segunda-feira, 4 de junho de 2012

146. Ismael (59) - Não morras ainda, Francisca



Tive um medo terrível. Francisca apareceu-me lá em casa com umas olheiras que me arrepiaram. Se Francisca não fosse um personagem vivo deste romance, desta novela, deste, enfim, qualquer coisa, eu diria que Francisca tinha-me entrado morta, porta adentro. Francisca vinha branca, a tez, o rosto, as mãos, o colo, do pouco que se via do pescoço. A blusa quase apertada até ao cimo e a saia comprida, as meias de mousse pretas, não deram para ver nenhuma outra parte do seu, ainda esbelto, embora dos quarenta quase terminados, longe assim dos doirados anos de Balzac, corpo de mulher. Vinha branca, não de branco, pois a cor das meias já o sabemos, eram pretas, onde apenas destoava a cor dos olhos. Não àquela cor que lhe conhecíamos desde menina, desde muito jovem, quando se embeiçou por Castro Ribeiro, mas aquela cor roxa de olhos doentios, mal dormidos e como, nem com o seu quê de violento, putanheiro, homem de muitas mulheres, notívago profissional, a que se veio a transformar o seu ex-marido, o aposentado juiz do Porto, o Dr. Castro Ribeiro, a tinha deixado. Não, aquilo não foi pancada, não foi queda. Francisca estava doente. E tive medo. Por ela senti pena. Uma pena que se sente quando se gosta de alguém. Não uma pena caritativa, mas um projeto de saudade. Poderia Francisca morrer e ainda viva já me estar a deixar saudade? Poderia sim. E tive medo, medo que Francisca não pudesse terminar o seu “Conto das ilhas de lá”. Medo por ela, pois se preciso for o publicarei a título póstumo. E se a sua obra ficar inacabada, poderei sempre, a meu jeito, se assim o entender e se para isso for solicitado pelo amor à pena, terminar a sua obra. Mas tenho pena, muita pena, por Francisca. Ela que foi a chave perfeita para a descoberta do crime da Rua dos Correeiros, ela que sem o seu manuscrito nunca teríamos conhecido o jovem Espinheira, ela que sem a sua envolvência teria banalizado a uma qualquer figura o figurão do Castro Ribeiro, ela que sem manuscrito também reduziria a uma inutilidade para a história, o, nos dias de hoje, já aposentado inspetor, aquele que na tasca do meu amigo Ismael pôs tudo a nu e mandou para os calabouços da esquadra da Mouraria, acompanhados pela bela Xana, a comissária, quem devia mandar, ela sem a qual a Quinta do Conde não teria tido nem metade do protagonismo que tem tido nesta história, ela entra-me porta adentro escaveirada, branca, sem cor, sem batom, só branca e roxa, sem cor, com o roxo dos olhos mais escaveirado do que a caveira em que se tinha transformado o seu rosto sem cor.

Cheguei-lhe uma cadeira, ofereci-lhe um copo de água, perguntamos um ao outro como é que cada um ia, como se isso fosse preciso, nela tudo se via, tudo era transparente, em mim tudo era cinzento, opaco. Francisca transparente, Francisca de olhos roxos, de um roxo transparente. E eu, cabisbaixo, retrospetivo, emimesmado, triste, fechado, eu que apenas tinha a frincha da janela aberta por onde uma ténue luz agora rasgava o cortinado, mas que iluminava na perfeição o rosto branco e roxo refletido de Francisca no cinzento dos meus pensamentos, tentei despreocupá-la mais do que me despreocupei a mim. «Vou-lhe publicar o capítulo oito». E como se fosse membro de uma rara tribo, sorriu um sorriso roxo. E pude verificar-lhe que os lábios também eram roxos. Sem cor.

“O nubente assistiu macambúzio ao ritual que se seguiu. De facto não era espetável que, após uma tão excitante cerimónia de iniciação, a passagem seguinte assumisse um tão maçadiço teor. Assim para vos poupar a uma macarrónea crónica, apenas refiro que a jovem foi conduzida numa maca, acompanhada por duas anciãs, para uma tenda isolada, colocada nas cercanias da aldeia. Mal acabou de entrar, o futuro noivo estendeu-me a mão, no que foi retribuído. E sem a largar conduziu-me ao meu lugar, previamente reservado na mesa principal, precisamente do lado direito do chefe. Ele sentar-se-ia à esquerda. Os pratos exóticos de jamantes e jeticas, de miolos de macaco servidos na própria cabeça, de língua de jacaré numa espécie de estufado, que ia chegando em grandes travessa de barro cru, de espetos de láparos apenas separados por folhas de urtiga fresca, de jambé, de rabo de boi com natas de leite de morcega, misturavam-se com alguns dos mais conhecidos pratos ocidentais, como o javali assado em forno de lenha, estaladiço, rodeado de laranja e maçarocas de mabalemade cozido, macedónia de frutas, lulas (embora de um tamanho inusitado) recheadas com linguiça, nêsperas em calda de açúcar, muito marisco de casca e pardais nidífugos fritos em óleo de nicori. E foi com este repasto, de que não hesitei em provar todas as iguarias, que me saciei de uma fome de três dias. Adormeci bebendo um chimarrão, não de erva-mate como seria de esperar, mas de uma mistura de gengibre e macela”. 

E se lhe prometi, também o cumpri porque sou um escritor de palavra.





9 comentários:

  1. Credo, Constantino!!
    O que terá acontecido à mulher??
    Ela já era assim um pãozinho sem sal, mas agora ficou desassemelhada de todo!!
    É o que eu digo...acabaste-lhe com o resto!!

    Até o capítulo que lhe prometeste publicar está como ela...feito num OITO.

    Carago! Com amigos assim, ninguém precisa de inimigos!!

    Eheheheheheheheh

    Beijinhos. :))

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  2. A Francisca deve ter comido algo estragado...
    Amanhã já estará fina de novo!

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  3. Córror! Já não bastava o clima de policial fantástico, recheado de surpresas, agora ainda vem a Francisca armada em zombie? Logo ela que é fundamental ao desenrolar da história e tem tanto mérito na solução do caso? Este mundo está perdido, é o que é! :)))

    Beijocas!

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  4. seria indigestão ou gravidez? estará a Francisca prenhe?
    kis .=)

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  5. Ai o espeto de láparo! Como gostava de o ter provado. Bem esturricadinho, de preferência.

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  6. (##%7&'''=|#)

    Tradução: vou voltar a ler

    :))

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  7. Cá para mim isso é fraqueza. Se calhar o que ela precisa é de uns petiscos... daqueles que costuma haver na tasca do Ismael, hein?

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  8. Que lhe teria acontecido? Ficaremos a saber? : )

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  9. Olá, Constantino!

    Coitada da senhora! Esperemos que não seja nada de grave, e que ainda aqui a encontremos no próximo capítulo...

    Um abraço

    Vitor

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