quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

184. D. Micá e a fruta do tempo (ou a história de D. Camelinha)



“Antonieta parecia calma. Uma calma fantasmagórica, na palidez do seu rosto. Fez que se sentou ficando a planar sobre o sofá, perna traçada, deixando cair o branco véu que, na posição em que ficou, se deixava embalar pela corrente de ar, aparentemente injustificada, já que a criadagem se encarregara de cerrar portas e janelas, deixando ambos trancafiados no vasto salão dos espelhos. Apenas Penafiel, o fiel cão de D. Bonifácio, um pastor belga de leonina juba e Gatófio, um gato magrelas que Antonieta tinha adotado antes de morrer, tinham sido autorizados a ficar. No momento em que a corrente de ar se acentuou, pondo a nu, as alvas coxas de Antonieta, não conseguindo D. Bonifácio, ou não tendo tempo para, desviar o olhar, o ribombar de um forte trovão fez estremecer todo o edifício. Instantaneamente, Penafiel começou a ladrar e Gatófio deu um fabuloso salto tentando anichar-se no regaço de Antonieta. Em vão esperneou pois que trespassou roupas e colo, tendo-se estatelado no chão, por falta de sustentáculo. Em boa verdade, dada a sua natureza felina, Gatófio caiu sobre as quatro patas mas, ato contínuo, desatou a correr de cauda eriçada pela estupefação, percorrendo os quatros cantos da sala à procura de um onde se escondesse. Não contente com tanta algazarra e ainda assustado com o estrondoso trovão, Penafiel dirigiu os seus latidos a Gatófio ao que este lhe fez “fuuuuummm”. Contado que foi os desatinos de gato e cão, deve dizer-se que Antonieta assistiu a toda esta balbúrdia como se nada se tivesse passado e que D. Bonifácio mostrou alguns sinais de nervosismo, pois por duas vezes deixou apagar o fósforo quando tentava acender um charuto. Ou então não. Ou então foi a brisa que lhe apagou os fósforos. Mas isso nunca se virá a saber porque que também não o sei”, concluiu D. Micá, visivelmente empolgada com o desenrolar da sua história.

Parou por aqui a sua narração, levantou os olhos com um olhar de preocupação e olhou em redor. Se bem que lhe era notório que hoje também não estaria nos seus melhores dias, tendo por mais do que uma vez puxado pelo lenço, por sinal da mais fina cambraia, magistralmente bordado por dona Camelinha, uma minhota que há muito se radicou nas avenidas novas, desde os tempos em que veio acompanhar um afilhado que cursou engenharia metalúrgica no Instituto Superior Técnico, acabando por cá se radicar, ao contrário do afilhado, que também era sobrinho, que regressou a Viana, mais propriamente a Afife de onde era natural, por mor de trabalhar nos estaleiros. Pudera que dona Camelinha não por cá se tivesse quedado pois, quando ainda nem os quarenta anos houvera feito, conheceu o senhor Policarpo Santana, um abastado comerciante de bacalhau da Rua do Arsenal e com ele se amantizou, até que o senhor Policarpo Santana se finou com um enfarte, pois ter relações sexuais tão intensas com uma mulher ainda no fogo da idade, ele que já tinha quase trinta e cinco em cada perna, como gostava de se gabar, não lhe era muito aconselhável e dizem as más-línguas que tão pouco era proficiente. Deixou-lhe um dinheirinho, coisa pouca, dizia dona Camelinha, mas não se sabe bem ao certo de quantos contos de reis se tratou, já que dois prédios, um dos quais no Areeiro, deixou ele a um sobrinho que era magarefe no matadouro dos Olivais e outras propriedades a uma afilhada, também ela sobrinha, que era beata e que vivia mais tempo entre paredes seculares do que em sua própria casa, se bem que toda a gente afirmasse que era uma santa mulher e que a ela nada se podia apontar nem com a cabeça do dedo mindinho que fosse. Pois o lenço de D. Micá já tinha todo bastante uso essa noite e o mesmo se pode dizer de Januário Pireza, que até tinha espirrado seis vezes consecutivas e do Carlinhos Epicurista, assim chamado desde que se formou em filosofia e defendia teorias bem próximas de Epicuro, que andava a tossir uma tosse cavada que o deixava quase sem ar. Já a Graciete Malheiro, colocou várias vezes as costas das mãos na testa, fazendo com esse gesto como que uma elegante vénia, uma vez que tirava sempre a luva arrendada da mão direita, dizendo, para que todos ouvissem, «parece-me que estou com febre». A um canto, D. Ermelinda, sua mãe, mãe de D. Micá está bem de ver, bebia um chá de limão bem quente, adoçado com mel e sorvia um cálice de uma boa aguardente de vinho verde que desde miúda o via fazer a seu falecido pai. É assim, neste clima de espirros, assoadelas e estados febris que, com ar preocupado, D. Micá se virou para mim e perguntou, afirmado ao mesmo tempo:

- E o Eduardo Aragão? Ainda não o vi por aqui hoje.

- Pois não - respondi. Telefonou-me a dizer que não viria. Parece que está com gripe.     


7 comentários:

  1. Amigo Constantino, acho que o Eduardo Aragão apanhou uma forte corrente de ar, nesses serões intelectuais, insuportáveis, da D. Micá.
    Se ele escapar incólume da forte pneumonia que o atacou, não sei se voltará a desejar correr tão sérios riscos, para a sua saúde.
    Amogo, desejo um Feliz Natal para ti e tua família.
    Quando tudo voltar à normalidade, falaremos sobre a melhor maneira de eu poder ter a alegria de folhear as sete facadas...:-)

    Beijinhos e Boas Entradas em 2013. Quase de certeza que vais passar o reveillon em mais uma tertúlia da minha inimiga de estimação...

    ;)




    ResponderEliminar
  2. Ainda que não esteja bem por dentro de todas as peripécias relativas a D. Micá, sempre lhe digo, que esta prosa é muito interessante e não só do ponto de vista estético.

    Votos de um FELIZ NATAL!

    Lídia

    ResponderEliminar
  3. depois passo por aqui para falar melhor com a D. Micá...

    bom natal

    ResponderEliminar
  4. Espero que a onda de estados febris, tossidelas e espirros, não te afectem e que possas passar um Natal cheio de saúde com bons pitéus próprios da época e claro bem regados com uma boa colheita.
    Boas festas Vítor.

    ResponderEliminar
  5. Uma visita muito rapidinha...para lhe desejar um Feliz Natal.
    Bjos

    ResponderEliminar
  6. Com tempo virei ler os capítulos em atraso, mas para agora venho apenas desejar a ti e a todos os teus UM FELIZ NATAL e uma consoada quentinha e já com a participação encantadora do neto:)

    Beijos a todos

    ResponderEliminar
  7. Oi Vitor
    Passando pra deixar um abraço e desejar Feliz Natal e um bom 2013,
    não tenho encontrado tempo suficiente pra acompanhar a saga dos seus personagens que tanto gosto,
    mas não poderia deixar de vir abraçá-lo pra desejar tudo de bom ,ok?
    com admiração e afeto

    ResponderEliminar