Ismael para cada gosto



Se eu estivesse a escrever um livro policial não poderia fazer tantas interrupções pelo meio do romance. Corria o risco de não se perceber nada e de as pessoas acharem, com alguma razão, que todas as regras da literatura romanesca estavam a ser cilindradas. Os críticos literários cair-me-iam em cima e, se calhar, diriam «bela merda» com ponto de exclamação à frente. Os editores, perguntar-me-iam «afinal que brincadeira vem a ser esta», mas com ponto de interrogação. Os leitores andariam para trás e para a frente com as páginas e acabariam pensando ou desabafando «mal empregadinho dinheiro» e, até eu ,escritor do texto, quando o faço na terceira pessoa e narrador do dito na primeira ou então vice-versa, me sentiria envergonhado por não saber estruturar uma coisa com principio meio e fim e, no fim, claro está, acabar com isto de uma vez por todas. Mas, felizmente para todos, críticos, editores, escritor, narrador e leitores por esta ou por qualquer outra ordem, nomeadamente a inversa, isto não é um livro policial, isto não é um romance, isto não é uma novela, isto não é um ensaio, isto não é um diário, isto não é uma biografia. Isto é um entretém e como entretém que é, não só já me fizeram chegar aos ouvidos que está muito bem assim, mas também me incentivaram a colocar no contexto palavras cruzadas e puzzles do sodoku. Eu é que não vou nessa porque para confusão já basta assim. Mas se isto fosse mesmo um romance policial, o inspetor Ismael Sacadura Flores estaria neste momento da sua preleção a referir-se ao velho Ishmail Baruch, quiçá (eu já escrevi quiçá mais de uma dezena de vezes desde que comecei a escrever esta sequência, quiçá mais de duas dezenas), nos termos em que os parágrafos seguintes o fazem.

«E», continuava o Inspetor Ismael Sacadura Flores, «não pense que me esqueci de si, meu caro senhor Baruch», virando-se para o senhor Ishmail Baruch a contas com uma gripe, já no limite da broncopneumonia, débil de pernas, pois só uma cadeira de rodas o fez movimentar até à taberna onde decorria a preleção de Sacadura, «não me esqueci, não senhor, e a prova disso é que agora, neste momento, neste preciso momento», referiu com enfâse Ismael Sacadura Flores, «me virei para si». Pigarreou, bebeu um gole de tinto, assoou-se com algum estrondo, desconfiando os presentes que a gripe do senhor Ishmail Baruch se poderia estar a propagar. «Despache-se que eu tenho mais que fazer», disse em surdina a Isaurinha Bate-Sola, mas que foi ouvido pela comissária Xana que a cotocou duas vezes e também por Sebastião que pôs a mão em frente da boca e sussurrou «cala-te, minha grande vaca», o que fez com que Ismael Gusmán passasse por ele e lhe deixasse cair um café quente em cima dos músculos tatuados do braço direito. Afinal de contas, mesmo com um par de chifres, Ismael nunca deixou de nutrir alguns sentimentos por Isaurinha. «O senhor Ishmail Baruch, tanto quanto se percebe pelo manuscrito de Francisca», esta sorriu, «e pela investigação pericial feita pelos meus chefes de brigada», olhou para Ismael de Almeida e para Ismaelix, tendo estes baixado ligeiramente a cabeça em sinal de respeito e veneração, «não está em Portugal apenas por causa de sua sobrinha Rachel, nem do seu sobrinho-neto Sebastião, aqui presente e, até prova em contrário, eventual suspeito da morte de uma jovem italiana, nesta mesma rua, porém no número 43». O escritor sente-se na obrigação de alertar os seus leitores que o uso amiúde de quiçá e de porém nada tem de fetiche mas, porque não conhece muitas palavras caras, assim como os bons escritores e os poetas, palavras do tipo haurir, diatónico ou invetivo, vai usando estas que são mais de uso comum. Continuando com as palavras de Ismael Sacadura Flores, «o senhor Ishmail Baruch, é um espião ao serviço da Mossad, bem como o seu dito sobrinho, que sabemos agora não o ser, Ismael ben-Avhraam!». Disse-o com tanta eloquência que todos desviaram os olhos de Ishmail Baruch, concentrando-os com tanta energia em Ismael ben-Avrhaam que, se não tivéssemos visto um isqueiro de torcida enrolado na sua mão direita, também conhecido por isca, afirmaríamos, por ventura erradamente, que esses olhares fulminantes lhe teriam acendido um charuto cubano. E continuou o inspetor, «é certo que o senhor tem de propriedade a havanesa da Rua do Alecrim, paredes meias com o Cais do Sodré, pelo que uns lhe chamam Havanesa do Alecrim e outros Havanesa do Cais (*), o que para o caso nem sequer importa. Mas isso é negócio de fachada para esconder as suas atividades ilícitas que apenas a PIDE tolera mas que nós, na Judiciária, custe o que custar, não temos por hábito dar cobertura. Principalmente quando está em causa um crime de sangue, e de muito sangue, que o diga Ismael Pião, o nosso ex-fotógrafo, que ainda hoje anda às voltas com o vómito». Ishmail Baruch permaneceu impávido e sereno ou não fosse a sua formação militar, de alta patente no exército do país do Rei David, o ter treinado para todas as circunstâncias.

Neste momento, o escritor interroga-se se há de dar continuidade ao discurso do inspetor Ismael Sacadura Flores ou se há de ele próprio fazer um resumo, chamando à liça o narrador. Mas como tem dúvidas que matéria tão importante para a resolução desta trapalhada possa ser imputada a um mero contador de histórias, acaba por dar resposta às suas próprias interrogações e decide ser ele a escrever o que o inspetor da Judiciária disse, mesmo correndo o risco de maçar os seus leitores. Mas, assim como assim, já que ainda devemos estar a umas boas trinta e oito páginas do final, mais vale ser agora do que mais tarde.

«Tem portanto, como é bom de ver, mesmo que aqui nada tenha sido dito que conduza a isso» e querendo fazer algum suspense, não só nas palavras mas também nos atos, virou-se o inspetor para o galego Ismael Gusmán e pediu-lhe que se ele não se importasse, lhe trouxesse dois naquitos de torresmos, pois estava a sentir alguma fraqueza. Ismael Gusmán limpou as mãos ao avental azul-escuro e cortou de uma peça grande que tinha em cima do balcão várias fatias de torresmos com que agraciou o inspetor, continuando este, «fortes probabilidades de ter esfaqueado Isabella. Mas porquê, perguntarão alguns de vós, atónitos com esta minha afirmação», considerou o inspetor sem ter tido o cuidado de verificar se todos ou só alguns teriam ficado efetivamente atónitos e, assim mesmo, foi continuando, «pois eu respondo-vos. Um espião, vem à procura de uma medalha. Uma medalha tem um número. O número é de uma conta. A conta está na Suíça. O seu valor quase só Ishmail Baruch e Ismael ben-Avrhaam o sabem. O seu valor também o poderá saber Ekatrina Smirnova, esta linda jovem por quem o nosso chefe de brigada Ismaelix se apaixonou e cujo desfecho desta paixão, ninguém sabe ao certo no que vai dar. O valor dessa conta na Suíça, interrogo-me se o saberá o senhor Vicentini ou não, mas que hoje já saberá por certo da morte de sua filha e que nunca se dignou aparecer, quiçá ele também morto algures numa valeta duma rua de Lugano ou numa viela de Alfama, onde um rufia terá decidido defender a honra de sua dama. O valor dessa medalha talvez não o soubesse a pobre, a infeliz, nunca é de mais repetir, a inocente menina que mostrava as pernas como mais nenhuma corista o sabia fazer na nossa Revista à Portuguesa, apesar de usar uma imitação ao pescoço. Portanto, temos presentes as três pessoas que poderiam ter morto Isabella, mas que, por motivos que mais tarde explicarei, há mais quem o pudesse fazer». Naquele momento ouviu-se a voz do senhor Ismael da farmácia que não se sabe por que razão lhe foi franqueada a porta, dizer que «bom, a esta hora eu deveria estar a encerrar a minha farmácia lá na Quinta do Conde e a bem dizer, não sei porque é que estou aqui. Mas disseram-me que fazia falta mais um Ismael neste capítulo e portanto cá estou eu, às ordens de vossas excelências».


10 comentários:

  1. Eu achei foi falta de alguma coisa que se trinque... então nada de jaquinzinhos fritos, nada
    de azeitonas... nem um tremoço?

    ResponderEliminar
  2. Ahhhh, isto é um entretém...
    Ora bolas, Constantino, também já podias ter dito!
    Ando aqui a consumir-me, a condoer-me, desta, daquela e quiçá da outra, sem necessidade nenhuma!

    Com mais um Ismael a entrar nesta dança, não, não é o da farmácia, é o fotógrafo, o Pião, agora é que este entretenimento vai andar à roda...e não sai do sítio.
    Vou passar a entrar muda e sair calada, não vá levar a mesma dose da Isaurinha...
    Esta tasca já nem parece a mesma de outrora!
    Que saudades das gargalhadas da Fernandinha, dos bolinhos de bacalhau, das chamuças, do fado, da sardinha e das conversas em surdina.
    Ai, ai...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. janita o Ismael Pião apareceu no 132. Ismael (48) - O fotógrafo. Passe a imodéstia do escritor e alguma do narrador, acho que vale a pena ser lido, pois eu próprio, quem diria, achei piada. Quanto aos teus comentários davam um episódio :) dos bons. Quem sabe ainda venham a dar eheheheh.

      Eliminar
    2. Mau... hoje só houve um copo de tinto para o Sr. Inspector?!
      Tá mal... nós, os figurantes, também temos direito a um copinho!!

      Eliminar
  3. Eu sou daquelas que ando para cima e para baixo, de trás para a frente e divirto-me sabe?! É um belo entretém ler o que escreve.

    ResponderEliminar
  4. disseste...ou melhor, escreveste merda com toda as letras?
    ai hôme de deus isso é grave muito grave e hoje saltei linhas do teu texto que é taoaoaoaoaoaoao grannanaanannade

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Avogi, eu só publico de 2 em 2, 3 em 3 dias, dá para ires lendo aos poucos.

      Eliminar
  5. Pus o novelo em ordem e em dia e enquanto uns estão com uma mesa repleta de iguarias este é quase zero. Ai Ismael, Ismael estás a dar cabo de mim:)

    Já agora ninguém bebia um sumo de laranja, coca-cola ou pirolito????

    Olha que tu tens cá uma imaginação...que te vou contar (como dizem os nossos amigos brasileiros):

    Fiquei cansada e vou dormir

    Uma beijoca

    ResponderEliminar