quarta-feira, 13 de junho de 2012

150. Ismael (63). Depoimento ou a história da crioula



Olá, eu sou o Sebastião. Bem sei que o inspetor Ismael Sacadura Flores não vai gostar nada que eu me antecipe à sua oratória na tasca do famoso galego, amigo do escritor. Mas já não aguento mais. Tenho estado, quase desde o dia em que fui referido pelo autor, creio que na mercearia do senhor Ismael Rodrigues, na corda bamba desta novela. Ora se dá a entender que eu não tive nada a ver com o crime, ora se insinua que talvez eu não estivesse embarcado naquele fatídico dia, e que tudo era uma proteção maternal da minha tia Francisca, que sempre de mim falava com muito carinho no seu manuscrito. Eu sei que contar aqui a história da minha vida seria deveras maçador para quem está a ler. Além disso, eu não tenho a verve do narrador, nem a capacidade de efabulação do escritor, que me permita deixar-vos uma biografia. Mas tenho que vos dizer, para que não restem dúvidas, que eu não matei a pobre da Isabella. Bem sei que muitos de vocês, mas principalmente muitas de vocês, que ao longo deste medley que o escritor decidiu fazer no blog do senhor Constantino, misturando as histórias que têm como pano de fundo a tasca do honesto galego, com o crime da rua dos Correeiros e com o Conto que a minha pobre e frágil tia anda a escrever sobre umas ilhas, que por acaso nunca visitei, dizia eu que, muitas de vós já sois grandes fãs deste jovem marinheiro e que suspireis de alívio, ao lerdes esta minha afirmação. Mas a verdade, verdadinha, relato-vos em duas ou três linhas, se para isso conseguir beber a arte de narrar do famoso contador de histórias que tem estado omnipresente desde o início do fascículo. Ora, se a minha tia deixou claro no seu manuscrito que eu tinha embarcado para o Coraçau pouco tempo antes do horripilante crime que mandou Isabella para junto do Criador, então é porque é verdade. A minha tia não é mentirosa e até estou todo arrepiadinho só de o estar a afirmar e duas lágrimas, aliás três, já me escorrem rosto abaixo. O que aconteceu, porém, foi que tive uma daquelas crises de enjoo em alto-mar. Bem que o enfermeiro me encheu de comprimidos, o meu chefe até bolachinhas e chá mandou levar ao meu camarote, sabe Deus mais quantos mimos, mas nada. Levantava a carola do travesseiro e parecia que o beliche se virava de pernas para o ar. Até que ao fim de algumas horas fui encontrado verde, desbundado num mar de vomitado. Não tiveram outro remédio senão desviar a rota e deixarem-me na ilha de S. Vicente onde me apaixonei, como não podia deixar de ser, por uma crioula com 16 anos. Passada uma semana já se faziam os preparativos para o casamento e não fosse ter-me escondido num porão de um navio da Companhia Colonial de Navegação que tinha feito escala para deportar uns revolucionários a mando do Salazar, nunca eu teria feito parte da novela do escritor Constantino. É assim que na véspera do sanguinário assassinato da minha querida bailarina, sou visto num bar do Cais do Sodré, o Barba Roxa, onde me venho a encontrar com o meu antigo protetor o Dr. Castro Ribeiro. Falamos de tudo e de mais um par de botas enquanto virámos, a bem dizer, uma garrafa de VAT 69. Quando ele soube que a Isaurinha Bate-Sola partilhava a cama comigo, para me poder esconder da minha tia, a quem eu não queria atormentar com a minha repentina doença, saiu do bar aos gritos de «Eu mato aquela puta! Eu mato aquela puta!», sendo que desde essa data nunca mais o vi, até alguns dias depois de finada a pobre corista italiana. Também estranhei a boa disposição de Isaurinha em todos aqueles dias, quer antes, quer após o fatídico dia, mas sempre atribuí isso ao meu desempenho, passe a imodéstia, só que vou deixar essa questão para outra ocasião. Por uma mera coincidência, realmente divina, a noite em que foi vilmente assassinada Isabella, posso prová-lo, tenho várias testemunhas disso, passei-a escondido num alçapão do Barba Roxa, por conselho do Dr. Castro, que mesmo já com os copitos teve um bom discernimento, onde o dono, o meu amigo Ismael Júlio, que alguém confundia propositadamente com Ismael chulo, escondia as caixas de whisky de contrabando e duas espanholas que ele trazia por conta, mas que estavam por cá clandestinas. E indagam-se depois os leitores, que não percebem porque é que eu passei essa noite escondido no alçapão do chulo, quer dizer do Júlio e eu não tenho outro remédio senão explicar a minha cobardia, pois o pai da jovem cabo-verdiana andava há três dias a percorrer tudo o que era cais, bar ou casas de má-porte, já para não falar nas vigílias que fazia à porta da casa da minha tia na Quinta do Conde, com uma catana na mão e a toda a gente dizia, em viva voz e num misto de crioulo e de português «Eu faço aquele malandro em fatias!». Portanto, peço-vos apenas uma coisa. Quando na sua preleção determinante, o inspetor Ismael Sacadura Flores declarar que o marinheiro Sebastião nada tem a ver com as facadas em Isabella, nem com as sete nem com nenhuma das sete que a vitimaram, façam de conta que ainda não sabem. É que, quando o inspetor se sente ultrapassado, desata a comer rissóis de berbigão, a beber copos de branco saídos diretamente do barril, a comer croquetes de sangacho de atum, salada de tomate com requeijão, a beber bagaços caseiros, a comer jaquinzinhos fritos de um dia para o outro, sardinha de caldeirada à moda de Setúbal, pasteis de Tentugal e queijadas de Sintra, ervilhas com ovos escalfados e chouriço encarnado, feijão frade temperado com cebola, pimenta, azeite e vinagre, a beber café sem açúcar, a comer sopa de feijão branco com couve lombarda e chispe de porco, espetadas de asinhas de frango com pimentos e toucinho e morango saloio com açúcar mascavado. E depois não querem que o homem fique com gases.


10 comentários:

  1. Oh Sebastião... pode ficar descansado. Longe de mim provocar algum distúrbio ao inspetor.

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  2. Então está explicado, foi o quase sogro crioulo que matou a Isabella!

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  3. Soube-me bem ouvir esta versão da história(ainda desconhecida) a bebericar um (quase já esquecido) Vat69!

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  4. O Sebastião que fique descansado, que já não suspeito dele! :)))

    Olha, passei o posfácio! Não faz mal, também nunca ninguém o lê... (por acaso este até li, mas não digas nada a ninguém!) :D

    Beijocas!

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  5. Já não me admiro nada que o Inspector tenha tanta dificuldade em deitar cá para fora quem é o culpado da morte da bailarina. É que, para além de comer como um alarve - já que anda sempre ultrapassado - e isso lhe deixar o espírito embaciado...enquanto expele umas coisas…
    ora aí está, Sebastião! Afinal, vossemecê, até nem é tão tonto quanto parece.
    Ah, peço desculpa pelo mau jeito mas, abençoados tabefes que a sua tia lhe pregou!! Há qualquer coisa em si que não me cheira bem...

    au revoir!

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  6. Deixo ficar o convite para conhecer amantedasleituras, grupo alojado no yahoo. Pode entrar nele e participar.

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  7. Então, Constantino?
    O que esperas para avançar com a saga?
    Que os clientes se cansem e mudem de tasca?
    Quando acabar o futebol, faz favor de botar outro episódio no ar!!
    Não me digas que a crise já chegou à Quinta do Conde...

    Beijinhos.

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  8. A coisa está a mudar de figura...e na última parte...pois claro "inspector ultrapassado a comer tudo isso é caso para dizer que encheria várias bilhas de gás.

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  9. Vitor

    quem vier aqui pela primeira vez fica com a ideia de isto é uma devassa... onde proliferam as putas, o crime, tudo misturado com petiscos e copos de 3. Poças! os protagonistas não têm descanso nem os coiratos a salvo...

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