“Antonieta
parecia calma. Uma calma fantasmagórica, na palidez do seu rosto. Fez que se
sentou ficando a planar sobre o sofá, perna traçada, deixando cair o branco véu
que, na posição em que ficou, se deixava embalar pela corrente de ar,
aparentemente injustificada, já que a criadagem se encarregara de cerrar portas
e janelas, deixando ambos trancafiados no vasto salão dos espelhos. Apenas
Penafiel, o fiel cão de D. Bonifácio, um pastor belga de leonina juba e
Gatófio, um gato magrelas que Antonieta tinha adotado antes de morrer, tinham
sido autorizados a ficar. No momento em que a corrente de ar se acentuou, pondo
a nu, as alvas coxas de Antonieta, não conseguindo D. Bonifácio, ou não tendo
tempo para, desviar o olhar, o ribombar de um forte trovão fez estremecer todo
o edifício. Instantaneamente, Penafiel começou a ladrar e Gatófio deu um
fabuloso salto tentando anichar-se no regaço de Antonieta. Em vão esperneou
pois que trespassou roupas e colo, tendo-se estatelado no chão, por falta de
sustentáculo. Em boa verdade, dada a sua natureza felina, Gatófio caiu sobre as
quatro patas mas, ato contínuo, desatou a correr de cauda eriçada pela estupefação,
percorrendo os quatros cantos da sala à procura de um onde se escondesse. Não
contente com tanta algazarra e ainda assustado com o estrondoso trovão,
Penafiel dirigiu os seus latidos a Gatófio ao que este lhe fez “fuuuuummm”.
Contado que foi os desatinos de gato e cão, deve dizer-se que Antonieta
assistiu a toda esta balbúrdia como se nada se tivesse passado e que D.
Bonifácio mostrou alguns sinais de nervosismo, pois por duas vezes deixou
apagar o fósforo quando tentava acender um charuto. Ou então não. Ou então foi
a brisa que lhe apagou os fósforos. Mas isso nunca se virá a saber porque que
também não o sei”, concluiu D. Micá, visivelmente
empolgada com o desenrolar da sua história.
Parou por aqui a sua narração, levantou os olhos
com um olhar de preocupação e olhou em redor. Se bem que lhe era notório que
hoje também não estaria nos seus melhores dias, tendo por mais do que uma vez
puxado pelo lenço, por sinal da mais fina cambraia, magistralmente bordado por
dona Camelinha, uma minhota que há muito se radicou nas avenidas novas, desde
os tempos em que veio acompanhar um afilhado que cursou engenharia metalúrgica
no Instituto Superior Técnico, acabando por cá se radicar, ao contrário do afilhado,
que também era sobrinho, que regressou a Viana, mais propriamente a Afife de
onde era natural, por mor de trabalhar nos estaleiros. Pudera que dona
Camelinha não por cá se tivesse quedado pois, quando ainda nem os quarenta anos
houvera feito, conheceu o senhor Policarpo Santana, um abastado comerciante de
bacalhau da Rua do Arsenal e com ele se amantizou, até que o senhor Policarpo
Santana se finou com um enfarte, pois ter relações sexuais tão intensas com uma
mulher ainda no fogo da idade, ele que já tinha quase trinta e cinco em cada
perna, como gostava de se gabar, não lhe era muito aconselhável e dizem as más-línguas
que tão pouco era proficiente. Deixou-lhe um dinheirinho, coisa pouca, dizia dona
Camelinha, mas não se sabe bem ao certo de quantos contos de reis se tratou, já
que dois prédios, um dos quais no Areeiro, deixou ele a um sobrinho que era
magarefe no matadouro dos Olivais e outras propriedades a uma afilhada, também
ela sobrinha, que era beata e que vivia mais tempo entre paredes seculares do
que em sua própria casa, se bem que toda a gente afirmasse que era uma santa
mulher e que a ela nada se podia apontar nem com a cabeça do dedo mindinho que
fosse. Pois o lenço de D. Micá já tinha todo bastante uso essa noite e o mesmo
se pode dizer de Januário Pireza, que até tinha espirrado seis vezes
consecutivas e do Carlinhos Epicurista, assim chamado desde que se formou em
filosofia e defendia teorias bem próximas de Epicuro, que andava a tossir uma
tosse cavada que o deixava quase sem ar. Já a Graciete Malheiro, colocou várias
vezes as costas das mãos na testa, fazendo com esse gesto como que uma elegante
vénia, uma vez que tirava sempre a luva arrendada da mão direita, dizendo, para
que todos ouvissem, «parece-me que estou com febre». A um canto, D. Ermelinda,
sua mãe, mãe de D. Micá está bem de ver, bebia um chá de limão bem quente,
adoçado com mel e sorvia um cálice de uma boa aguardente de vinho verde que desde
miúda o via fazer a seu falecido pai. É assim, neste clima de espirros,
assoadelas e estados febris que, com ar preocupado, D. Micá se virou para mim e
perguntou, afirmado ao mesmo tempo:
- E o Eduardo Aragão? Ainda não o vi por aqui
hoje.
- Pois não - respondi. Telefonou-me a dizer que
não viria. Parece que está com gripe.
Amigo Constantino, acho que o Eduardo Aragão apanhou uma forte corrente de ar, nesses serões intelectuais, insuportáveis, da D. Micá.
ResponderEliminarSe ele escapar incólume da forte pneumonia que o atacou, não sei se voltará a desejar correr tão sérios riscos, para a sua saúde.
Amogo, desejo um Feliz Natal para ti e tua família.
Quando tudo voltar à normalidade, falaremos sobre a melhor maneira de eu poder ter a alegria de folhear as sete facadas...:-)
Beijinhos e Boas Entradas em 2013. Quase de certeza que vais passar o reveillon em mais uma tertúlia da minha inimiga de estimação...
;)
Ainda que não esteja bem por dentro de todas as peripécias relativas a D. Micá, sempre lhe digo, que esta prosa é muito interessante e não só do ponto de vista estético.
ResponderEliminarVotos de um FELIZ NATAL!
Lídia
depois passo por aqui para falar melhor com a D. Micá...
ResponderEliminarbom natal
Espero que a onda de estados febris, tossidelas e espirros, não te afectem e que possas passar um Natal cheio de saúde com bons pitéus próprios da época e claro bem regados com uma boa colheita.
ResponderEliminarBoas festas Vítor.
Uma visita muito rapidinha...para lhe desejar um Feliz Natal.
ResponderEliminarBjos
Com tempo virei ler os capítulos em atraso, mas para agora venho apenas desejar a ti e a todos os teus UM FELIZ NATAL e uma consoada quentinha e já com a participação encantadora do neto:)
ResponderEliminarBeijos a todos
Oi Vitor
ResponderEliminarPassando pra deixar um abraço e desejar Feliz Natal e um bom 2013,
não tenho encontrado tempo suficiente pra acompanhar a saga dos seus personagens que tanto gosto,
mas não poderia deixar de vir abraçá-lo pra desejar tudo de bom ,ok?
com admiração e afeto