Tive um medo terrível. Francisca apareceu-me lá em casa com
umas olheiras que me arrepiaram. Se Francisca não fosse um personagem vivo
deste romance, desta novela, deste, enfim, qualquer coisa, eu diria que
Francisca tinha-me entrado morta, porta adentro. Francisca vinha branca, a tez,
o rosto, as mãos, o colo, do pouco que se via do pescoço. A blusa quase
apertada até ao cimo e a saia comprida, as meias de mousse pretas, não deram
para ver nenhuma outra parte do seu, ainda esbelto, embora dos quarenta quase
terminados, longe assim dos doirados anos de Balzac, corpo de mulher. Vinha
branca, não de branco, pois a cor das meias já o sabemos, eram pretas, onde
apenas destoava a cor dos olhos. Não àquela cor que lhe conhecíamos desde
menina, desde muito jovem, quando se embeiçou por Castro Ribeiro, mas aquela
cor roxa de olhos doentios, mal dormidos e como, nem com o seu quê de violento,
putanheiro, homem de muitas mulheres, notívago profissional, a que se veio a
transformar o seu ex-marido, o aposentado juiz do Porto, o Dr. Castro Ribeiro,
a tinha deixado. Não, aquilo não foi pancada, não foi queda. Francisca estava
doente. E tive medo. Por ela senti pena. Uma pena que se sente quando se gosta
de alguém. Não uma pena caritativa, mas um projeto de saudade. Poderia
Francisca morrer e ainda viva já me estar a deixar saudade? Poderia sim. E tive
medo, medo que Francisca não pudesse terminar o seu “Conto das ilhas de lá”.
Medo por ela, pois se preciso for o publicarei a título póstumo. E se a sua
obra ficar inacabada, poderei sempre, a meu jeito, se assim o entender e se
para isso for solicitado pelo amor à pena, terminar a sua obra. Mas tenho pena,
muita pena, por Francisca. Ela que foi a chave perfeita para a descoberta do
crime da Rua dos Correeiros, ela que sem o seu manuscrito nunca teríamos
conhecido o jovem Espinheira, ela que sem a sua envolvência teria banalizado a
uma qualquer figura o figurão do Castro Ribeiro, ela que sem manuscrito também
reduziria a uma inutilidade para a história, o, nos dias de hoje, já aposentado
inspetor, aquele que na tasca do meu amigo Ismael pôs tudo a nu e mandou para
os calabouços da esquadra da Mouraria, acompanhados pela bela Xana, a
comissária, quem devia mandar, ela sem a qual a Quinta do Conde não teria tido
nem metade do protagonismo que tem tido nesta história, ela entra-me porta
adentro escaveirada, branca, sem cor, sem batom, só branca e roxa, sem cor, com
o roxo dos olhos mais escaveirado do que a caveira em que se tinha transformado
o seu rosto sem cor.
Cheguei-lhe uma cadeira, ofereci-lhe um copo de água,
perguntamos um ao outro como é que cada um ia, como se isso fosse preciso, nela
tudo se via, tudo era transparente, em mim tudo era cinzento, opaco. Francisca
transparente, Francisca de olhos roxos, de um roxo transparente. E eu, cabisbaixo,
retrospetivo, emimesmado, triste, fechado, eu que apenas tinha a frincha da
janela aberta por onde uma ténue luz agora rasgava o cortinado, mas que
iluminava na perfeição o rosto branco e roxo refletido de Francisca no cinzento
dos meus pensamentos, tentei despreocupá-la mais do que me despreocupei a mim.
«Vou-lhe publicar o capítulo oito». E como se fosse membro de uma rara tribo,
sorriu um sorriso roxo. E pude verificar-lhe que os lábios também eram roxos.
Sem cor.
“O nubente assistiu macambúzio ao ritual que se
seguiu. De facto não era espetável que, após uma tão excitante cerimónia de
iniciação, a passagem seguinte assumisse um tão maçadiço teor. Assim para vos
poupar a uma macarrónea crónica, apenas refiro que a jovem foi conduzida numa
maca, acompanhada por duas anciãs, para uma tenda isolada, colocada nas
cercanias da aldeia. Mal acabou de entrar, o futuro noivo estendeu-me a mão, no
que foi retribuído. E sem a largar conduziu-me ao meu lugar, previamente reservado
na mesa principal, precisamente do lado direito do chefe. Ele sentar-se-ia à
esquerda. Os pratos exóticos de jamantes e jeticas, de miolos de macaco
servidos na própria cabeça, de língua de jacaré numa espécie de estufado, que
ia chegando em grandes travessa de barro cru, de espetos de láparos apenas
separados por folhas de urtiga fresca, de jambé, de rabo de boi com natas de
leite de morcega, misturavam-se com alguns dos mais conhecidos pratos
ocidentais, como o javali assado em forno de lenha, estaladiço, rodeado de
laranja e maçarocas de mabalemade cozido, macedónia de frutas, lulas (embora de
um tamanho inusitado) recheadas com linguiça, nêsperas em calda de açúcar,
muito marisco de casca e pardais nidífugos fritos em óleo de nicori. E foi com
este repasto, de que não hesitei em provar todas as iguarias, que me saciei de
uma fome de três dias. Adormeci bebendo um chimarrão, não de erva-mate como
seria de esperar, mas de uma mistura de gengibre e macela”.
E se lhe prometi, também o cumpri porque sou um escritor de
palavra.
Credo, Constantino!!
ResponderEliminarO que terá acontecido à mulher??
Ela já era assim um pãozinho sem sal, mas agora ficou desassemelhada de todo!!
É o que eu digo...acabaste-lhe com o resto!!
Até o capítulo que lhe prometeste publicar está como ela...feito num OITO.
Carago! Com amigos assim, ninguém precisa de inimigos!!
Eheheheheheheheh
Beijinhos. :))
A Francisca deve ter comido algo estragado...
ResponderEliminarAmanhã já estará fina de novo!
Córror! Já não bastava o clima de policial fantástico, recheado de surpresas, agora ainda vem a Francisca armada em zombie? Logo ela que é fundamental ao desenrolar da história e tem tanto mérito na solução do caso? Este mundo está perdido, é o que é! :)))
ResponderEliminarBeijocas!
seria indigestão ou gravidez? estará a Francisca prenhe?
ResponderEliminarkis .=)
Ai o espeto de láparo! Como gostava de o ter provado. Bem esturricadinho, de preferência.
ResponderEliminar(##%7&'''=|#)
ResponderEliminarTradução: vou voltar a ler
:))
Cá para mim isso é fraqueza. Se calhar o que ela precisa é de uns petiscos... daqueles que costuma haver na tasca do Ismael, hein?
ResponderEliminarQue lhe teria acontecido? Ficaremos a saber? : )
ResponderEliminarOlá, Constantino!
ResponderEliminarCoitada da senhora! Esperemos que não seja nada de grave, e que ainda aqui a encontremos no próximo capítulo...
Um abraço
Vitor